De forma inclusiva, o premiado projeto “Aula Pública” adaptou-se à pandemia ao utilizar histórias em quadrinhos com os estudantes como protagonistas
Desde 2010, sou professor de geografia na EMEF Duque de Caxias, na Baixada do Glicério, bairro da região central de São Paulo. A unidade atende mais de 1,1 mil estudantes do primeiro ao nono ano do ensino fundamental. À noite, recebe turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Muitas crianças e adolescentes da nossa EMEF moram ou possuem parentes que vivem em abrigos, cortiços, pensões ou embaixo de viadutos, uma realidade do bairro. Entre os estudantes estão representadas mais de 40 nacionalidades, como sírios, marroquinos, colombianos, angolanos, congoleses, dominicanos e haitianos. Na EJA, a maioria das alunas e dos alunos são imigrantes, principalmente do Haiti.
A região do Glicério sempre foi marcada pela violência urbana e por um quadro social de famílias em situação de vulnerabilidade. Isso causou falta de valorização material e imaterial de tudo que envolve o bairro por parte dos moradores e demais pessoas que frequentam aquela área. Por conta desse contexto, em 2016 iniciei o projeto “Aula Pública”, com o objetivo de trabalhar para que as alunas e os alunos reconhecessem a importância de preservar o espaço público e, através dele, reconhecer o seu papel na sociedade.
Ao longo desses anos, tomamos conta e ocupamos as ruas do Glicério com caminhadas, cortejos, pesquisas de campo, atividades a pé, que se transformaram em aulas expandidas ou públicas em todos os locais educativos.
Inovações para o ensino remoto
Em 2020, o ensino remoto, provocado pela pandemia de covid-19, exigiu que estratégias pedagógicas fossem renovadas e adaptadas mediante aquela realidade. Um desafio para nossas alunas e alunos.
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Com a suspensão das aulas presenciais, as saídas às ruas com a presença dos estudantes não foram mais possíveis. Para dar continuidade com os conteúdos do projeto, utilizamos o “Trilhas de Aprendizagens”, uma coleção de cadernos alinhada ao currículo da cidade e com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que foi disponibilizado pela Secretaria Municipal de Educação (SME) de São Paulo a todas as crianças, de maneira impressa ou on-line.
Logo nos primeiros dias de isolamento, percebi que os estudantes e seus familiares estavam desesperados com a situação de calamidade. A relação com o território estava ameaçada, uma vez que muitas casas estavam sendo derrubadas para dar lugar a novos empreendimentos. Todos da escola e da região estavam assustados com tudo que estava acontecendo.
Dentro desse contexto, decidi dar continuidade às aulas públicas de uma maneira diferente. Tendo o apoio do professor de história, Wilson Almeida, realizei constantemente caminhadas pelo bairro do Glicério, da mesma maneira que antes da pandemia, e todo o conteúdo era gravado e disponibilizado na internet para que os estudantes pudessem ver e rever as aulas. Dessa maneira, consegui levar às ruas e vielas para as telas de todas e todos.
Somado a isso, uma empresa me cedeu o acesso à ferramenta Cosmoted, que possibilitou aos estudantes, por meio de seus computadores ou celulares passearem pelos pontos principais do bairro, onde ocorreram nossas aulas públicas antes da covid-19.
Essa foi uma forma de continuar o processo de valorização do território e de promover o interesse, a participação e a aprendizagem das turmas.
A inclusão sempre presente
Nossa escola é marcada pela diversidade, principalmente pela presença de estudantes oriundos de outros países, como também a de estudantes público-alvo da educação especial.
Desde que entrei na escola, sempre tive a atenção e o cuidado para que esses estudantes fossem incluídos em todas as propostas curriculares. Na pandemia, com as aulas públicas sendo gravadas, alguns estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) do sexto ano me pediram para utilizar outras ferramentas para que pudessem acompanhar os conteúdos.
Sendo assim, com apoio dos próprios estudantes, elaboramos algumas histórias em quadrinhos digitais a partir das aulas gravadas e das fotos do projeto antes da pandemia. Essa foi uma forma viva de situar a paisagem urbana, valorizar a identidade dos estudantes e dar sequência nos conteúdos curriculares.
