Desenvolvido em aulas de educação física em escola de Bauru (SP), projeto resgata diversidade cultural afro-brasileira e discute preconceitos
A sociedade brasileira é uma nação de grande diversidade étnico-racial e cultural e tem forte influência das culturas africanas e indígenas. Elas trouxeram características e costumes tão presentes e enraizados na identidade do país.
De acordo com dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os negros (pardos e pretos) representam a maior parte da população brasileira, somando 54%. Esse índice mantém o Brasil como o país não africano com a maior população negra do mundo, com um número menor apenas do que a Nigéria.
No entanto, ao longo de anos de atuação pedagógica, fui percebendo que essas culturas são pouco abordadas no ambiente escolar. E, quando são, ficam restritas a datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra (em homenagem ao Zumbi dos Palmares), ou a um único componente curricular, geralmente o de história.
Somada a essa pouca visibilidade e entendimento da contribuição das culturas africanas na formação da sociedade brasileira, se encontra o racismo estrutural e institucional. Ele impede que tais culturas sejam vistas numa perspectiva epistemológica e dotadas de conhecimentos milenares que foram e são importantíssimos para o desenvolvimento da humanidade.
Viajando pela cultura africana
Entendendo que é fundamental conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos de outros povos e nações, decidi elaborar o projeto “Viajando pela Cultura Africana”. Ele foi idealizado para turmas do 5º ano do ensino fundamental da Escola Estadual Professor José Ranieri, localizada em Bauru, no interior do estado de São Paulo.
A justificativa para a realização do projeto advém da busca pela valorização da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar de educação física, área na qual sou formada.
Esse anseio é respaldado pelas leis federais 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008, que instituíram a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena em toda a educação básica. Dessa forma, eu me senti motivada para planejar uma ação pedagógica que evidenciasse tais culturas.
A ideia era trabalhar a educação intercultural de forma a contribuir democraticamente com a formação dos estudantes. Isso para que pudessem desconstruir seus próprios pré-conceitos e dialogar sobre as diferenças, respeitando e compreendendo a diversidade cultural presente em nossa sociedade.
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Objetivos de aprendizagem
Para isso, foram trabalhadas diversas atividades dentro do repertório de conhecimentos históricos, geográficos e culturais, despertando nos estudantes o interesse pelos conteúdos e favorecendo a ocorrência de aprendizagens significativas. Pretendi promover durante o processo os seguintes aspectos:
- Desenvolvimento do repertório cultural africano e afro-brasileiro (jogos, brincadeiras, danças, lutas, comidas, instrumentos musicais, idiomas e crenças);
- Desenvolvimento do repertório geográfico (reconhecimento da África como um continente que possui 54 países, conhecimento dos países africanos, localização, diferenças no clima e relevo);
- Desenvolvimento do repertório histórico (surgimento dos primeiros homens e mulheres, dinâmica da diáspora e período da escravização);
- Ampliação do repertório artístico (confecção e contextualização de máscaras africanas, bandeiras dos países africanos, desenhos e traçados);
- Ampliação da literatura africana por meio da leitura de histórias;
- Ampliação das discussões e reflexões acerca de questões relacionadas ao racismo, discriminação e preconceito racial;
- Compartilhamento das aprendizagens construídas em outros espaços (em casa, com os amigos, no recreio da escola);
- Organização de um evento que apresentasse as aprendizagens construídas pelos estudantes durante todo o processo educativo.
Articulação com a BNCC e metodologia
Os conteúdos utilizados ao longo do projeto partiram das unidades temáticas propostas pela Base nacional comum curricular (BNCC) ao longo dos anos iniciais do ensino fundamental. Entre elas: brincadeiras e jogos, lutas e dança de matriz africana.
No início do projeto, utilizei um questionário. A partir dos dados revelados, realizei um planejamento pedagógico para um semestre de aulas voltado para os interesses dos estudantes, como: conhecer mais brincadeiras e jogos, idiomas, comidas, países, danças, lutas, músicas e instrumentos e aspectos culturais em geral.
Percebi nos relatos uma série de estereótipos e pré-conceitos muito comuns no modo de ver a África. Por isso, a cada aula, dialogávamos sobre esses aspectos buscando desconstruir e ressignificar tais conceitos.
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Viagem pela África
Após esse primeiro momento, propus aos estudantes uma “Viagem pela África”. Com a intenção de registrar os conhecimentos construídos durante essa viagem, cada aluno e aluna foi presenteado com um caderno de registro, para que pudesse anotar informações, sentimentos e aprendizados que julgasse relevantes. Solicitei que criassem uma capa com o tema África, e também um autorretrato e biografia como atividade inicial.
Na sequência, apresentei um amplo repertório de brincadeiras e jogos de países africanos, utilizando como material didático os livros Ndule Ndule: assim brincam as crianças africanas, de Rogério Andrade Barbosa, Jogos de Moçambique”, de Prista, Tembe e Edmundo, e “Caminhos da África”, de Adyr Assumpção.
As brincadeiras e os jogos apresentados partiram do contexto do continente africano, os quais foram definidos a partir daqueles que são mais populares nos países África do Sul, Nigéria, Tanzânia, Guiné Bissau, República Democrática do Congo, Gana, Senegal, Moçambique e Botsuana.
