Ainda lembro… os estudantes, em fila, esperando a professora para entrar na classe. As carteiras, também enfileiradas, e os alunos olhando a nuca do colega da frente. A professora, em sua mesa sobre uma estrutura elevada, e o quadro negro como as mais importantes fontes de informação. Cópias, ditados e provas baseados na repetição. Correções com caneta vermelha, a cartilha de alfabetização, os livros didáticos. As vagas insuficientes, o que deixava muitos de fora da escola. Nos meus primeiros anos do ensino fundamental (primário, naquele tempo), a classe era dividida em fileiras, de acordo com o nível de aprendizagem das crianças. Os professores, autoridades incontestáveis e os diretores, figuras distantes – juízes das relações e situações escolares.
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Atualmente, são diversas as configurações das salas de aula. Os educadores já não ficam sobre um estrado, mas, em geral, continuam na frente da classe. Eles, assim como a lousa, deixaram de ser a mais importante fonte de informação – apesar de muitos continuarem pensando que são. Nas provas, em geral, ainda se cobra a reprodução do que foi dado em aula. E em muitos contextos, os livros didáticos continuam desprezando o tanto de informações a que os estudantes têm acesso pela internet, pelas redes sociais ou pela TV.
As classificações por nível de aprendizagem também permanecem, embora não sejam mais critério para a localização física dos alunos nas salas de aula. E as relações entre professores e estudantes? Talvez sejam menos formais agora, mas continuam frágeis, impessoais.
Os desafios atuais
Se na escola nem tudo mudou, o mundo mudou e muito: nas formas de comunicação, nas fontes de conhecimento disponíveis e nas relações de trabalho com formas de dominação mais sofisticadas, mas sempre evidentes para quem olha com olhos de ver. Em meio a tudo isso, a escola e a pedagogia têm perdido o sentido de seus pressupostos e estratégias. E desta vez, parece não adiantar somente rever, retomar ou reformar. Fala-se em transformar a escola, mas o que isso significa?
O conhecimento como expressão da verdade sempre foi valorizado como fiel representação da natureza e das coisas, mas o movimento de descobertas e os novos arranjos de teorias e relações têm abalado as certezas e garantias a longo prazo deste mundo mutável da pós-modernidade. Até mesmo a memória, tida como elemento de desenvolvimento mais precioso, tem-se mostrado até certo ponto inútil, terceirizada pela informática, na busca por soluções privadas para os problemas.
A pedagogia sempre foi capaz de se adaptar a eventuais mudanças, fixando novos objetivos e criando novas estratégias. Mas hoje não dá mais. Será preciso aprender a lidar com o turbilhão de mudanças e novas informações. Como educar neste novo modo de viver? Qual o papel da educação, da escola e dos professores diante desses desafios? E quais as principais exigências pedagógicas? Qual é o lugar da cultura?
Educação permanente
Nesse contexto, ou a educação é permanente ou não é educação, devido às mudanças aceleradas que vem ocorrendo tanto na vida dos professores como na dos estudantes. A educação e a aprendizagem devem ser contínuas e durar toda a vida.
Bauman, em suas diversas obras, traz um importante ingrediente para pensar essas questões: será que a cultura democrática com o reconhecimento das diferenças e o direito de vivê-las, a pluralidade de pontos de vista, a capacidade de fazer escolhas e agir eficazmente com base nessas escolhas, o diálogo, a vontade e o empenho de criar uma convivência humana hospitaleira e amigável num ambiente de cooperação poderá reconstruir o espaço público que hoje está profundamente desabitado pelos homens e mulheres? Essa reconstrução do humano vai exigir o diálogo, a negociação, a gestão e a resolução dos conflitos presentes na vida comum. Daí a necessidade de uma educação permanente, contrária a qualquer forma de dominação. Condorcet indicava que a finalidade da educação é tornar o povo indócil.
A escola precisa converter-se em um espaço público no qual a comunidade escolar – com todas as suas nuances e variações – se reconheça. A escola existe para todos. Isso nos obriga a pensá-la de outro modo, rompendo com a cultura da homogeneização, a partir do pressuposto de que a diferença é uma característica humana e de que cada um pode aprender tudo.
Currículo flexível
Essas reflexões nos abrem algumas possibilidades de mudança. Principalmente no contexto do currículo, que não pode mais ser duro, fixo, fechado e predeterminado, nem pode desconsiderar o contexto e as diferenças que o compõe – as particularidades sociais, culturais, regionais e os diferentes modos de aprender de cada um dos estudantes. Isso porque o processo de aprendizagem e desenvolvimento não é linear ou seriado, desenhado para aquisições de informações em todos os campos da vida humana. Na verdade, ele é como um jogo de construção contínuo, cujas regras vão se modificando, sendo criadas e recriadas por educadores, estudantes e por toda a comunidade escolar. Ele implica num conjunto de acontecimentos e experiências diante de desafios e possibilidades que surgem no decorrer de caminhos abertos na medida em que são percorridos.
Assim, num currículo flexível, cujo ponto de partida é o aluno, todas as disciplinas precisam ser trabalhadas de forma articulada para garantir o acesso de todos ao conhecimento. E uma sugestão para isso é partir de perguntas levantadas pelo próprio grupo. A busca por possíveis respostas deve ser dinâmica e interessante, partindo da utilização de estratégias e recursos diversos como livros, filmes, entrevistas, estudos do meio (em ruas do entorno, outros bairros e cidades), debates sobre as informações coletadas, seleção de materiais para estudo, elaboração de textos com possíveis conclusões, planejamento de projetos decorrentes dessas ações comunitárias etc.
Desenvolver estratégias diversificadas significa também dinamizar o processo de avaliação, incluindo, por exemplo, autoavaliações discutidas pela classe com a participação dos professores. De modo que o trabalho escolar seja compartilhado por todos: nada é feito “para”, e sim “com”. O currículo é organizado segundo a legislação vigente, porém o cotidiano do trabalho pode se diferenciar a cada momento, conforme as necessidades dos grupos e de cada um dos estudantes.
Está aí um caminho para a educação permanente, emancipadora, que assume o movimento, as mudanças e a incerteza da sociedade atual. A escola tem a ver com essa mudança. Nessa perspectiva, o currículo é entendido como o conjunto das experiências de cada professor, de cada estudante e da comunidade, a serem discutidas, estudadas e comunicadas. A escola se define, assim, como o espaço público compartilhado por profissionais da educação, pelos estudantes, seus familiares e representantes da comunidade na qual está inserida, para a elaboração e recriação do conhecimento necessário para a compreensão da realidade em que vivem. Esse é o nosso desafio!
Maria Regina Vianna Pannuti é consultora e autora de livros e artigos na área de educação inclusiva e mestre em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Já foi diretora de escola e é membro do Núcleo mobilizador da Comunidade DIVERSA.
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