Atypical: a vida de um jovem com autismo dentro e fora da escola

Sucesso dos novos episódios da série que retrata a vida de um aluno com autismo no ensino médio revela o interesse e a carência de produções que retratem minorias de forma inclusiva

Em setembro, chegou ao catálogo da Netflix a 2ª temporada de Atypical. A série conta a história de Sam, um adolescente com autismo que está prestes a terminar o ensino médio e busca construir sua independência. A produção foi a mais vista do mundo na semana de lançamento da nova temporada, segundo um levantamento feito pelo aplicativo TV Show Time — que considera canais de TV e serviços de streaming. Não à toa, a série é quase pioneira no sentido de apresentar um tema importante de forma delicada e para o público jovem.

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Nos novos episódios temos Sam passando por diversas transformações em sua vida: seus pais se separando após a descoberta da traição da mãe, a necessidade de buscar um novo terapeuta e também a mudança de escola da irmã. O que a princípio pode parecer banal, para Sam são questões complicadas. Afinal, ele gosta de seguir uma rotina bem definida e não gosta muito de mudanças.

Atypical mostra como a família, a escola e os amigos apresentam esses fatos como naturais. Trabalhando de forma muito sutil que certas mudanças precisam ocorrer para a melhoria de uma situação.

O autismo em segundo plano

A mudança de eixo central da narrativa foi muito elogiada e receptiva. Se na primeira temporada o autismo e a vida de Sam eram o centro no qual todos os outros personagens orbitavam, na segunda temporada, muitos ganham seu próprio foco. É o caso de Casey (irmã de Sam). Ao sair da escola onde o irmão estuda, ela precisa desenvolver novos laços e estabelecer um novo grupo de amigos bem diferentes dos quais ela estava habituada na escola pública onde sempre esteve.

Esse amadurecimento da produção foi muito bem recebido também pela comunidade de familiares e pessoas autistas que reconhecem que o autismo não precisa ser o foco de todos os desdobramentos na vida de quem o cerca, nem um recurso de roteiro para inserir o humor ou desenvolver tramas paralelas.

Na 1ª temporada, o principal alvo das críticas foi a romantização do espectro autista e a “desconexão” com a realidade apresentada por Sam e sua família. No entanto, é importante considerar a amplitude do espectro e a diversidade de pessoas dentro dele. O caso de Sam (alta funcionalidade e sociabilização) se localiza enquanto um perfil possível numa vasta variável de possibilidades. Lembrando sempre que um sujeito é composto por diversas características e as pessoas dentro do espectro não são diferentes: nem todas apresentam problemas severos de comunicação ou socialização, embora sejam traços comuns nesse caso.

Representatividade

Como forma de contornar esse problema e principalmente melhorar a qualidade da produção, a diretora Robia Rashid fez uma série de mudanças na trama nessa nova temporada.

Um grupo de jovens está sentado em cadeiras, em formato de círculo, em uma sala escolar. Fim da descrição.
Muitos dos atores do grupo de atendimento têm autismo. Foto: Beth Dubber. Fonte: Netflix.

Para começar: atores que estão no espectro autista. Ao longo da temporada, Sam começa a frequentar um grupo de apoio aos alunos com autismo em sua escola. A proposta é fazer um atendimento focalizado nas especificidades do público e fazer orientações mais direcionadas. Nesse grupo, muitos jovens vivem no espectro por trás das câmeras.

Nos bastidores a diversidade também é valorizada com a equipe de diretores, produtores e roteiristas técnica que conta com mulheres, negros e pessoas LGBTIs.

Como sabemos, mais do que falar sobre é importante dar voz a quem nunca teve ou é sistematicamente excluído dessas produções. Garantir na equipe e no elenco esse espaço é um passo fundamental quando falamos em representatividade na mídia, seja das pessoas com deficiência, seja de outros grupos minoritários.

Novos rumos

O sucesso de Atypical talvez resida na forma leve e delicada de contar a história de Sam. Enquanto na primeira temporada a trama foi focada no primeiro amor do jovem — um tema tabu para muitas pessoas com deficiência, TEA ou TGD — nos novos episódios a narrativa explora outros pontos importantes na construção da autonomia desse público.

