Educação inclusiva como desafio global

“Há muitas estradas para Roma”, disse-nos Per Gunnvall, presidente da Agência Europeia para o Desenvolvimento da Educação para Necessidades Especiais, quando lhe perguntamos sobre o modelo europeu de inclusão no contexto escolar. Os países europeus, assim como outros em todas as partes do mundo, debateram sobre a importância de uma educação para todos nas 2 últimas décadas e agora dedicam-se o processo de implementação. Não é uma trajetória linear, muito menos um consenso. É um desafio que envolve todas as dimensões e todos os atores relacionadas à educação.

No ano passado, tivemos a chance de participar do encontro bienal dessa agência e conhecer os projetos de muitos países em relação à educação inclusiva. E, apesar das diferenças culturais imensas entre a Europa e o Brasil (e entre os próprios países europeus), pudemos facilmente nos identificar com os desafios, angústias e avanços de cada um dos representantes que viajaram a Odense, na Dinamarca, para esse evento.

A Agência Europeia

Trata-se de uma organização mantida por 28 países europeus cujo objetivo é atuar como plataforma de colaboração para o desenvolvimento do modelo inclusivo de ensino no continente europeu.

Desde 1996, a Agência tem desempenhado um relevante papel na busca de avanços na área da educação inclusiva. Apesar da diversidade resultante das variadas realidades sócio-culturais e econômicas de seus países membros, a Agência conseguiu estabelecer um consenso sobre princípios-chave para a prática de uma educação que acolha as diferenças entre os estudantes e garanta o direito de acesso à educação. Além disso, desenvolve dezenas de projetos voltados à melhoria de áreas estratégicas como formação de educadores, prevenção na infância e diversidade multicultural.

Nos pareceu muito relevante a percepção das lideranças da Agência de que a prática genuína da educação inclusiva representa uma oportunidade de melhoria em todo o sistema educacional. A ideia se baseia na premissa de que projetos pedagógicos pautados não só pela aquisição de conteúdos acadêmicos, mas também pela ampliação da empatia e das competências interpessoais, beneficiam todos os estudantes — sejam quais forem suas particularidades.

De acordo com Cor Meijer, Diretor da Agência, as intervenções introduzidas nas escolas com a finalidade de beneficiar estudantes com deficiência funcionam também para os demais estudantes. Ou seja, todos os alunos saem ganhando com as transformações promovidas nas redes de ensino. Cor exemplifica com três tipos de intervenções:

• Agrupamentos heterogêneos: o aumento da diversidade resultante da participação de estudantes com deficiência na sala de aula regular desencadeia uma série de ganhos não só para realizações acadêmicas, mas também para os relacionamentos sociais e os vínculos afetivos.

• Ajuda mútua entre alunos: a criação de pequenos grupos com alunos em diferentes níveis de conhecimento, onde aqueles que apresentam maior facilidade para um determinado conteúdo são orientados a compartilhar habilidades de seu conhecimento com o restante do grupo, é uma estratégia que se mostra enriquecedora para todos os participantes.

• Co-ensino ou ensino em equipe: vários dos países membros da Agência adotam a estratégia de planejar e executar as aulas com mais de um educador na mesma turma. O foco inicialmente eram os estudantes com deficiência, mas já há evidências de que os demais alunos foram também beneficiados por esta prática.

Ao contrário do que se imagina, os desafios enfrentados pela Agência são muito semelhantes aos que encontramos na América Latina. Alocação de recursos, flexibilização do currículo, formação de educadores e monitoramento e avaliação contínuos são alguns dos pontos de atenção percebidos. Outro importante desafio da Agência decorre do fato de que seus membros são muito diversos em termos de políticas, práticas e conceitos. Os dados referentes à realidade de cada país revela uma profunda diversificação de contextos e culturas com as quais a equipe da Agência precisa dialogar, de forma a identificar oportunidades de colaboração e desenvolvimento no campo da educação inclusiva. Esse cenário torna-se ainda mais complexo diante da autonomia exercida por cada país na área da educação. Isso significa que a Agência convive com certas limitações, uma vez que não faz parte de seu papel estabelecer regulamentações, mas sim recomendações. Por essa razão, instrumentos internacionais como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) são de grande importância para o trabalho da Agência, pois representam políticas acordadas pelos países signatários.

Cerca de 60% dos países da União Europeia ratificaram o protocolo opcional da convenção da ONU para defesa das pessoas com deficiência. Para alguns países, para sua própria surpresa, mudanças aconteceram muito rapidamente. França é um dos exemplos. Nestes países existem percentuais relativamente altos de estudantes em condições de segregação, e nestes países revoluções estão acontecendo. (Cor Meijer, diretor da Agência Europeia)

Um exemplo: a França

Cor Meijer cita a França como um caso em que as mudanças aconteceram muito rapidamente. O país, há 20 anos atrás, tinha uma forte cultura de segregação. Acreditava-se que a melhor maneira de tratar uma criança com deficiência era deixá-la em uma escola especial. A partir de 2005, uma nova legislação passou a garantir a matrícula de crianças com deficiência na escola regular, postulando: Toda criança é um aluno. O delegado ministerial para pessoas com deficiência do Ministério da Educação, Philippe van den Herreweghe, lembra:

A lei foi votada, passou, e diversas famílias chegaram com seus filhos nos braços e disseram ao diretor da escola: “Tomem meu pequeno filho com síndrome de Down, com múltiplas deficiências, surdo ou cego. Eu vou confiá-lo a você para que ele vá à escola”.