Esse momento foi muito importante, pois todos participaram e se animaram ao construírem a narrativa do local. Consegui, através dos quadrinhos, mostrar às crianças e adolescentes as histórias do bairro, o espaço geográfico e o mapa de onde vivem, além de torná-los protagonistas do próprio conteúdo, uma vez que usamos fotos deles, registradas durante as saídas antes do isolamento, para transformá-los em personagens.
No ensino híbrido, quando os estudantes começaram a retornar à escola, eles produziram algumas maquetes em caixas de sapatos, construindo plantas baixas de uma casa e uma sala de aula. Elas, posteriormente, foram fotografadas e viraram mais histórias em quadrinhos para serem trabalhas no ano letivo.
Toda essa iniciativa, dentro do projeto “Aula Pública”, ficou conhecida como “A escola pulou o muro em vídeos e quadrinhos”.
Uso da tecnologia
Por ser um público que, na maioria, vive em situação de vulnerabilidade social, o acesso à tecnologia é mais difícil. Durante o ensino remoto, propus conteúdos on-line, que puderam ser acompanhados com um celular, pensando na melhor acessibilidade possível a todas e todos. Além disso, segui o Trilhas de Aprendizagem, pois esse material foi disponibilizado de maneira impressa e, assim, todos puderam acompanhar os conteúdos em casa. Alguns meses depois, foram entregues tablets, com acesso à internet, aos estudantes que tinham dificuldades de conexão.
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Outra atenção que tive para o ensino remoto foi adaptar as atividades oferecidas para os estudantes. Parti em busca de jogos, vídeos e materiais interativos, e até reinventei a linguagem para dar as novas aulas. Foi preciso reaprender a ser mais dinâmico, porque o on-line é diferente da aula presencial. Eu tive que aprender a linguagem da internet para fazer com que todos tivessem interesse, e assim consegui dar andamento nas estratégias planejadas.
A parceria criada com os estudantes ajudou na elaboração das histórias em quadrinhos, já que eles indicavam aplicativos para montagem dos conteúdos.
Avaliação de aprendizagem de cada um
Para mapear a aprendizagem de todas e todos, foi preciso detectar ou fazer uma verificação dos conteúdos e conhecimento aprendidos remotamente, com atividades no Google Classroom.
Como nosso projeto também atinge outras disciplinas, apliquei a avaliação diagnóstica em conjunto com outros educadores. Também conversei com as crianças e pais. Recomendei exercícios do conteúdo do ano anterior e fiz alguns questionários básicos sobre a matéria.
E a partir dos dados desse diagnóstico, realizei o replanejamento de ações que poderiam suprir as necessidades e atingir alguns objetivos propostos.
Com isso, abandonamos a avaliação tradicional, ou seja, não focamos somente no resultado do teste, mas sim no desenvolvimento de cada um, de acordo com suas especificidades.
Bairro educador
O projeto “Aula Pública” tem se inovado a cada dia, principalmente na pandemia, com a clareza de que atravessar os muros da escola é o caminho certo na transformação da sociedade e na ocupação do território urbano pelos estudantes da EMEF Duque de Caxias.
O propósito está em construir uma sociedade mais justa, que respeite seus cidadãos. Meu envolvimento como professor é fazer parte desse movimento transformador: tornar o Glicério um bairro “educador”, onde a violência urbana dê lugar ao aprendizado nas ruas, nas esquinas, nas vielas e nos arredores da cidade. Mesmo com as dificuldades do ensino remoto, o empenho de cada um permitiu a busca por esse objetivo.
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O projeto “A escola pulou o muro em vídeos e quadrinhos” é um dos vencedores do Prêmio Educador Nota 10 de 2021.
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A escola tem cumprido um papel fundamental para transformar a sociedade formando pessoas mais humanas, preocupada em formar alunos pensantes que escolhem seu futuro com clareza definindo seus valores. Nos gestores devemos incentivar os professores, alunos e familiares a escolherem estratégias para que façam escolhas inteligentes para maior desenvolvimento da comunidade escolar.
Na atualidade precisamos mais que tudo da participação da família na escola, pois através delas que conseguimos também formar seres pensantes e atuantes em nossa sociedade. Percebemos na sala de aula o aluno que tem a familia em sua formação nitidamente. Escola e família precisam andar juntas, assim teremos inclusão, participação e melhores resultados.