Família luta para garantir ao filho autista mais do que matrícula em escolas inclusivas

Ednéia e Fernando contam a trajetória para fazer com que o filho Gabriel, de oito anos, possa desenvolver sua autonomia, participar das atividades escolares e aprender

Homem branco, com cabelos castanhos e óculos pretos, segura no colo um garoto branco, de cabelos castanhos curtos. O menino usa camiseta branca com um logo do lado direito escrito Biritiba Mirim e bermuda preta. Ao lado dos dois está uma mulher branca, com cabelos loiros e camisa vermelha. Os três estão sentados em um sofá cinza.
Fernando e Ednéia dos Santos com o filho Gabriel. “Queremos que ele possa crescer, ter autonomia, trabalhar e viver plenamente”, diz a mãe. Crédito: Elisângela Fernandes

Gabriel tinha dois anos quando Ednéia e Fernando dos Santos foram atrás de especialistas para saber se ele era uma pessoa autista. A suspeita foi levantada pela tia do menino, que é pedagoga e percebeu atrasos em alguns marcos do desenvolvimento. “Ela viu que ele não engatinhava, ficava nervoso e batia a cabeça no chão. Ficamos em choque com a possibilidade, mas buscamos ajuda de um neurologista para ter certeza”, conta a mãe. 

A família, que reside em Biritiba Mirim, na região metropolitana de São Paulo, conta que teve acesso a dois especialistas da mesma área e notou a diferença de discurso sobre o futuro da criança, mesmo sem ter o diagnóstico definido. “O primeiro disse que Gabriel não se desenvolveria e seria dependente de nós a vida toda. Já a segunda doutora afirmou que ele pode ter autonomia, avançar e ser aquilo que quiser ser, basta ter acesso ao que precisa”, diz o pai. 

O que foi dito pela segunda médica serviu para reforçar a ideia de que eles deveriam estimular o filho a desenvolver todo o seu potencial. “Sempre acreditamos no nosso filho, mesmo naquela época em que não sabíamos o que era o autismo. Era algo novo para nós, mas nunca quisemos pensar ou agir de forma que ele fosse um problema ou não pudesse evoluir. Queremos que ele possa crescer, ter autonomia, trabalhar e viver plenamente”, diz Ednéia. 

A importância da Educação Infantil para o desenvolvimento 

Uma das recomendações médicas foi colocar o Gabriel em uma creche, local onde ele poderia se desenvolver. As informações sobre as experiências vivenciadas ali também poderiam ajudar os especialistas a fechar um diagnóstico. “A médica não pôde determinar em pouco tempo se de fato ele era uma criança autista, mas havia grande possibilidade, por isso a indicação de buscar a creche”, conta a mãe. 

Esse foi o ponto de mudança nos planos dos pais, uma vez que a ideia inicial era acompanhar de perto os primeiros anos do menino e matriculá-lo na escola apenas aos quatro anos, idade em que é obrigatório o ingresso no ensino regular. “Eu fui mãe nova, então não consegui aproveitar como gostaria os primeiros anos dos meus outros três filhos. Hoje eles já são adultos, sendo que apenas um ainda mora conosco. Quando Gabriel veio, eu já era mais madura e havia planejado curtir esse momento”, diz. 

Conforme orientação médica, os pais iniciaram o processo para que o filho ingressasse na creche o quanto antes. Nesse momento, apareceram alguns obstáculos para conseguir a vaga. Entre o casal, Fernando sempre esteve à frente da busca por serviços de saúde e educação, com apoio de Ednéia. O pai buscou a creche municipal mais próxima e não teve êxito. Ele prosseguiu por outras unidades da rede, também sem sucesso. “Nas creches, eles sabiam da possibilidade do autismo, então sempre tive negativas ou pedidos para aguardar, mesmo sendo o nosso direito. Somente depois de ameaçar ir à justiça, disponibilizaram uma vaga em um local longe da nossa residência”, diz o pai. 

