Ensino Fundamental: o acolhimento na volta às aulas

Confira como duas escolas aproveitam o início do ano letivo para conhecer todos os estudantes, ouvir suas dúvidas e anseios, oferecer apoio e engajar as turmas

Alunos do 3 ano estão de pé em uma sala, brincando com bexigas amarelas e laranjas. Duas mulheres adultas acompanham a atividade. Fim da descrição
Turma do 3º ano em atividade de conexão: “Se apenas uma pessoa cuida das bexigas é impossível mantê-las longe do chão. Se cada um cuida da sua e ajuda o outro, todas permanecem voando”, diz Carla, da EMEF Padre Leão Vallerie, em Campinas (SP). Crédito: Acervo Pessoal/ Carla Moraes

Como você gosta de ser recebido em novos ambientes ou no retorno ao trabalho depois das férias? Provavelmente com atenção e abertura para se expressar, falar e ouvir. É assim que podemos pensar no acolhimento de todas as crianças e adolescentes para o início do ano letivo, inclusive daquelas com deficiência. O acolhimento é uma disponibilidade afetiva, é o ato de respeitar os sentimentos por meio de uma escuta empática, propor um diálogo, colocar-se à disposição do outro. É uma atitude cotidiana, estabelecida no início do ano, que exemplifica a cultura inclusiva da escola, deixando o clima harmonioso para receber os estudantes que estão chegando, muitos deles ansiosos e inseguros, diz Flávia Vivaldi, doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral/Unesp e Unicamp (Gepem) e do Instituto de Estudos Avançados/Unicamp (IdEA).  

Não é essencial propor dinâmicas de grupo, momentos lúdicos ou divertidos, embora essa programação possa fazer parte dos primeiros dias. O mais importante, explica Flávia, é ter uma escuta qualificada. Essa forma de agir deve permanecer ao longo de todo o ano, pois colabora para o respeito às individualidades e para que as relações sejam aprofundadas . Um ambiente acolhedor contribui para o desenvolvimento emocional, acadêmico e social das crianças e jovens (leia a reportagem sobre acolhimento e adaptação das turmas da Educação Infantil). 

A EMEF Padre Leão Vallerie, em Campinas (SP), é a escola em que Marcos Augusto Bisinella é diretor educacional e Carla Jacqueline de Moraes é professora de Educação Especial. Carla apoia os professores do 1º ao 5º ano no planejamento do trabalho realizado com os estudantes público-alvo da educação especial durante o horário regular, atua em parceria com os responsáveis pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE), que ocorre nas salas de recurso no contraturno, e constrói um diálogo estreito com as famílias dos estudantes.  

Na escola são mais de 1.100 alunos de 1º a 9º ano, inclusive de educação de jovens e adultos (EJA). O diretor Marcos diz que o vínculo começa a ser estabelecido no início do ano letivo: Nas primeiras semanas de aula, a equipe se desdobra para ter mais contato com as famílias e construir uma relação de parceria. Esse diálogo também é essencial para inspirar ações ou abordagens do planejamento do professor ao longo do ano. A equipe escolar procura saber, por exemplo, se os estudantes estão passando por algum momento de vida desafiador ou marcante e precisam de uma atenção específica, e como estão se sentindo para voltar à escola. Esse diálogo, mesmo informal e não estruturado, é uma forma de contato individualizada que possibilita a aproximação. Para que isso ocorra, é fundamental o engajamento de toda comunidade escolar, sobretudo porque esse movimento exige tempo e dedicação de todos os envolvidos. 

Atenção aos que estão mudando de etapa  

Antes de receber os estudantes do público-alvo da educação especial, Carla conversa com os educadores que já conheceram esses alunos em anos anteriores para colher o maior número de informações sobre seu histórico e suas especificidades. Ela registra os aprendizados dos docentes, como as estratégias usadas que deram certo e as que não funcionaram ou que poderiam ser ajustadas. Com esse encaminhamento, os professores que agora irão receber os estudantes ficam mais seguros em sua atuação e as famílias se sentem mais tranquilas para confiarem seus filhos à escola. O resultado também é visto com os próprios alunos, que ficam felizes por se sentirem incluídos e aprendendo. 