No contexto afro-brasileiro, foi apresentado o jogo “G’bala”, que contextualizou o período histórico da escravização, fazendo uma relação com a luta conhecida como capoeira, bem como a contribuição das populações africanas para o desenvolvimento da cultura brasileira.
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A partir disso, em cada jogo ou brincadeira desenvolvida era feita uma contextualização sobre suas características e seu país de origem, dialogando com informações históricas e geográficas.
Após a vivência, partíamos para uma roda de conversa em que os estudantes falavam sobre seus sentimentos e aprendizados. Também era uma reflexão sobre os problemas e conflitos que surgiram no decorrer das aulas.
Durante esse percurso, ocorreu a construção de um jogo da memória, o MemorAfro, em que se enfatizou aspetos criativos, uma vez que cada estudante elaborou uma carta a partir da letra da música “África”, composta em parceria por Sandra Peres, Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, e entoada pelo grupo Palavra Cantada.
Também por meio dessa música, apresentei uma dança denominada “Roda Africana”, pela qual as alunas e alunos puderam vivenciar uma coreografia predefinida e posteriormente recriá-la.
Festival temático
Para que os estudantes pudessem compartilhar os conhecimentos aprendidos e construídos ao longo do projeto e para aproximar os familiares da escola, propus a organização e realização de um festival temático.
Mediei a organização, buscando promover o diálogo entre todas e todos, visto que as ideias deveriam partir de decisões coletivas. Eles escolheram suas funções e decidiram em roda de diálogo o que seria contemplado no festival.
Com muita alegria e entusiasmo, contamos com o envolvimento de toda a comunidade escolar (familiares, funcionários, professoras e gestoras). Eles participaram na feitura das comidas e empréstimos de utensílios e objetos de decoração e nas vivências propostas pelas crianças no festival temático “Viajando pela cultura africana”.
Finalizando o processo, os estudantes responderam a um novo questionário para avaliar o que sentiram com a realização do festival e criaram uma história.
Evidências de aprendizagem
Destaco as evidências alcançadas por meio de relatos dos estudantes e demais integrantes da comunidade escolar. Para organizá-las, dividi em três momentos: “A África é um continente”; “A África mora em mim”; e “Vivendo a África”.
“A África é um continente” diz respeito ao aprendizado sobre compreensão da África como um continente com 54 países, a ampliação do repertório cultural, histórico e geográfico acerca dos países, como também aos conteúdos da educação física.
“A África mora em mim” está relacionado à transformação no modo de ver as culturas africanas e afro-brasileira: (re)conhecimento das raízes e pertencimento étnico-racial; mudanças estéticas apresentadas por meninas que passaram a valorizar seus cabelos naturais; busca pela sua ascendência; mudanças de comportamento percebidos durante as ações do projeto e na organização do festival (como diminuição de atitudes individualistas); ampliação do diálogo e do trabalho coletivo.
E, por último, em “Vivendo a África”, enfatizo a participação da comunidade escolar (estudantes, familiares, professoras, gestoras e funcionários) na construção de aprendizagens significativas no processo educativo.
Envolvimento de toda a comunidade escolar
O envolvimento dos estudantes foi significativo para o projeto por ter sido abordado por meio do contato lúdico. Isso motivou a participação nas aulas e a compartilhar os conhecimentos dentro e fora do ambiente escolar e no festival realizado. Eles registravam em seus cadernos, de forma voluntária, sentimentos e aprendizados utilizando a linguagem que quisessem (escrita, desenhos, colagens).
As professoras de arte e polivalente incluíram em seus componentes curriculares conteúdos de matriz africana que se tornaram relevantes para os estudantes, de forma que escolheram compartilhar esses conhecimentos posteriormente no festival organizado.
Os familiares relataram que a experiência intercultural e intergeracional proporcionada pelos estudantes permitiu que aprendessem mais sobre essas culturas, se aproximassem da escola e interagissem com a família.
Envolver toda a comunidade escolar se tratava de um compromisso profissional que eu vinha buscando desde o início da minha atuação pedagógica. Apesar de ser um grande desafio, consegui concretizá-lo com a realização desse projeto, o qual revelou o quanto toda a comunidade se beneficia com esse envolvimento.
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Escola: espaço de encontros
Também foi possível avaliar a percepção da equipe escolar sobre o desenvolvimento do projeto. Os educadores falaram da experiência do trabalho colaborativo, da integração de conteúdos dentro dos seus componentes curriculares e da transformação da prática pedagógica em relação a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira.
A coordenadora pedagógica destacou a relevância da realização do projeto e o impacto na vida dos estudantes para além da escola, ressaltando que foi uma aprendizagem para a vida.
Os familiares evidenciaram o envolvimento, a motivação, o compromisso e a responsabilidade dos estudantes com as atividades propostas; a importância do aprender brincando e do brincar aprendendo, da escola promover o acesso a outras culturas e dialogar com as famílias, oportunizando que essas contribuam com o processo educativo.
Sabendo que a escola é onde ocorre o encontro de várias culturas, esse projeto buscou e conseguiu estimular a participação da família na escola, fortalecer a identidade étnico-racial dos estudantes, desconstruir estereótipos enraizados sobre o conhecimento dessas culturas, reforçar referenciais positivos afro-brasileiros e desconstruir o preconceito e o racismo.
Suzi Dornelas e Silva Rocha foi uma das 10 vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 de 2020 com o projeto “Viajando pela cultura africana”.