Sou professora do ensino fundamental na Escola Municipal Presidente Castelo Branco, no município de Mesquita (RJ). Em uma turma do 2º ano, desenvolvi uma atividade com o uso da Lata de criação de histórias, um material pedagógico acessível que permite a criação de narrativas em grupo. Minha proposta era estimular os estudantes a produzirem, além de uma história contada, um texto coletivo. Assim, a prática trabalhou tanto a oralidade quanto a escrita.
A turma era composta por 26 alunos, de 7 a 8 anos. Um dos garotos tinha autismo e uma menina, deficiência intelectual. Para realizarmos a atividade, a classe foi dividida em três grupos. Cada um ficaria responsável por uma parte da narrativa, isto é, começo, meio e fim. Em seguida, distribui a eles três tipos bandeirinhas e expliquei o que cada uma significaria: azul para concordar, vermelho para opinar e verde para sinalizar o fim da produção textual. A intenção de usar as cores era organizar a dinâmica da atividade, para que todos participassem. Imaginei que eles ficariam inibidos, mas durante a prática, fiquei surpresa com a desenvoltura e envolvimento da classe.
Criando histórias na lata
A atividade começou com o primeiro grupo decidindo como seria o início da história. Para criar a narrativa, as crianças dispunham de figuras com personagens e cenários, coladas com ímãs nas portas dos armários. A proposta era, então, resumida para o restante da classe, que utilizava as bandeiras para opinar. Esse processo foi repetido até que a turma chegou a um consenso. Depois, o primeiro grupo colocou os ímãs na lata, no lado correspondente ao início. Por fim, eles escreveram seu trecho da narrativa e utilizaram a bandeira verde para sinalizar o fim do trabalho. Essa dinâmica foi repetida para as demais etapas da história.
Outro ponto interessante durante o uso da Lata de criação de histórias foi a curiosidade despertada pela presença do braille nos ímãs. Muitos ali não conheciam o sistema de escrita. Aproveitei a situação para conversar com eles sobre o tema. Disse que o braille era um sistema de escrita composto de seis pontinhos e que permitia ler por meio do tato.
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O autor somos “nós”
A última etapa da atividade foi a união das três partes. A história ficou assim:
Era uma vez, um lindo dia de sol. Era também o dia dos pescadores! O menino ia para o mar pescar, mas no caminho encontrou uma casa e um gatinho. Ele se apaixonou pelo gatinho e resolveu ficar com ele. O menino trabalhou muito e conseguiu comprar uma casa para ele na cidade. Levou o gatinho para morar nessa cidade.
Os alunos enfatizaram que o menino era muito pobre, mas não inseriram isso no texto. Ainda destacaram que o personagem não tinha onde morar, mas que venceu na vida e comprou uma boa casa. Reflexo dos sonhos deles!
Ao reescrever a narrativa no quadro, perguntei quem era o autor. Alguns falaram: “Eu!”. Outros disseram: “Nós!”. Então, escrevi no final do texto: turma 202. Percebi que muitos estudantes ficaram em dúvida, pois estavam acostumados a associar autoria a apenas um nome. Mas a verdade é que houve uma confusão deles em identificar o “nós”. Quem respondeu “eu”, não queria afirmar uma produção individual, mas afirmar que participou.
Aprendizado coletivo
Davi, que tem transtorno do espectro autista (TEA) e Anna Júlia, com deficiência intelectual, participaram de toda a atividade. O garoto interagiu bem com os colegas, oralizou, respeitou as decisões da turma e a composição da história. Depois, criou a sua própria narrativa. Ele pegou um pote com brinquedos de montar, foi para frente da classe e usou a lata sozinho. Essa foi sua forma de expressar que tinha entendido os elementos centrais de uma narrativa. Já Anna Júlia participou e no final conversou comigo para tirar dúvidas. Percebi que ela interagiu do jeito dela, observando.
A partir dessa aula, meus alunos passaram a cobrar atitudes democráticas em sala de aula. Quando questionados sobre algo, agora, eles são unânimes: querem votar!