O projeto de pesquisa Ação para a alfabetização de jovens surdos e formação de professores fundamentou-se no reconhecimento das contribuições feitas por duas perspectivas revolucionárias: a antropológico-cultural e crítica (Johnson, 1989; Johnson e Massone, 1990) a respeito dos surdos, e a originada nas pesquisas psicolinguísticas com base psicogenética (Ferreiro e Teberosky, 1979) sobre os processos de reconstrução do sistema de escrita e da linguagem escrita¹. Essa iniciativa surgiu da necessidade de se contribuir para encontrar uma resposta aos problemas de analfabetismo e iletrismo que afetam muitos membros da comunidade de surdos. Essa realidade se traduz em sérias dificuldades de se encontrarem oportunidades de trabalho dignas, bem como de se continuar a formação em níveis educativos superiores ao primário.
Na cidade de Rosário, na Argentina, há duas instituições, surgidas na própria comunidade de surdos. Uma delas, o Círculo Social, Cultural e Esportivo de Surdos de Rosário (doravante o Círculo), abriu-nos as portas e tornou-se o espaço onde foi desenvolvido o projeto. Se considerarmos que o espanhol escrito é, para muitas minorias linguísticas, a língua necessária para “combater a injustiça, humanizar as leis e compartilhar a esperança com o mundo” (Fuentes, 2004), para determinadas comunidades, a alfabetização é feita numa segunda língua, que assume o caráter de língua franca.
Essa afirmação não significa desconhecer a importância da Língua de Sinais Argentina (LSA) como sendo a língua natural, a língua de identidade dos surdos, em nosso país. Pelo contrário, nossos trabalhos, bem como outras pesquisas, assinalam a importância da LSA para o desenvolvimento da competência linguística e para o aprendizado de uma segunda língua. A LSA, como toda língua, não é homogênea, nem transparente e coexiste com a heterogeneidade e a opacidade do espanhol em suas modalidades e interações. Portanto, é razoável considerar que, no interior da comunidade surda, exista outro tipo de diferença a respeito da aquisição de uma segunda língua, sejam os surdos filhos de pais surdos, ou filhos de pais ouvintes. Além disso, os surdos interagem com múltiplas formas linguísticas, que circulam tanto nas escolas de surdos quanto fora delas. Entre outras, devemos considerar aquelas que resultam da circulação de material escrito que, em maior ou menor grau, está presente nas esferas educacionais e sociais. Os surdos participam de mundos de experiências nos quais aquilo que está escrito atravessa múltiplos modos de significar.
Tal cenário nos importa, pois, parafraseando Ferreiro (2003), acreditamos que os surdos, como quaisquer indivíduos cognoscentes, competentes linguística e comunicativamente, “não pedem permissão para aprender”. Portanto, pensamos que os alunos, crianças, jovens ou adultos, possuem conhecimentos e elaboram saberes relacionados à natureza da L2, nas modalidades oral ou escrita, além, ou apesar, do ensino sistemático recebido. Acreditamos que devemos adotar uma visão positiva do bi ou do multilinguismo e, além disso, considerar que:
• Aprender a ler e escrever envolve muito mais do que compreender o princípio alfabético da nossa escrita. Inclui, entre outras coisas, compreender todos os problemas ligados à construção de textos (planejamento, textualização, revisão, edição). Tarefas associadas à intenção de produzir textos adequados para a função comunicativa e discursiva na qual o espanhol escrito circula por meio de práticas sociais específicas;
• A comunidade de surdos constitui uma minoria linguística sem escrita própria, dentro de uma comunidade ouvinte e letrada.
Características gerais e alguns resultados do projeto
O objetivo do projeto foi contribuir para promover uma alfabetização de melhor qualidade para os membros da comunidade surda. Visando isso, as perguntas que nortearam o nosso trabalho foram:
• Quais são as estratégias didáticas que contribuem para melhorar e desenvolver os conhecimentos prévios sobre o espanhol escrito nos alunos surdos jovens e adultos?
