Escola do Amazonas valoriza a cultura indígena

Ao trabalhar leitura, escrita e oralidade usando lendas e histórias locais, projeto da EMEF Salum de Almeida aproximou a comunidade escolar das tradições dos sateré-mawé

Terra do Guaraná. É assim que Maués é conhecida, por manter as tradições de cultivo e processamento dessa fruta, um trabalho iniciado pelos indígenas sateré-mawé, que habitam a região. A cidade fica 260 quilômetros distante em linha reta de Manaus, capital do Amazonas. O acesso ao município ocorre apenas por via aérea ou fluvial. De avião, a viagem leva cerca de 45 minutos. Mas, de barco-recreio, o deslocamento pode demorar entre 16 e 18 horas.  

Apesar de ser um tema importante para a cultura local, nem todos os estudantes da EMEF Salum de Almeida conheciam as histórias que envolvem a origem do cultivo do guaraná e a participação dos sateré-mawé nesse processo. A gestão da escola, por sua vez, não sabia quantos, dentre seus 550 alunos dos anos finais do ensino fundamental, tinham relação direta ou indireta com os povos indígenas. Ainda que a instituição esteja situada na zona urbana, muitos dos estudantes moram na zona rural, em comunidades ribeirinhas e em terras indígenas sateré-mawé. Do total de matrículas, 21 são de estudantes público-alvo da educação especial, a maioria com transtorno do espectro do autismo (TEA) e deficiência intelectual. 

Para mudar esse cenário e aproximar toda a comunidade da cultura local, foi desenvolvido o projeto “Pescadores de histórias, escritores de memória”. A proposta foi idealizada pelas professoras de língua portuguesa Etelvina de Lira Gomes e Daniele Pessoa, com o objetivo de trabalhar leitura, oralidade e escrita com os estudantes de 8º e 9º anos a partir de lendas, contos e histórias locais.  

Esse resgate da cultura indígena contribuiu para que toda a escola pudesse desenvolver um olhar mais amplo sobre a importância de trabalhar o território e conhecer a diversidade de seu público, em especial aqueles estudantes que até então não se autodeclaravam indígenas. 

Para Vanderlúcia Ponte, professora adjunta da Universidade Federal do Pará (UFPA) e integrante do Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas (Gepi), uma escola que preserva a cultura indígena preserva a própria história. “Cada criança e jovem precisa entender a contribuição dos povos originários para a nossa cultura, o nosso hábito alimentar e a nossa organização política e econômica. Toda escola precisa trabalhar essa temática, pois faz parte da formação brasileira e está prevista na Lei nº 11.645/2008, que determina o estudo da história indígena na educação básica.”

Oralidade e produção textual como preservação cultural  

Em 2023, ao participar da formação “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), a escola se viu provocada a mapear as barreiras à aprendizagem e propor intervenções para eliminá-las (saiba mais sobre a iniciativa do IRM no fim do texto). 

“Identificamos que os estudantes têm muita dificuldade de acessar a nossa própria literatura e que as histórias tradicionais não são valorizadas pela escola e por eles. Outro ponto era a necessidade de aproximar as famílias da escola e trabalhar a leitura, a oralidade e a escrita”, conta a professora Daniele. 

“O guaraná é tradicional de Maués, sendo a nossa principal atividade econômica, o que dá fama à cidade e conta as nossas origens sateré-mawé”, comenta a professora Etelvina. Mas isso não estava no cotidiano escolar dos estudantes.  

Ao iniciar o projeto, as duas professoras de língua portuguesa, Daniele e Etelvina, promoveram rodas de conversa com suas turmas para que todos pudessem compartilhar as lendas, os contos e as histórias que seus familiares contavam. Essa atividade permitiu que elas levantassem os conhecimentos prévios dos estudantes e verificassem como estavam as habilidades ligadas à escrita e à oralidade.  

O passo seguinte foi a apresentação de novas lendas e contos aos alunos. As professoras pediram aos estudantes que pesquisassem junto a seus familiares ou com pessoas mais velhas da comunidade. Cada um gravava as histórias em áudio e as apresentava durante a aula, em uma roda de conversa. 

“Esse foi um momento muito legal, pois vimos a participação de mães, pais e avós e conseguimos estreitar o laço com eles”, diz Etelvina. “A estratégia ajudou no engajamento de todos, pois muitas vezes ficamos restritos aos livros vindos do Sul ou de outras regiões. Nossos alunos ficam sem conhecer nossa própria história. Estudar algo sobre a nossa realidade gera muito mais interesse”, complementa. 

