Caminhos para a educação física inclusiva no ensino médio

O ensino médio abriga aprendizagens que marcam os estudantes por toda a vida. Essa etapa da educação básica, em especial, é um período no qual o sujeito se vê obrigado a romper fronteiras que envolvem uma profunda e constante autoavaliação de seus pensamentos, sentimentos, motivações e ações. Soma-se a isso o fato de a escola ser um campo de tensões e conflitos, no qual nem sempre aquilo que se pensa, sente ou faz é aceito de forma tranquila e harmoniosa.

Nesse sentido, há muito o que ser concretizado para fazer jus ao protagonismo estudantil e à valorização e promoção dos direitos humanos, preconizados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM). De acordo com a legislação brasileira, temas como gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiência etc., constituem pontos nodais a serem considerados na construção dos projetos pedagógicos das instituições que ofertam esse nível de ensino. Em última instância, a tematização desses assuntos tem como propósito a construção da solidariedade, entendida aqui como um dos pilares do que se denomina inclusão.

Para a professora Bader Sawaia, a inclusão é um processo que está dialeticamente ligado à exclusão. Isso significa que não há um ponto de chegada, visto que no percurso a ser trilhado há inúmeras fronteiras a serem superadas. E a cada superação, novos limites se erguem, novas exclusões acontecem, demandando mais e maiores esforços para que novos processos inclusivos se instaurem.

Nas aulas de educação física, temos muitos exemplos que ilustram situações de inclusão-exclusão e, sobretudo, grandes oportunidades para favorecer o exercício de virtudes éticas, que envolvem: o reconhecimento de si através do outro; a valorização da cooperação, sem deixar de lado as individualidades; a capacidade de controlar sentimentos, atitudes e comportamentos em situações onde se deve fazer escolhas e deliberações justas; a assunção da responsabilidade pelos próprios atos; a avaliação consciente e crítica das consequências – para o indivíduo e para o grupo – das escolhas feitas; e o exercício do papel de agente para lidar com as diferenças, vendo-as como vantagens e oportunidades e não como barreiras.

Vale a pena ressaltar, nesse ponto, que a educação física não se restringe ao ensino dos esportes. Numa visão pós-crítica de currículo, qualquer assunto pode ser objeto de tematização pelos professores, desde que considerem a devida articulação entre as vivências dos estudantes, os conhecimentos a serem ensinados e as práticas sociais. Desse modo, podemos pensar, de fato, conforme preconizam as DCNEM, na construção de práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência.

Exemplos olímpicos e paralímpicos

Para levar a efeito esse propósito, precisamos lançar outros olhares para eventos como as Olimpíadas e as Paralimpíadas. Não são somente as medalhas, os recordes mundiais e a notável performance técnica dos atletas que contam. Nos jogos sediados pelo Brasil em 2016, vivenciamos fatos emblemáticos que ilustraram situações de desrespeito, homofobia, discriminação por gênero, discriminação religiosa, xenofobia. Mas também tivemos a instituição, pelo poder público, de uma cartilha para o combate ao racismo; vimos momentos em que o espírito olímpico falou mais alto do que a vitória como meta; em que se pôs de lado a tradicional separação entre atletas olímpicos e paralímpicos e casos em que o modelo de corpo atlético sucumbiu ao desempenho surpreendente de esportistas plus size.

A reflexão crítica sobre esses acontecimentos pode enriquecer as aulas com debates em duas importantes direções: a primeira diz respeito à forma como as pessoas se engajam e desengajam no contexto de relações humanas inclusivas e excludentes. A segunda faz referência à importância da autoeficácia como forma de empoderamento dos sujeitos.

De acordo com o professor Albert Bandura, principal representante da Teoria Social Cognitiva (TSC), as pessoas buscam explicações para atenuar a gravidade de seus atos antissociais deliberadamente cometidos ou para desobrigar-se de cumprir determinados contratos, tácitos ou não, como o respeito ao outro. A isso ele nomeia desengajamento moral. Um exemplo é o uso da linguagem eufemística para mascarar exclusões, como foi o caso da seguinte manchete sobre a goleira da equipe de handebol de uma seleção olímpica: “Torcida ‘adota’ goleira gordinha de Angola e ela agradece”.