Foi quando a Educação Nacional na França se deu conta de que as escolas não estavam preparadas para acolher essas crianças. Os professores afirmavam (e ainda afirmam) que não foram formados para atuar com esse público em sua formação universitária; as escolas não tinham acessibilidade arquitetônica (e muitas ainda não têm); não existia nos planos de cargos e salários públicos a função de auxiliar de vida escolar para dar suporte aos alunos que necessitassem de ajuda técnica (e ainda não existe, forçando o governo a usar arranjos temporários para contratar essas pessoas). No entanto, o país, que é signatário da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, busca continuamente soluções para que essas dificuldades não aprofundem as barreiras à inclusão existentes no país. O principal objetivo da política é assegurar a autonomia dessas pessoas por meio de uma educação de qualidade.

Ainda exceções na França, as escolas inclusivas começam a ganhar força. É o caso da APATE – sigla francesa para Associação Para Acolher Todas as Crianças.

A Associação Para Acolher Todas as Crianças – APATE

Cecille Herou é uma das fundadoras e a atual coordenadora da associação cujo objetivo é receber a todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, econômicas ou sociais. A APATE gere 3 estabelecimentos de ensino e reserva 1/3 de suas vagas para pessoas com deficiência. Nessa associação, não existe qualquer tipo de critério de exclusão para a matrícula de alunos. É a escola que se modifica para receber seja quem for.

Conhecemos a Escola Gulliver de ensino infantil, que funciona com horário integral. O que primeiro nos chamou atenção foi o sistema de acolhimento diário desenvolvido pela escola. O primeiro horário da manhã é dedicado a acolher as crianças e seus pais. Nesse momento, é possível aos pais tirar dúvidas sobre o desenvolvimento de seus filhos ou trocar informações com a equipe pedagógica sobre dificuldades. A participação dos pais é muito alta graças a uma cultura de participação desenvolvida pela escola.

São pessoas que compreenderam que a diversidade é uma experiência muito interessante. Não são pais que colocam seus filhos, que vão bem, com as crianças com deficiência, com intuito de agradar a essas últimas. Não é assim que funciona. Eles colocam suas crianças porque estão convencidos que isso trará uma capacidade de adaptação e de reflexão desde o berço a esses pequenos antropólogos, a partir da questão da alteridade. Não penso que eles o fazem por doação deles mesmos, através de seu filho, não se trata disso, absolutamente: há uma convicção, que é igual à nossa, de que isso faz diferença. (Cecille Herrou, diretora geral da APATE)

A escola usa a didática por projetos e utiliza as estratégias da qual nos falou Cor: grupos heterogêneos, ajuda mútua e ensino em equipe. Em relação ao ensino em equipe, a cultura de colaboração que a escola conseguiu desenvolver serve como um importante apoio para os professores.

Eu acho que é importante – eu não trabalho sozinha, eu não posso. Tenho uma equipe ao redor de mim. Eu acho que o trabalho em equipe é o que sustenta. A coesão da equipe, poder trocar com seus colegas que são capazes de dizer “não faça assim, talvez se você fizer assim será melhor; talvez eu tenha percebido um detalhe, que essa criança pode responder melhor com a massa de modelar, você pode usar isso para trabalhar com ele, ele vai ficar mais interessado”. Com só uma visão é difícil. Eu acho que são necessários outros olhares de outros profissionais que não têm a mesma história que eu e que tenham outro olhar. Isso vai me mudar. Isso é importante, não estar sozinha nesse momento, não estar sozinha frente à deficiência ou à criança. É importante poder partilhar tudo isso. E poder dizer “escute, eu não sei como fazer, eu não entendi, eu estou perdida”. O outro vai encontrar algo a me dizer: “escute, e isso e aquilo, talvez? (Melanie L’Huiller, educadora da Escola Gulliver)

De acordo com Cecille, a experiência exitosa de trabalhar com a diversidade auxilia os alunos em sua transição para outras escolas, quando esses atingem a idade de ingressar no ensino fundamental.

Nos 3 anos de atividade do Projeto DIVERSA, tivemos a oportunidade de conversar com representantes de diferentes países como Finlândia, Argentina e Estados Unidos, entre outros. A plataforma do projeto recebe visitas de mais de 20 países das 3 Américas, África, Europa e Ásia. Por essa razão, acreditamos que a questão da educação inclusiva é um desafio global, que carece de teorias e práticas para se consolidar. Gostaríamos de aproveitar a oportunidade para convidá-lo a fazer parte do projeto DIVERSA por meio do envio de uma experiência de inclusão de alunos com deficiência em classes regulares, seja você um professor ou gestor. Sua experiência pode servir de inspiração para educadores de todo o Brasil.


Augusto Galery é psicólogo, mestre em administração, doutor em psicologia social e pesquisador em sociedade inclusiva. Foi coordenador do programa DIVERSA Pesquisa de 2011 a 2015.

Rodrigo Hübner Mendes é fundador do Instituto Rodrigo Mendes, organização que desenvolve programas de educação inclusiva. É mestre em administração pela Fundação Getulio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka.

Artigo originalmente publicado pela Revista Sentidos, edição 77 (jul-ago/2013).

©Instituto Rodrigo Mendes. Licença Creative Commons BY-NC-ND 2.5. A cópia, distribuição e transmissão dessa obra são livres, sob as seguintes condições: Você deve creditar a obra como de autoria de Augusto Galery e Rodrigo Hübner Mendes e licenciada pelo Instituto Rodrigo Mendes e DIVERSA.

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