Um desses pontos é a independência financeira. Tendo uma mãe superprotetora, Sam nunca pode administrar o seu próprio dinheiro (ele trabalha como vendedor em uma loja de eletrônicos). Em conversas com amigos e colegas ele começa a enxergar esse ponto como mais um passo rumo a sua autonomia completa para vida adulta.

No que tange à educação, a temporada 2 dá um passo importante sobre a inclusão de pessoas com autismo nos sistemas de ensino. Em seu último ano no ensino médio, Sam e seus colegas precisam pensar em seu futuro: qual carreira seguir e principalmente onde irá continuar seus estudos. Junto à isso o planejamento para sair de casa e dormir fora.

Nesse sentido a trama apresenta a discussão de forma tranquila e com muita maturidade, afinal, Sam também é um jovem de 18 anos, é natural que comece a pensar na sua vida longe dos pais para variar.

Em um novo contexto a série retrata também o bullying e a falta de compreensão sobre o tema por parte da comunidade do bairro onde Sam vive endossando, mais uma vez, a necessidade de informação e convivência com pessoas de diferentes perfis.

Esse ponto é magistralmente representado no episódio em que Sam é parado pela polícia. Em meio à uma crise ou ataque Sam repete incansavelmente as quatro espécies de pinguins que vivem na Antártida. Esse recurso ajuda ele focar a atenção para se acalmar. O completo despreparo do militar ao se deparar com a situação levou-o a entender a postura do jovem como desacato ou reação pelo uso de drogas.

Entra em cena, então, a família: principais agentes que podem contribuir para a disseminação de informação à respeito dessas situações para seus colegas de profissão, vizinhos e amigos.

Pontos fortes prevalecem

Considerando as críticas feitas à primeira temporada, fiquei com receio de que a leveza e a naturalidade da narrativa perdessem espaço para discussões e apontamentos mais profundos sobre a questão do autismo. A equipe de direção, produção e roteiro, no entanto, provou ser muito eficiente em conduzir as duas coisas em paralelo.

Sam, seu pai e sua mãe conversam na cozinha de casa.
Foto: Beth Dubber. Fonte: Netflix.

Do riso ao choro — da emoção à reflexão — em cada episódio passamos por uma verdadeira montanha-russa de sensações de forma muito orgânica. A construção das personagens jovens principalmente com Casey (irmã de Sam) corrobora o acerto da linguagem pensando nesse público. Tramas e situações enfrentadas cotidianamente por crianças e adolescentes como a separação dos pais, a mudança de escola e o afastamento dos amigos de infância contribui para o envolvimento mais profundo com as personagens.

Outro ponto marcante na série é o distanciamento da terapia individual — muito presente na primeira temporada e responsável pelos maiores desdobramentos da trama. O atendimento individualizado com a terapeuta dá espaço a momentos de troca com outras pessoas próximas a Sam, seja no grupo de apoio conduzido pela professora, seja no trabalho com seu amigo Zahid.

Assim, foi fundamental o posicionamento de Sam em recusar (ainda que temporariamente) o apoio constante da mãe e da terapia para aprender, sozinho, como lidar com questões do dia a dia — desde preparar o café da manhã até controlar suas crises.

A voz das pessoas com autismo

Atypical apresenta uma segunda temporada com alto grau de comprometimento no que diz respeito à representatividade de pessoas com autismo. Na evolução da trama, Sam e personagens com outras neuroatípicas favorecem uma produção ainda mais plural e madura sem perder a sutileza e o comprometimento de divertir o público enquanto educa e informa.

A equipe da série investiu em ouvir e dar voz às pessoas com autismo, tanto no elenco quanto nos bastidores. O resultado foi, senão outro, um sucesso comprovado pelos níveis de audiência. O que nos mostra, portanto, o interesse e principalmente a carência de produções que retratam minorias de forma coerentes e inclusivas.


Alexandre Moreira é licenciado em Educomunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atua na área de formação do Instituto Rodrigo Mendes (IRM).

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