A importância de conhecer o estudante antes do laudo

Para Maria da Paz de Castro, especialista em educação inclusiva, a interação professor-aluno deve ser a principal fonte de informação a respeito da singularidade de cada um

Um garoto cadeirante, de pele clara, cabelos escuros e com blusa de manga comprida azul, está parado na ponta de uma mesa cheia de materiais pedagógicos, de frente para uma mulher branca de cabelos castanhos, com camiseta branca e avental azul, apoiada na mesa. Ela exibe um cartão para o garoto, que sorri. Fim da descrição.
“Todos ‘dizem’ algo de si e do que sabem, e esse dizer é a matéria-prima do trabalho do professor”, afirma Maria da Paz de Castro, a Gunga. Crédito: iStock_Drazen

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” O provérbio de origem africana vem nos lembrar que todas as crianças chegam ao mundo dignas de uma série de direitos que devem ser atendidos desde os seus primeiros momentos de vida: o direito à vida, à saúde, à moradia, à alimentação, à educação, entre outros. Ainda que isso não aconteça de fato em grande parte do mundo, é obrigação das sociedades e dos poderes públicos fazer todo o possível para que todas elas possam desfrutar da infância e da adolescência com dignidade e contando com oportunidades justas e igualitárias para que isso aconteça. Assim, cada criança que nasce, seja onde for, convoca todos nós a contribuir com seu desenvolvimento pleno.   

Para além disso, esse provérbio pode nos ajudar a pensar em todo aquele processo que nós, educadores, vivemos quando recebemos em nossas escolas um estudante que, por algum motivo, pode não se comportar, aprender, movimentar-se ou relacionar-se com seus colegas e com o ambiente escolar da mesma maneira que aqueles que estamos habituados a receber. Zelar pelo seu desenvolvimento integral, garantir que seu direito à educação seja cumprido de forma digna e justa e oferecer a ele um processo de escolaridade completo e consistente são tarefas a serem compartilhadas por uma aldeia ainda mais ampla, que contemple suas especificidades, lute pelos seus direitos e comemore suas conquistas. 

Não podemos, porém, esquecer que o componente principal dessa aldeia é, sem dúvida, esse aluno, que chamarei de aluno-sujeito. E explico o porquê: um aluno sujeito é aquele que tem a dizer de si. É um sujeito que vive um processo de construção subjetiva, ainda que muitas vezes permeado de impasses e entraves. Quando o professor considera sua subjetividade, está permitindo que esse estudante surja por inteiro e lhe mostre como ensiná-lo. É o aluno que vai chegar, não só para seu professor, mas para toda a comunidade escolar, antes do laudo e de qualquer rótulo.  

Nenhuma estratégia de ensino, atividade e nem mesmo plano de acolhimento ganhará sentido se ele não for ouvido em todos os momentos, ainda que, muitas vezes, não seja capaz de nos dizer por meio da fala, como a maioria de seus colegas. É preciso que esse princípio permeie todas as decisões a serem tomadas ao longo do processo de escolaridade dessa criança.  

É fundamental que a aldeia que acompanha essas crianças possa trabalhar de forma a potencializar todas as possibilidades de enfrentar os obstáculos que se colocam. No mais das vezes, formada pela família, a equipe escolar e os profissionais da saúde (além da própria criança, é claro), essa equipe/aldeia reúne muitos e diferentes saberes e experiências, e é essencial que estes sejam considerados e compartilhados de forma a ajudar nosso estudante.  

Na escola, o maestro é o professor  

Tem sido, porém, comum, nos depararmos com situações em que o lugar e a voz do professor e da equipe escolar não é valorizado e nem considerado como deveria nesse processo. Uma das questões que ilustram esse panorama é o papel que têm cumprido os laudos, diagnósticos, prognósticos e recomendações provenientes dos consultórios médicos e/ou terapêuticos que muitas vezes chegam à escola antes do nosso aluno-sujeito, roubando do professor a oportunidade de conhecê-lo e, do aluno, o direito de dar-se a conhecer.  

Deixo claro que não me refiro a todos os profissionais, mas àqueles que carregam consigo um suposto “saber tudo” sobre nossos estudantes e muitas vezes acabam por atropelar suas vidas escolares, que inclui processos singulares de aprendizagem, o trabalho do professor e a reflexão de toda a comunidade escolar.  

É importante que o professor, antes de ouvir o que um outro tem a dizer sobre seu aluno, tenha a oportunidade de conhecê-lo para, a partir daí, construir e reconhecer seu saber sobre ele e buscar estratégias para ensiná-lo, colocando em prática alguns de seus conhecimentos construídos ao longo de seu percurso docente e de sua formação, abrindo mão de outros e buscando por novos.  

À medida que o aluno responde, à sua maneira, a essas intervenções (mesmo que, na maioria das vezes, de um jeito diferente do que se espera), a ideia de que ele pode aprender vai ganhando sentido e significado e contribuindo com a construção de um percurso de aprendizagem próprio, e não pautado “no que se espera para essa idade” ou “o mais próximo à normalidade possível”. Todos “dizem” algo de si e do que sabem, e esse dizer é a matéria-prima do trabalho do professor. Esse processo, tão sério quanto delicado, corre o risco, sempre muito grande, de cair por terra quando o professor se depara com um laudo, orientações ou um discurso taxativo e, ouso dizer, autoritário, que nos diz que “com ele tem de ser assim”.  

Pergunto: ele quem? Assim como? Não podemos esquecer que estamos falando de educação. Na escola, o maestro da orquestra é o professor, que não estudou pouco para ocupar esse lugar, assim como qualquer outro profissional. Ainda que a interlocução e a escuta horizontais dentro de uma equipe multidisciplinar sejam sempre bem-vindas e necessárias, é preciso que fique claro o lugar de cada um nessa conversa. Professores não costumam dizer como seus estudantes devem ser atendidos na clínica e, portanto, não podem se submeter a essas indicações pautadas muitas vezes por uma relação assimétrica, que os faz refém e coloca em risco uma série de considerações preciosas acerca de seu aluno, sua sala de aula, a dinâmica de seu grupo, a rotina de cada dia e, claro, antes que me esqueça: tudo o que ele estudou para assumir esse lugar. 

Educar uma criança, tenha ela algum tipo de deficiência ou não, é esperar dela que ocupe seu lugar no mundo, na sociedade e em sua aldeia, e fazer por isso. É também ajudá-la a enxergar, compartilhar e honrar os saberes de todos, sempre munida da certeza de que ninguém é capaz de saber tudo sobre algo, qualquer algo.    

Sobre a autora

Maria da Paz de Castro Nunes Pereira (Gunga) é professora polivalente por formação há 30 anos, especialista em educação inclusiva, orientadora educacional, pedagógica e de práticas inclusivas, e formadora em Educação em Direitos Humanos e alfabetização. Atualmente, é assessora e formadora da área de Educação Inclusiva e Educação em Direitos Humanos em escolas da cidade de São Paulo e outros estados, selecionadora do Prêmio Educador Nota 10 e parceira do Centro de Educação Terapêutica Lugar de Vida. 


Este artigo é de responsabilidade da autora e não representa, necessariamente, a opinião do Instituto Rodrigo Mendes.  

©️ Instituto Rodrigo Mendes. Licença Creative Commons BY-NC-ND 2.5. A cópia, distribuição e transmissão dessa obra são livres, sob as seguintes condições: você deve creditar a obra ao autor, licenciada por Instituto Rodrigo Mendes e DIVERSA.    

Deixe um comentário