O jogo de matriz africana possibilita trabalhar valores sociais e culturais junto ao conteúdo de matemática
O estudante Júnior foi matriculado em 2019 no ciclo de alfabetização do Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) de Itaquera, localizado na zona leste da capital paulista. Sua turma, de 20 alunos, era composta majoritariamente por mulheres, pessoas com mais de 45 anos e contava com cinco estudantes com deficiência.
Júnior era o mais novo da sala, com 15 anos. Por conta de uma paralisia cerebral na infância, ele utiliza cadeira de rodas e necessita de auxílio para alimentação, higiene pessoal e locomoção. Percebemos ao longo das aulas que precisaríamos contribuir também para desenvolver habilidades motoras e movimentos rotineiros como segurar, soltar, mover e transportar objetos de variados tamanhos e espessuras, pois eliminar essas barreiras é também facilitar seu acesso ao currículo.
Mesmo sendo bastante jovem, Júnior já vivenciou diferentes experiências no contexto escolar: algumas positivas e outras nem tanto. Quando chegou em nossa unidade, a comunicação foi uma barreira que os professores e colegas logo perceberam.
Por conta disso, pensamos em desenvolver um material pedagógico acessível para facilitar a aprendizagem dele e dos demais estudantes da turma. Como o jogo Mancala é parte da identidade de nossa escola e também estratégia de ensino da cultura e história afro-brasileira, elaboramos o projeto de construção de um tabuleiro acessível de Mancala Awele que nomeamos como Mancala Awele Agbaye. A palavra “Agbaye” em iorubá significa universal.
Descolonização do currículo e trabalho colaborativo
O Projeto Político–Pedagógico (PPP) da escola envolve o jogo de origem africana como um instrumento de descolonização do currículo e de inclusão, por suas características que preconizam a acessibilidade, cooperação e companheirismo, em detrimento da competição e do individualismo.
O Mancala é um jogo de estratégia, cujo objetivo é semear e colher o maior número possível de sementes. Jogado em tabuleiro de madeira, é rodeado por cavidades, nas quais as sementes são colocadas e retiradas.
Uma das habilidades e competências necessárias para a apreensão do jogo é a realização de operações matemáticas básicas, como adição e subtração. Dessa forma, aliamos a atividade lúdica ao aprendizado de conteúdos do componente curricular.
Na situação de aprendizagem imaginada, os estudantes também poderiam desenvolver seu repertório cultural; empatia e colaboração; respeito à diversidade; autonomia e estratégias para resolução de problemas, aproximando-se assim da matriz de saberes que orientam o currículo.
Também estabelecemos uma articulação com a concepção que nosso PPP tem sobre educação de qualidade, sendo nossa responsabilidade garantir aos estudantes uma aprendizagem significativa, onde seus interesses e potencialidades são considerados como pontos de partida para a construção do conhecimento científico, histórico e intercultural.
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Escola: espaço de direito!
Para desenvolvermos o material, tivemos a oportunidade de aprofundar nossa reflexão sobre a construção de materiais pedagógicos acessíveis (MPA) em uma formação de educadores desenvolvida pelo Instituto Rodrigo Mendes.
Entendemos que tais recursos facilitam a inclusão escolar e eliminam barreiras ao aprendizado: ao levarmos em conta as singularidades de cada estudante, trazemos benefícios a todo o grupo. O Mancala evidenciou a todos as potencialidades do Junior e eliminou barreiras ao aprendizado.
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Diante das reflexões propostas na formação, baseadas na legislação vigente, nos estudos sobre o Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA) e nos avanços nos direitos das pessoas com deficiência, rapidamente traçamos o caminho do nosso MPA.
O nosso Mancala foi construído com a utilização de uma cortadora a laser, com um tabuleiro maior do que o convencional e com cavas interligadas e com paredes rasas, para garantir ao Júnior realizar a movimentação das peças com autonomia.
Estas também foram confeccionadas em um tamanho maior do que o usual para facilitar o manuseio e a condução entre as casas. Dessa forma, o material foi planejado para garantir a equiparação de oportunidades e permitir que todos pudessem jogar juntos.
Valorizando potencialidades
Ao apresentarmos o jogo à turma, percebemos que os estudantes desenvolveram autonomia e trabalharam em conjunto. Com o material, conseguimos eliminar barreiras e proporcionar um aprendizado mais significativo para todos.
O desafio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) tanto no caso do Júnior, como no dos outros 650 estudantes matriculados, é justamente o de garantir que a escola cumpra seu papel de ensinar a todas e todos e com qualidade.
A experiência agregou repertório e reflexões em nosso fazer pedagógico, mostrando caminhos para qualificarmos a nossa produção de materiais acessíveis. Revelou aos estudantes, à família do Junior e aos professores que as potencialidades e habilidades intrínsecas devem ser levadas em conta na elaboração de estratégias pedagógicas que beneficiam toda a turma.
Este relato de experiência é fruto da participação dos autores na edição 2019 do Materiais pedagógicos acessíveis – formação em serviço para educadores envolvidos no processo de escolarização de estudantes público-alvo da educação especial em escolas comuns, desenvolvida pelo Instituto Rodrigo Mendes em parceria com a Fundação Lemann. O objetivo é contribuir na construção de materiais pedagógicos acessíveis que auxiliem o processo de ensino-aprendizagem de estudantes com e sem deficiência.