Vale pontuar que as informações de histórico da trajetória são importantes para compor um quadro a respeito de todos e de cada estudante. Ainda assim, os novos professores também precisam estar abertos para conhecer os alunos sem pré-julgamentos, deixando-se surpreender, afinal crianças e jovens mudam a cada ano. 

A adaptação na escola de Campinas varia conforme a idade dos alunos. Na semana inicial do 1º ano, em que as crianças estão vindo da educação infantil, as turmas ficam poucas horas na instituição e aos poucos aumentam esse período de permanência. Com o 6º ano, também é preciso acompanhar o estranhamento com a nova rotina, quando os estudantes passam a ter aulas com mais professores e contato com componentes curriculares diferentes. Sabendo disso, Carla, do AEE, dedica mais tempo à observação dos alunos com deficiência desses anos e mantém um diálogo próximo com as famílias para trocar impressões a respeito do comportamento deles e pensar em mudanças de rumo, como a necessidade de adaptar materiais pedagógicos acessíveis que não foram adequados às crianças e jovens, seja porque já estão em outra fase do desenvolvimento, seja porque não se adaptaram. 

Estratégias diferentes para conexão 

Flávia ressalta que os primeiros dias de aula são importantes para humanizar as relações, possibilitando que um conheça o outro em seus diversos aspectos, fora do cenário acadêmico. O professor pode então promover rodas de conversa (com cadeiras dispostas em círculo para que todos possam se ver) e ir além de um papo sobre o componente curricular que irá abordar. Ele pode contar mais sobre si, mostrar seus gostos, medos, sonhos e trajetória, além de incentivar que os alunos façam o mesmo. Há outras estratégias para provocar essas conversas iniciais: pedir para as crianças ou jovens indicarem temas (o professor também pode dar opções) e fazer um sorteio para definir o assunto a ser abordado ou mostrar gravuras que estimulem o papo. O objetivo dessas trocas, além de estudantes e professores se conhecerem, é estabelecer laços de confiança.  

Também é possível organizar grupos de estudantes para mostrar a escola para aqueles que estão chegando, possibilitando uma troca entre pares e valorizando o ponto de vista deles sobre as referências de ambientes e rotinas. Nos dias seguintes, é preciso abordar as regras e o funcionamento das aulas, dizer o que se espera dos estudantes, fazer combinados, explicar como será a avaliação e provê-los de outras tantas informações. 

Carla conta que cria, pontualmente, salas sensoriais para valorizar os diferentes sentidos dos estudantes e dividir o protagonismo da leitura e da escrita com outras maneiras de se relacionar e aprender. Esse tipo de proposta colabora para que todos os estudantes, incluindo aqueles com deficiência, participem das propostas de forma mais ativa. Em uma sala há sons estimulantes; em outras há luzes variadas; em uma terceira são colocados objetos que aguçam o tato tudo para gerar diferentes sensações.    

O acolhimento também passa pela acessibilidade dos espaços da escola. Em relação às barreiras arquitetônicas, a equipe gestora da escola de Campinas está atenta para acionar a rede de ensino sempre que identifica a necessidade de realizar alguma obra ou reforma. O que não é possível de se resolver em tempo, como colocar rampas ou elevador para pessoas que utilizam cadeira de rodas poderem acessar salas em pisos superiores, exige adaptações, como a acomodação de determinadas turmas no térreo. Cada estudante tem sua demanda. Então tudo precisa ser avaliado, diz Carla. 

Visão a partir do fundo de uma sala ampla, com diversas pessoas sentadas para reunião. Na frente, três mulheres estão de pé. Fim da descrição
Reunião de acolhimento de pais e responsáveis na EFITI José Ferreira Sobrinho, em Garanhuns (PE): contato com as famílias começa nas primeiras semanas e deve ser fortalecido ao longo do ano. Crédito: Acervo pessoal/ Felipe Pontes