Outro exemplo foi a declaração racista de um membro do Conselho Federal de Administração (CFA) sobre a goleira de futebol da seleção brasileira: “eu odeio preto, mas essa goleira tinha chance”. O comportamento da torcida também ilustra o fenômeno apontado por Bandura: as vaias para os adversários foram justificadas moralmente em nome do amor pelos atletas brasileiros. Segundo algumas postagens nas redes sociais: “a vaia não é desrespeito; é incentivo para os mais fracos”. Desnaturalizar cenários que aos poucos deixam de provocar indignação também é uma das tarefas da escola e uma das fronteiras a serem superadas em busca da inclusão.

Ainda de acordo com Albert Bandura, o desenvolvimento da autoeficácia pode contribuir para o empoderamento dos sujeitos. A crença nas próprias capacidades de realização contribui para o estabelecimento de metas mais elevadas e de esforços mais intensos e duradouros. Os obstáculos são percebidos como trampolins e não como barreiras. Essa segurança, porém, não é algo herdado, mas construído na relação com os outros. Para Bandura, são quatro as fontes de autoeficácia:

  • As experiências diretas vividas pelos sujeitos, que criam representações de si conforme a interpretação dos próprios êxitos e fracassos;
  • As experiências vicárias, ou a aprendizagem por meio da observação das ações de outras pessoas, que funcionam como modelos que podem indicar como superar adversidades ou promover autorreflexões sobre os próprios comportamentos;
  • A persuasão verbal ou social, por meio da qual os sujeitos são incentivados a agir e têm acesso ao julgamento das outras pessoas a respeito de suas realizações;
  • A autopercepção e autoavaliação dos estados físicos e emocionais (tensão e ansiedade, por exemplo), que funcionam como indicadores de desempenho.

Currículo na educação física inclusiva

De acordo com a Teoria Social Cognitiva, a escola é uma das principais instituições onde o indivíduo aprende a ser agente da própria vida e através da qual pode contribuir para grandes e significativas transformações sociais. O currículo é uma poderosa ferramenta para desencadear esses processos. Segundo o professor Marcos Neira, no que concerne à educação física, em especial, podemos colaborar com esse movimento:

  • Reconhecendo e valorizando as identidades culturais;
  • Promovendo a justiça curricular e realizando debates que superem a visão ingênua e os preconceitos acerca das diferentes manifestações da cultura corporal;
  • Descolonizando o currículo e trabalhando conhecimentos e práticas sociais de grupos historicamente silenciados;
  • Evitando o daltonismo cultural e usando estratégias e metodologias que vão além da bola e da quadra, como, por exemplo, a elaboração de blogs e a utilização das tecnologias da informação;
  • Promovendo a ancoragem social dos conteúdos, partindo das práticas sociais dos estudantes e desconstruindo representações distorcidas provenientes da mídia, por exemplo.

Com isso, podemos romper fronteiras e promover a participação de todos e todas.

O esporte não é a redenção para os problemas sociais nem o único conteúdo a ser trabalhado no ensino médio. Ainda que seja verossímil o argumento de que “na vida, como no esporte, há competição”, há de se criar novas formas de fazer e pensar a educação física na escola. Como um instrumento de justiça social, a educação deve fornecer meios para que os estudantes articulem, ampliem, transformem e construam diferentes significados sobre o que vivem e o que aprendem na escola e fora dela. Se na vida se aprende a competir, a educação física pode servir como texto e pretexto para romper fronteiras em busca da inclusão.

 

Kátia Regina Xavier da Silva é pedagoga e licenciada em educação física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui mestrado e doutorado em educação pelas universidades do Estado (UERJ) e federal (UFRJ) do Rio de Janeiro, respectivamente.

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