Apesar da dificuldade imposta pela distância, o pai sabia da importância de que Gabriel estivesse na creche e decidiu que o levaria de carro todos os dias. Essa rotina fez com que Fernando também mudasse um pouco a sua vida profissional. Antes, ele tinha como atividade principal uma barbearia. Agora, para conseguir apoiar na logística do filho, atua como motorista de aplicativo apenas nos horários em que está livre, principalmente nos fins de tarde e à noite. “Eu quero estar junto de Gabriel, por isso escolhi outra atividade. De qualquer forma, ainda faço serviço de barbeiro aos sábados e nas manhãs de domingo”, conta o pai. 

A família diz que frequentar a creche foi, de fato, importante tanto para o desenvolvimento de Gabriel quanto para a investigação do autismo confirmado após análise de diferentes médicos, que também levou em conta os relatórios pedagógicos produzidos nesse período. “As professoras tinham sensibilidade para receber meu filho e saber das limitações e do que ele precisava”, relata Fernando.  

Ao avaliar positivamente o período em que o menino esteve na creche, Fernando destaca o que, para ele, é o fiel da balança para essa e todas as outras experiências vivenciadas pelo filho: estabelecer vínculos. “Construir relações de confiança com Gabriel é muito importante, pois traz segurança. Se ele se sentir bem com a pessoa e com o espaço, consegue participar de diferentes atividades. A pessoa precisa ouvir, ter calma, entender os limites dele e mostrar que estão juntos no que estão fazendo. Caso contrário, Gabriel ficará nervoso e não fará nada”, afirma o pai. 

Conexões que fortalecem a troca de aprendizados 

Ao longo desses últimos oito anos, a família procurou aprender mais sobre o autismo. Uma das primeiras ações foi buscar conhecer outras famílias com crianças autistas. O pai se encarregou disso e localizou um grupo de mães que reside em cidades vizinhas. “Inicialmente, tentei participar do grupo de WhatsApp, mas só aceitavam mulheres. Consegui entrar usando o contato da minha esposa e até hoje sigo acompanhando os relatos e informações compartilhadas”, conta Fernando. 

Depois de algum tempo, mesmo estando em grupos de apoio e pesquisando bastante na internet e em livros, Fernando quis saber mais e resolveu conhecer de perto essas famílias. Para tanto, voluntariou-se para cortar o cabelo de crianças autistas. “Eu atuo há muito tempo como barbeiro, por isso me prontifiquei a cortar o cabelo dos filhos de pessoas do grupo, sempre aos domingos. Fiz isso durante cerca de um ano e conheci crianças que requerem diferentes níveis de suporte. Queria saber o que os pais fazem para ajudar os filhos e como lidam com diferentes situações”, relembra. 

Ao ter acesso aos grupos, a família também foi informada de alguns direitos como, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante o pagamento mensal de um salário-mínimo à pessoa com deficiência de qualquer idade. “Fomos atrás desse benefício, e é com ele que hoje conseguimos pagar um plano de saúde com uma boa rede de atendimento e que oferece o necessário”, conta a mãe. Ela acredita que observar como outras famílias apoiavam seus filhos autistas, os diferentes tipos de suporte que a escola ofereceu e as terapias que Gabriel realizava foram fatores que contribuíram para que ele desenvolvesse a comunicação verbal aos cinco anos. 

Outro ponto de apoio importante para os pais é a mãe de Fernando, que, em momentos de necessidade, cuida da criança e permite que os pais realizem suas atividades profissionais ou estejam em compromissos nos quais Gabriel não pode estar. “A avó dele nos apoia muito e se preocupa bastante. Ela nos ajuda a conseguir os suportes necessários e fica com ele com total carinho”, conta Ednéia. No entanto, ela comenta que muitas pessoas próximas ao casal não conseguiram estabelecer uma relação de vínculo com Gabriel, o que resultou muitas vezes em um distanciamento de círculos sociais que antes eram próximos.  

