Qual a importância do verdadeiro teatro acessível?

Atriz fala da importância da cultura acessível, assim como a educação inclusiva, para uma sociedade que abranja, sem exceção, todas as pessoas

Nem tudo são flores no caminho de um artista. Há muitas pedras, principalmente no início de sua trajetória. Se não conhecemos ninguém do meio artístico, geralmente se torna ainda mais complicado e demorado sermos vistos, reconhecidos e termos nossa arte valorizada; claro que há exceções.

Perdi a conta de quantas vezes trabalhei de graça, ou até mesmo paguei para trabalhar, pela simples necessidade de expressar a minha arte, de tocar as pessoas, de trocar experiências, de ser vista, reconhecida. No teatro, pelo menos aqui no Brasil, essa prática é muito comum à maioria das atrizes e atores, infelizmente.

Quando comecei a fazer apresentações teatrais, além do amor pelo palco, pela linguagem e por aquela troca de energia com o público, entendi que era o caminho mais fácil para começar a atuar, sem ter que esperar por um convite de algum diretor que curtisse meu trabalho, ou por um milagre, como eu costumava pensar. O teatro me deu essa possibilidade, pois poderia fazer uma peça em qualquer lugar: na rua, num bar, num espaço de apresentação artística do governo onde eu não precisasse pagar um aluguel absurdo.

Duas atrizes contracenam em ambiente ao ar livre, sendo observadas ao fundo por algumas crianças e adultos.  
Fonte: Escola de Gente

Democracia teatral

“O teatro é super democrático”, eu costumava dizer desde 1997, quando iniciei minha carreira nos palcos. Mas dez anos depois, em 2007, minha visão sobre o tema mudou completamente quando assisti a um espetáculo teatral totalmente acessível: “Ninguém mais vai ser bonzinho”, do grupo Os Inclusos e Os Sisos, da Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, organização que tem como propósito colocar a comunicação como instrumento de inclusão social. Naquele dia me deparei com uma peça com intérprete de Libras, legenda eletrônica, audiodescrição, acessibilidade para pessoas com deficiência física, material do espetáculo com opção em braile, além da entrada, que era totalmente gratuita, a fim de contemplar quem não tinha condições financeiras de arcar com o ingresso.

Nesse momento, compreendi o que era um teatro democrático. Mais do que isso: um teatro acessível, ou seja, pra todas as pessoas. E, ao contrário do que muitas pessoas pensam, a inclusão não é “para pessoas com deficiência”, expressão que já ouvi muito. Na verdade, é uma peça, um espaço, que não exclui ninguém, o que é bem diferente. Ver pessoas cegas, surdas, com limitações físicas, acompanharem o espetáculo, divertindo-se em pé de igualdade com qualquer pessoa, foi uma das experiências mais incríveis que tive, e olha que eu estava somente como espectadora naquele dia. Então, me dei conta de que o meu teatro, o teatro que eu conhecia e julgava “democrático”, estava longe de sê-lo.

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Educação e cultura inclusiva

Há um caráter muito pedagógico no teatro acessível. É uma experiência educacional complementar à educação inclusiva porque forma pessoas para uma sociedade que abrange todos os cidadãos. E, claro, quem entende isso também sabe a importância do sistema de ensino brasileiro se manter inclusivo, sem exceções.

É preciso repensar muita coisa no que diz respeito à inclusão, e uma delas é a cultura. Depois de assistir a essa peça, meu olhar mudou completamente e minha chave virou de uma forma que acabei entrando para companhia; aquela mesma da qual assisti e que me tocou tanto.

Faço parte de Os Inclusos e os Sisos desde 2011, levando teatro inclusivo pra todo Brasil. No meu primeiro ano de companhia, tive a honra de atuar no primeiro espetáculo plenamente acessível para infância e juventude do país, “Um amigo diferente?”, que era o símbolo da Campanha “Teatro Acessível. Arte, Prazer e Direitos”, criada pela Escola de Gente.

Durante cena, um ator está sentado em uma cadeira, utilizando microfone e boné, cercado por três outras atrizes que usam grandes óculos coloridos de brinquedo. Fim da descrição.
Fonte: Escola de Gente

O grupo de teatro é o único no mundo que realiza todos os seus espetáculos de forma acessível, utilizando mais de dez recursos de acessibilidade física e comunicacional simultaneamente. A iniciativa visa promover autonomia e participação de todas as pessoas, principalmente de quem tem deficiência, mobilidade reduzida e baixo letramento, entre outras condições, na vida cultural de suas cidades.

Teatro acessível

Após esses dez anos de companhia, uma das coisas mais gratificantes é ouvir, ao final de cada espetáculo, agradecimentos sinceros e emocionados de adolescentes, crianças e adultos, às vezes com 50 anos ou mais, que estão ali, pela primeira vez, assistindo a uma peça, simplesmente pelo fato de não terem tido oportunidade antes. Seja porque o teatro não contemplava uma estrutura adequada para recebê-las, seja porque o espetáculo não estava adaptado, com as medidas de acessibilidade na comunicação necessárias para o entendimento por todos, ou por conta do valor inacessível do ingresso.

O Dia Nacional do Teatro Acessível, comemorado em 19 de setembro, é importante para frisar que todo teatro deveria ser acessível, e que esse modelo que conhecemos há séculos, está muito longe disso.

Mas, como nunca é tarde pra acordarmos e fazermos o que é certo, ainda é possível e extremamente necessário ampliar o nosso olhar em relação às outras pessoas e entender que somos diferentes. Temos necessidades e limitações distintas e é preciso contemplar a todo mundo, sem exceção. Afinal de contas, de acordo com a própria lei, o acesso à cultura, assim como à educação, é um direito que vale a todo ser humano. Então, eu te pergunto, reproduzindo uma frase do livro de Claudia Werneck, fundadora da Escola de Gente: “Quem cabe no seu todos”?

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Mariana Rebelo é atriz e roteirista e atua na companhia Os Inclusos e os Sisos – Teatro de Mobilização pela Diversidade da Escola de Gente.

 

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