Renata Grinfeld, mestre em educação na área de políticas públicas e gestão pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e coordenadora do “Projeto Nós, Iniciativa pela Educação Integral em Territórios Amazônicos”, da Roda Educativa, destaca a importância de valorizar os saberes dos povos indígenas. “Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as formas de linguagem são a escrita, a leitura e a oralidade. Mas, tradicionalmente, os não indígenas não valorizam a oralidade como conhecimento. Temos muito a aprender com os povos originários e com os quilombolas, que também têm essa tradição oral muito forte. Essa é uma estratégia muito bacana de realizar em sala.” 

Segundo Etelvina, uma parcela considerável dos estudantes ainda enfrentava dificuldade com a produção textual, reflexo do período da pandemia que restringiu o acesso dos jovens à escola, em razão do difícil acesso à internet na região. A fim de reverter a situação, a sequência didática envolveu a divisão das turmas em pequenos grupos, com quatro ou cinco integrantes, no qual cada um deles trabalhou uma lenda ou conto tradicional, como os do Curumin, do Guaraná, do Tincoã e do Ancelmo.  

“Os estudantes escreviam as histórias que pesquisaram e ouviram nas rodas de conversa. Em paralelo, nas aulas de arte, o grupo responsável por cada texto desenvolveu cartazes e desenhos sobre o enredo, que serviu posteriormente para uma futura apresentação no sarau”, explica a professora. 

Ao fim de cada produção textual, foram feitas revisões coletivas dentro dos grupos, com cada aluno analisando o texto de um dos colegas. Foi uma maneira de colocá-los no lugar de leitores, percebendo como uma mesma história pode ser escrita de maneiras diferentes. Também atuaram como editores, refletindo sobre como melhorar a escrita do outro. Após essa etapa, as professoras fizeram a revisão de cada texto para poder avaliar as necessidades individuais de aprimoramento e planejar as próximas atividades envolvendo produções textuais.  

Vanderlúcia reforça que, além das intenções pedagógicas, a oralidade e a produção textual apoiam a preservação do patrimônio cultural. “A prática de recuperar oralmente essas histórias e contos e registrá-los por escrito, pensando na realidade desse público da zona urbana, é uma maneira de assegurar que as tradições não caiam no esquecimento e de colaborar para que os estudantes entendam a importância delas para aquele povo.”

 

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Identificação e valorização da língua materna 

Conhecer de fato o público que atende foi outro ganho para a Escola Salum de Almeida. Durante as etapas do projeto, conforme avançavam no contato com as histórias, contos e lendas, alguns estudantes foram revelando a sua proximidade com aquela cultura. “Até então, eu não sabia da origem de muitos dos meus alunos. Temos o Kauã, por exemplo, que depois do início do projeto me contou ser sateré e fluente na língua materna.”  

Percebendo a possibilidade de haver mais indígenas entre o corpo discente, os gestores resolveram fazer um levantamento e contabilizaram cerca de 40 estudantes da etnia sateré-mawé matriculados na unidade. Antes do projeto, muitos não se autodeclaravam indígenas.  

A presença dos sateré foi um dos destaques do sarau, a última etapa da proposta. O planejamento da apresentação ganhou força com a colaboração da professora de arte, que trabalhou com as turmas a coreografia das danças tradicionais e a encenação teatral da lenda do Curumim. A introdução foi feita pelo aluno Kauã em sateré, e outros jovens indígenas cantaram na língua materna.  

“O sarau foi aberto à comunidade. Os familiares sateré trouxeram parte do que usualmente produzem, como pinturas em quadros, brincos e colares. O espaço escolar se transformou em algo confortável para todos, pois percebemos, pela primeira vez, eles conversando entre si, diante de nós, em sua língua materna”, afirma Daniele. 

De acordo com Vanderlúcia Ponte, um projeto que promove o uso da língua materna de parte da comunidade dentro da escola ajuda a preservar a história e a cultura local. “O idioma é um ponto fundamental para a identidade de qualquer povo. Percebe-se a intenção das professoras da Salum de Almeida de alcançar um patamar muito importante: valorizar essas pessoas, trabalhar a cultura de toda a população de Maués e o entendimento e o respeito às diferenças.”  