Quebra de estereótipos em uma rotina compartilhada 

Ao longo dos últimos anos, foram muitos os momentos em que Fernando sentiu na pele os efeitos de uma sociedade que atribui apenas às mulheres a tarefa de cuidar e acompanhar os filhos. Além da recusa inicial para ingressar no grupo de WhatsApp pelo fato de ser homem, sua presença foi questionada em outros espaços, como clínicas e reuniões escolares. 

“A rotina é difícil para os dois [mãe e pai]. Mas as pessoas ainda têm a visão de que é a mãe quem sempre deve estar presente. Quantas vezes ouvi ‘Cadê a mãe dele? Gabriel tem mãe? Ela não vem? Ela está com algum problema?’ Claro que ele tem mãe, mas eu decidi estar sempre presente na vida dele e correr atrás do que for preciso. Geralmente, o pai não sabe de nada, onde o filho estuda, do que ele gosta, qual o nome da professora, mas escolhi não ser assim. Não foi fácil quebrar esse tabu de ser a pessoa que está à frente. Hoje se acostumaram, porém no começo foi duro de entenderem, principalmente por eu ser pai de uma criança autista, que sempre tem a mãe ou a avó nas lutas do dia a dia”, relembra Fernando. 

O cotidiano da família tem a semana dedicada às atividades de Gabriel. Todos os dias pela manhã, Fernando o leva para escola. Às segundas, quartas e sextas-feiras, após a aula, ele realiza terapias em Mogi das Cruzes, cidade vizinha. Já às terças e quintas, faz no contraturno o atendimento educacional especializado (AEE). 

Enquanto Fernando concilia o trabalho de motorista com o de barbeiro nos finais de semana, Ednéia mantém o salão de beleza que fica na frente da residência. Ela também precisa ajustar a atividade profissional com a rotina da família. Ainda assim, consegue atender os clientes durante a semana e aos sábados, dia com maior movimento.  

A mãe destaca que a parceria com o marido é fundamental para que os dois consigam fazer suas atividades e as do filho. “Em nosso relacionamento, tentamos não sobrecarregar nenhum dos dois. Vamos encontrando maneiras de dividir as tarefas diárias, sempre para o bem de Gabriel”, fala a mãe.   

Estabelecer vínculos para aprender 

Em 2021, foi o ano em que Gabriel iniciou na pré-escola. Naquele momento, a família e a escola perceberam que a criança precisava de apoio em sala de aula. De acordo com Fernando, a rede não tinha profissionais suficientes para oferecer esse suporte, por isso, teve de acionar a Defensoria Pública do estado para garantir esse direito. Desde então, o filho tem uma pessoa que o apoia no dia a dia escolar. 

A mãe e o pai contam que uma das principais barreiras para o avanço do filho é o estabelecimento de um vínculo entre o professor auxiliar e Gabriel. “No primeiro ano da pré-escola, uma pessoa que atuava na merenda foi remanejada para esse cargo. Ela tinha formação pedagógica, mas não exercia a função e voltou naquele momento para acompanhar o menino. Ela construiu vínculo com ele e o ajudou a fazer as lições e outras atividades determinadas pela professora regente”, afirma Fernando. 

O pai compartilha que, depois disso, percebeu oscilações na forma como os profissionais se relacionavam com o filho, o que, segundo ele, prejudica o avanço escolar. “No segundo ano da pré-escola, mudou a professora auxiliar e vimos que não deu certo. Gabriel não se sentia bem ao lado dela e se negava a permanecer na sala e a fazer qualquer atividade com ela. Pedimos uma mudança para gestão, porém disseram que isso não seria possível”, lembra.  

A única alternativa encontrada pela família foi pedir a transferência de Gabriel do período da tarde para o da manhã, o que, segundo a família, resolveu, já que a profissional do turno matutino conseguiu estabelecer vínculo com o estudante e motivá-lo.  