Escuta ativa o ano todo 

Na EMEF Padre Leão Vallerie o acolhimento não se restringe às primeiras semanas de aula. A instituição promove encontros recorrentes para manter e aprofundar o relacionamento entre a comunidade e a escola. Por exemplo: há um grupo de apoio psicológico (com participação de pesquisadores) e outro que surgiu como demanda das estudantes para discutir o respeito e as possibilidades de expressão das meninas dentro e fora da escola. Há também assembleias de classe periódicas, grupos de conversa sobre diversos temas (por exemplo, relação entre as turmas ou com um colega com deficiência) e oficinas (como a de Libras). A inclusão dos estudantes com deficiência nas escolas ainda é novidade, então é preciso falar sobre o assunto, mostrar as características de cada um, procurar responder às dúvidas e usar diferentes recursos, como leituras, teatro ou filmes, como disparador das conversas com o grupo. É essencial ouvir os comentários dos estudantes e acolhê-los, diz Carla.  

Nos encontros para formação de professores, ganham espaço a discussão dos desafios do ensino e as especificidades dos estudantes com deficiência. Falamos sobre preconceitos e capacitismo, alternativas para o ensino e a promoção de relações positivas entre os alunos. Tiramos dúvidas e trazemos estudos. É importante que a equipe esteja atenta e atualizada para garantir o acesso, a permanência e a aprendizagem dos estudantes, que é direito de todos, conta Carla. 

Participação e acolhimento vinculado à aprendizagem 

Os estudantes com deficiência não querem apenas ser incluídos na escola; eles querem participar. E, para isso, é importante repensar como o acolhimento vem acontecendo e como o Projeto Político Pedagógico (PPP) está sendo colocado em prática. Os alunos com deficiência não devem ser tratados como visitantes, e sim como aqueles que fazem parte, que pertencem. O acolhimento vai além do carinho ou de ser bem recebido, afirma Silvana Lucena dos Santos Drago, membro do Conselho Municipal de Educação e participante do grupo de pesquisa da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) sobre políticas em educação especial. Silvana é professora aposentada e foi supervisora da rede municipal de ensino de São Paulo, tendo atuado com educação inclusiva em diversos cargos na Secretaria de Educação.  

Para ela, a escola deve mostrar que conhece a trajetória do estudante e vai promover uma continuidade e não uma ruptura desse percurso para garantir mais conquistas, e que os interesses dele serão contemplados nas práticas escolares. Isso porque acolhimento também envolve a dimensão da aprendizagem, ou seja, é necessário demonstrar para crianças e jovens que os educadores irão oferecer apoio acadêmico e trabalhar para o avanço de todos, considerando os estilos e ritmos de aprendizagem de cada um. Também inclui apresentar aos novos alunos os espaços da escola, a equipe de funcionários e colegas, e informar quais deles podem inseri-los em determinados momentos, atividades e brincadeiras. 

Silvana reforça que a participação real dos estudantes, com deficiência ou não, é possível se todos encontram infraestrutura, materiais e recursos adequados ao seu desenvolvimento. A acessibilidade do ensino deve ser motivo de preocupação. Ao planejar com base nos conhecimentos dos alunos, os professores devem focar quais processos, recursos ou estratégias podem promover a aprendizagem e o engajamento a todos, e não apenas pensar em recursos para cegos, surdos ou aqueles com deficiência física, intelectual ou mental.   

E quem deve ser responsável por essas ações? Para Silvana, toda a equipe da escola deve se comprometer com a eliminação de barreiras para acesso ao currículo, assegurando o atendimento educacional especializado fundamentado nas práticas inclusivas e oferecendo apoio, recursos, serviços e materiais necessários ao atendimento dos alunos. Temos de saber que vivemos em uma escola real, e não em uma idealizada, e pensar situações possíveis, inéditas ou não, mas dentro do que se consegue fazer. É preciso olhar, observar, ouvir cada um dos sujeitos e mudar os hábitos para garantir a cada ano mais inclusão na escola.    

Flávia, da Unicamp, completa pontuando a importância de ter a equidade como princípio norteador das propostas desenvolvidas com os estudantes, identificando as barreiras que precisam ser eliminadas e também as potencialidades. Precisamos saber o que essas pessoas esperam da escola e quais ajudas são bem-vindas, sem tabus para que as relações sejam as melhores possíveis. Por exemplo: quem usa cadeira de rodas quer apoio para se locomover ou prefere ter essa autonomia? Quais conquistas os alunos tiveram e quais desafios têm pela frente?”, afirma. “As famílias ou outras pessoas que convivem com esses estudantes também devem ser ouvidas para dar mais elementos, contribuir com informações e encurtar caminhos da escola para os melhores resultados para os estudantes , completa a pesquisadora.  

