Qual o papel da família na construção de uma sociedade mais inclusiva?

Joyce Renzi relata como as famílias de pessoas com deficiência podem ser agentes transformadores na construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva

Recebemos o diagnóstico da síndrome de down de nosso filho Guilherme somente duas semanas após seu nascimento. A desconfiança de algo fora do script veio ainda na gestação: Gui apresentou restrição de crescimento, o que já nos indicava um tempo de incubadora quando nascesse. Mesmo com essa atenção extra no hospital, foi descartado qualquer diagnóstico, o mesmo só foi confirmado após exame de cariótipo solicitado por mim.

Por que estou contando isso? Porque, até aquele momento, não tínhamos qualquer experiência ou conhecimento sobre deficiências ou síndromes. No momento da notícia, fomos desnudados, tivemos nossa ignorância sobre o assunto exposta. E o desconhecimento não costuma vir só, ele vem acompanhado de medo. É a incerteza do que não podemos prever.

 

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As primeiras informações que a família recebe costumam ser sobre os impedimentos. Pouco se fala nesse início sobre as capacidades e possibilidades que esse filho tem. Entendo que o primeiro capacitismo que a pessoa com deficiência enfrenta é o da própria família, porque, além do desconhecimento (na maior parte dos casos), ela vem acompanhada de uma construção social onde a pessoa com deficiência vivia pouco, não estava no ambiente escolar e muito menos no mercado de trabalho.

O quanto antes essa família se informa sobre as especificidades do diagnóstico e passa a acreditar e oportunizar, ela se torna o primeiro agente de transformação de uma sociedade mais inclusiva.

 

Mãe e pai estão ao redor do filho, que está sentado em uma cadeira azul, com um bolo à sua frente. Todos sorriem para a foto. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

Nossa escolha e vivência após o diagnóstico

Nós sempre levamos o diagnóstico de forma leve: “Ok ele tem essa condição genética e o que podemos fazer? Como podemos aumentar as potencialidades dele e oportunizar mais?”.

Nós escolhemos virar a chave, assumir nossa ignorância e aprender o quanto antes, pois sabíamos o quanto era urgente e dependia de nós.

Outro ponto que acredito ter feito diferença foi ter a percepção de que não podíamos abrir mão da gente ou de fazer novos planos. Esse olhar veio de nossa vivência em salas de espera, onde uma cena comum era de famílias investindo todo o tempo e dinheiro que tinham em tratamentos, terapias e especialistas, enquanto seus próprios sonhos eram abandonados e o cuidado consigo se anulava. O resultado era a desorganização de algumas famílias, e, em algum momento, até mesmo sua dissolução.

Eu notava a quantidade de profissionais especializados e voltados pra os diagnósticos e poucos com trabalho focado na família, e pensava na diferença que teria se essa família também tivesse a oportunidade de ser trabalhada. Foi assim que criei a Rede Orienta.

Protagonismo da família

Nosso intuito é retomar o protagonismo da família, redirecionando o holofote, que antes só mostrava o diagnóstico, para iluminar e realçar a família. Trazer o foco para que ela volte a se enxergar, construa novos sonhos ou ajuste antigos, além de se abrir a outras possibilidades. Acreditamos que, assim, os filhos alçam voos maiores.

Tenho em mente uma mistura de dois pensamentos: de que é preciso colocar a máscara de oxigênio em você antes de cuidar do outro; e de que “as palavras ensinam, mas os exemplos arrastam”.

A partir do momento em que nos abdicamos de nossos sonhos e de outros papéis (como o profissional, por exemplo) e nos apoiamos apenas nos papéis de mãe/pai, se minha única realização for meu filho, ele sente um peso e uma pressão enorme, ele sente que não pode falhar e que precisa “dar certo” e o pior: no que nós pais acreditamos ser o certo.

 

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Como posso cuidar do outro não estando bem?

Como posso lutar e correr atrás de todas as terapias e procedimentos para que meu filho se desenvolva, tenha autonomia e tenha sua própria vida se eu mesmo não tenho a minha, e nem lembro mais do que gosto e quais são meus interesses? Em quem está a máscara de oxigênio?

Quando ele tem uma família que ama viver, que tem sonhos e corre atrás para alcançá-los, se realiza por meio do trabalho e das conquistas, ele tem o melhor exemplo a seguir para cada vez alcançar objetivos maiores. É o tal do exemplo que arrasta.

Nosso trabalho na Rede Orienta é fazer essa desconstrução na família, para que ela entenda que se colocar como prioridade não é egoísmo, se cuidar é também estar melhor antes de cuidar do outro. Nossa proposta é fornecer ferramentas pra que a família possa construir novos planos, ou ajustar sonhos antigos para se adequarem ao novo script da vida, por ela e consequentemente pelos filhos.

A favor da diversidade

É incrível pensar que desde o início, mesmo com uma visão sobre inclusão ainda muito crua, já tínhamos um olhar mais amplo sobre diversidade. Quando criamos um perfil no Instagram pro Gui, para os familiares do Rio de Janeiro e de São Paulo acompanharem seu crescimento e seu dia a dia, colocamos na descrição da página “A maior preocupação dos meus pais é se vou falar biscoito ou bolacha… Mas a graça da vida está na diferença!”, que é como dizia Paulo Freire, “A gente aprende com as diferenças”.

A diversidade é a base para construirmos uma cultura e uma sociedade inclusiva. É necessário lembrar que somos únicos e que não é por eu ter uma deficiência que sou menos capaz. É entender que cada um tem suas habilidades e suas potencialidades, que somos todos diferentes e precisamos respeitar e valorizar essas diferenças.

Incluo, num âmbito muito maior do que as pessoas com deficiência, o grupo LGBTQIA+, mulheres, negros… tudo isso está dentro da base da diversidade.

 

Em parque, pais vestindo camisetas escrito "Inclusão & diversidade & respeito & todos juntos". O pai leva o filho nas costas. Todos sorriem. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

Agentes de transformação

Sempre ressalto que sou muito grata a quem veio antes de nós, e que o Gui tenha nascido numa época em que as escolas regulares também são espaços para meu filho e que crianças com síndrome de down permeiam capas de revistas e anúncios na TV. O mínimo que posso fazer como agradecimento é honrar todas as gerações que vieram antes da gente e continuar lutando por uma sociedade mais inclusiva.

Você pode ser um agente de transformação de várias formas: ao estender a mão a uma família que acabou de receber um diagnóstico e está iniciando na jornada, por exemplo. Fazendo rodas de conversa na escola de seu filho, ou se colocando à disposição para tirar dúvidas no grupo de WhatsApp de pais. Ou explicando de forma empática algo sobre o diagnóstico para aquele seu amigo, vizinho, ou no almoço de família… Mesmo que eles tenham uma fala capacitista. Se coloque aberto para explicar o que for, você também não sabia o tanto que sabe hoje.

Nós todos éramos capacitistas até outro dia, é um processo de desconstrução e aprendizagem diária. Não desista, crie pontes e conte conosco.


Joyce Renzi é diretora do Instituto Lagarta Vira Pupa, fundadora da Rede Orienta e mãe de criança com síndrome de down.

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