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Nos anos seguintes, as trocas de profissionais continuaram a ser um tema desafiador para os pais, que sempre buscam dialogar com a escola. “A nossa luta principal tem sido garantir que Gabriel tenha esse professor preparado, com vontade [de ensinar] e que consiga criar uma boa relação com ele. É um direito nosso, mas em alguns momentos não conseguimos ter sucesso”, diz o pai. 

Neste ano, Gabriel está no 3º ano do Ensino Fundamental, e a família avalia que tem sido um período de boas experiências, o que creditam ao professor auxiliar e à professora regente. Segundo os pais, houve uma “boa articulação” entre os dois profissionais, da mesma forma que conseguiram estabelecer o vínculo com a criança. “Diferentemente do ano passado, hoje Gabriel tem vontade de ir para a escola, de brincar com os amigos e, aos poucos, vem avançando. Ele faz as atividades na escola, traz para casa as lições, que fazemos juntos, e mostra o que aprendeu”, conta orgulhoso Fernando. 

O pai acredita que o papel da escola não é apenas de ter o estudante naquele espaço, mas garantir que ele aprenda e participe igualmente com os demais. “Já aconteceu, em outros anos, de eu perguntar no fim da aula se foi tudo bem e responderem que sim. Mas o ‘bem’ para alguns é o meu filho estar sentado, quieto, sem ‘atrapalhar’ os demais. Para mim, o ‘bem’ é ele aprender e participar. Mesmo que não dê certo em um dia ou outro, quero ver a escola buscando maneiras de isso acontecer. É isso que está ocorrendo este ano, os professores buscam fazer acontecer”, diz. 

A professora regente da turma do filho do casal é Josiane Freitas, que atua na área há 17 anos, mas tem, em 2025, a primeira oportunidade de trabalhar com um estudante autista. Quando questionada sobre quais fatores têm contribuído para desempenhar um bom trabalho e receber esse reconhecimento da família, ela responde que a primeira coisa é conhecer o estudante. “Gabriel é um menino que, na escola, ainda se comunica pouco verbalmente, então temos de estar atentos para tentar entender as outras formas de interação: o olhar, o apontar algo ou mesmo as reações que ele demonstra”, conta. 

A educadora destaca que a existência de uma rotina contribui com a organização de toda a turma, mas principalmente a de Gabriel. “Dando um passo por vez, conseguimos evoluir. Hoje, Gabriel faz as mesmas atividades que os outros, mesmo que eu precise fazer uma mudança ou outra, ele está aprendendo junto. Da mesma maneira, ele tem feito novos amigos e está interagindo com outros colegas com os quais não tinha contato, o que não acontecia antes”, diz a educadora. 

Ter a família como parceira é algo que a professora considera fundamental. “A família é uma parte muito importante da escola. Ela não pode ser a única responsável pelo desenvolvimento dos filhos e nem ser ausente nesse processo. No caso de Gabriel, tenho na figura de Fernando esse apoio para saber como está o garoto, dizer do que ele precisa e contar como está sendo cada avanço dele. Isso me ajuda a planejar as aulas, a respeitar o tempo dele e considerar caminhos mais viáveis para garantir a aprendizagem dele e de todos”, conta Josiane, que mantém contato direto com a família de forma presencial e por celular.  

Para a família do estudante, o trabalho dos professores demonstra que a inclusão escolar é possível. “Eu, como pai, vejo que as duas professoras têm vontade de fazer acontecer”, diz Fernando. 

Depois de buscar informalmente diversas informações sobre autismo, o pai quer ampliar seus conhecimentos teóricos e práticos para apoiar o filho nos estudos. Por isso, começou a faculdade de pedagogia neste ano. “Não quero exercer a profissão, só quero ficar preparado para acompanhar meu filho naquilo que ele precisa para avançar”, comenta Fernando. 

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