Saiba mais sobre os sateré-mawé 

Sateré-mawé é um povo indígena que habita a região do médio rio Amazonas em duas terras, uma denominada Terra Indígena (TI) Andirá-Marau, localizada na fronteira dos estados do Amazonas e do Pará, local reconhecido como território original desse povo, e um pequeno grupo na TI Coatá-Laranjal, da etnia munduruku.

Atualmente, eles também são encontrados nas cidades amazonenses de Barreirinha, Parintins, Maués, Nova Olinda do Norte e Manaus. Segundo o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi), em 2020, a população sateré ultrapassava os 16 mil habitantes. A língua materna é a sateré-mawé, que integra o tronco linguístico tupi.

Essa etnia é conhecida por ser a pioneira no cultivo do waraná, como é chamado o guaraná pelos sateré-mawé. Eles criaram o processo de beneficiamento da planta, possibilitando que hoje o fruto seja conhecido e consumido no mundo inteiro. O fruto amazônico nativo desse território é tão importante para eles que aparece no mito fundador desse povo. Desde 2020, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) reconheceu a TI Andirá-Marau como indicação geográfica (IG) para o guaraná nativo, o que identifica o produto como originário de um local, com identidade própria e características que se devem essencialmente a fatores naturais e humanos.

Fonte: Povos Indígenas no Brasil 

O efeito transformador 

Com todas as etapas concluídas, as professoras avaliam que o objetivo de desenvolver a leitura, a escrita e a oralidade foi alcançado. “Conseguimos perceber a evolução de cada participante, tanto na produção textual quanto no desenvolvimento oral, uma vez que eles conseguiram falar na frente dos colegas e compartilhar seus conhecimentos”, relata Daniele, ao citar avanços na construção e ordenação de parágrafos e no uso correto da concordância verbal.  

A professora Etelvina destaca o engajamento e a participação de todos nas atividades propostas. “Eu não tinha noção de que, ao final do projeto, iríamos ver os estudantes com deficiência, os ribeirinhos e os sateré atuando juntos e sendo protagonistas da própria aprendizagem. Provamos para nós mesmos que isso é possível.” 

Outro destaque da iniciativa foi a sua repercussão no projeto político-pedagógico (PPP) da Salum de Almeida. O documento foi revisto e agora tem como um de seus propósitos o resgate e a valorização da cultura local, incluindo o ensino da língua materna a todos os estudantes.   

“Uma escola precisa conhecer o seu entorno e dialogar com ele. Também deve convidar sua comunidade a participar e discutir o projeto político-pedagógico, no qual devem constar princípios e premissas que defendam a formação de professores e a valorização da diversidade, principalmente das identidades, culturas e histórias locais”, diz Renata. 

Para apoiar as mudanças, a escola agora conta com o reforço de dois professores com graduação e que são da etnia sateré-mawé. 

Este ano, a secretaria de Educação do município mapeou em toda a rede a presença de estudantes indígenas e constatou que um número menor está matriculado, de forma espaçada, em outras unidades. A Salum de Almeida é a que recebe a maior parte deles.  

“Para auxiliar essa e as demais escolas, a rede de ensino vem realizando ações de orientação pedagógica aos educadores e iniciou um processo de elaboração de materiais didáticos voltados à cultura indígena. Ambos os trabalhos são feitos por técnicos-professores sateré”, conta Elimara Mendes, coordenadora pedagógica da secretaria. 

Entre as ações realizadas pela rede, a especialista da UFPA destaca a importância de que a produção dos materiais didáticos seja feita por pessoas da própria etnia. “Nessa construção, o ponto inicial sempre será a presença de pessoas daquele povo, daquela cultura. Todo estudante precisa ver sentido em seus estudos. Caso contrário, perde o interesse. Não pode vir material lá do Sul, por exemplo, produzido por pessoas que nunca entraram em uma aldeia, porque os que irão utilizá-lo não vão se reconhecer.”

Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade 

O projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Movimento Bem Maior, Instituto Ambikira e Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.  

Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, que representam as cinco macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).    

No ano passado, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientações e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos inclusivos, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.  

Neste ano, as ações formativas do projeto Alavancas tiveram como público-alvo técnicos das secretarias municipais de Educação. O objetivo era que, ao final do percurso, cada rede elaborasse uma política pública voltada à educação inclusiva. Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas neste ano e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM.

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