Para manter o contato com as famílias durante todo o ano, Carla conta que mantém o mural da escola atualizado com ações e avanços da inclusão nas salas de aula, curiosidades e dados sobre educação inclusiva. Marcos, diretor da instituição, diz: Com a pandemia, as famílias se afastaram da escola. Precisamos recuperar a relação de parceria desde os primeiros dias de aula. As relações, sejam entre educadores, entre professores e estudantes ou entre docentes, gestores e as famílias são motivo de cuidado de toda a equipe, continua. Ele acredita que essa forma preventiva de atuar traz consequências positivas, como os raros eventos de violência ou conflitos mais sérios. Não podemos agir só quando as dificuldades aparecem, porque a mediação fica ainda mais complexa.  

Momentos para expressar expectativas e trocar com colegas  

A Escola Fundamental Inova em Tempo Integral (EFITI) José Ferreira Sobrinho, em Garanhuns (PE), atende estudantes do ensino fundamental em tempo integral desde 2022. No retorno às aulas, toda a primeira semana é prevista para o acolhimento, o que inclui um dia para receber a equipe escolar e as famílias e os demais dias para que as turmas se revezem e realizem atividades de socialização. Felipe Pontes, que já foi coordenador pedagógico da escola e atualmente é o diretor, diz: Nessa primeira semana temos uma abordagem diferente do ensino convencional, por isso, é preciso explicar às famílias e aos estudantes o propósito e a importância desse acolhimento mais longo. Em nossa escola, as turmas convivem por nove horas diariamente, então há certos pactos e acordos que precisam ser estabelecidos. O bom relacionamento é essencial para que isso se consolide .  

Felipe diz que, entre as propostas da primeira semana de aula, estão os momentos para os alunos expressarem suas expectativas em relação ao retorno à escola e ao próprio futuro: os menores fazem desenhos ou pinturas; os maiores escrevem, criam e apresentam pequenas cenas teatrais. São os próprios estudantes que se organizam e tomam decisões sobre o formato dessas propostas, e cabe aos educadores da escola dar condição para que as práticas aconteçam, mas sem tirar o protagonismo das turmas. O mesmo acontece em relação aos estudantes com deficiência: Não há um acolhimento específico para esse público: precisamos garantir a participação e o conhecimento para todos. Se há alguns anos os estudantes da educação especial eram invisibilizados, agora sabemos que a escola tem de encontrar meios para se adaptar a cada um, e não o contrário, diz.  

Nos primeiros dias de aula, parte dos estudantes fica com a incumbência de mostrar os espaços aos alunos novos e explicar de que forma a escola está organizada. O contato e a construção do vínculo com os professores acontece de maneira gradativa ao longo do ano, incluindo os momentos de refeição compartilhados e de mentoria individualizada (forma de organização da escola em que os docentes se dividem para acompanhar os estudantes em sua trajetória acadêmica).  

Ao longo do ano, o acolhimento diário das turmas também faz parte da rotina da EFITI José Ferreira Sobrinho. Por 20 minutos, os estudantes e os professores são recebidos em um espaço coletivo onde se encontram com colegas de outras turmas, comemoram aniversários, fazem atividades sugeridas pelos próprios alunos, discutem algum tema importante (no início do ano passado, por exemplo, os atos de violência que ocorreram em outras escolas e a organização de um evento foram pauta) e então se encaminham para suas salas.  

A responsável pelo AEE da escola promove com as famílias dos estudantes com deficiência momentos individualizados para conhecer cada um deles, compreender suas necessidades e o que pode ser potencializado para que os direitos de aprendizagem e desenvolvimento sejam garantidos, e construir laços que vão se fortalecer com o tempo. Nas turmas em que há estudantes com deficiência, vemos como os demais alunos desenvolvem uma série de habilidades e competências relacionadas a empatia e cooperação. É fascinante ver como eles aprendem no contato com o outro , conta o diretor Felipe. 

 

 

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