• Quais são as estratégias didáticas que, no trabalho específico da formação de professores, contribuem para modificar as pressuposições teóricas dos professores de surdos, com a finalidade de se conseguir uma mudança na perspectiva sobre o ensino do espanhol escrito?
Nosso trabalho foi definido a partir da implementação de uma dinâmica brevemente explicada no esquema abaixo.
O lugar central corresponde aos jovens surdos, tanto na definição das estratégias quanto das atividades que desenvolvemos. Toda proposta, nascida do diálogo com eles e com os professores participantes, visava ter projeção na comunidade imediata (o Círculo), ou na comunidade como um todo (inclusive outras instituições de surdos, escolares ou não); também surgiram propostas, inversamente, a partir do interesse, ou por solicitações da comunidade aos membros do projeto. Participaram seis professoras, cinco delas ouvintes e uma surda, todas falantes de LSA. Excede os limites deste artigo detalhar o trabalho focado nesse grupo, embora sua participação e os processos desenvolvidos tenham sido altamente relevantes para o andamento do projeto.
O número de jovens e adultos surdos participantes foi variável, mas 15 pessoas permaneceram de modo constante e são o que consideramos amostra. As características comuns de todas elas foram:
• Domínio da LSA;
• Vontade de saber ler e escrever em espanhol;
• Ter completado o ensino fundamental em escolas especiais ou em escolas comuns como alunos integrados;
• Ter entre 18 e 57 anos de idade;
• Ser surdo filho de pais surdos, ou surdo filho de pais ouvintes;
• Pertencer a setores populacionais com diferentes graus de vulnerabilidade social.
De forma breve, podemos indicar que buscamos:
• Promover, desde o início, a coexistência da LSA e do espanhol escrito;
• Propor experiências nas quais fosse possível recriar o sentido das práticas sociais de leitura e de escrita, garantindo a disponibilidade e a interação com uma diversidade de textos em diferentes suportes, impressos e digitais;
• Recriar práticas linguísticas que permitissem passar da leitura para a escrita, da escrita para a leitura, da LSA para o espanhol escrito, e do espanhol escrito para a LSA. Assim, por exemplo, a leitura de artigos jornalísticos sobre regiões de nosso país promoveu relatos de experiências de viagem que deram origem à proposta de elaborar álbuns;
• Favorecer a interação do grupo por meio de situações de leitura e de escrita que requeressem: antecipação de sentidos, planejamento da escrita, revisão de textos próprios e alheios, reescrita de textos próprios e/ou alheios, edição de textos. Por exemplo, a produção de uma revista (Palavras de Surdos) promoveu esses processos.
Vejamos apenas três momentos do processo de escrita que Mário*, aluno surdo de 19 anos, realizou para produzir um conto para a mencionada revista:
Mário discute essa versão com outro colega surdo. Ambos consultam uma das coordenadoras, que intervêm, animando-os a refletir e dirigindo a correção.
Como se pode concluir a partir das figuras, foram trabalhados recursos linguísticos próprios do espanhol escrito, com desenvolvimento paralelo de estratégias discursivas em contextos específicos de leitura e de escrita, idas e voltas entre a reflexão, a sistematização e o uso, a LSA e o espanhol. Quanto à avaliação e à correção, são interpretadas como momentos do processo de aprendizado, não apenas de responsabilidade do coordenador, e sim uma atividade que pode ser desenvolvida com a colaboração recíproca de todos os participantes. Nesse contexto, os erros são interpretados como momentos inerentes ao processo de aprendizado de uma segunda língua e decorrentes de modos de conceitualização fundamentados em conhecimentos e experiências prévias.
Compararam-se os dados obtidos em duas avaliações, uma inicial e outra final, nas quais foram realizadas atividades de leitura e de escrita, segundo uma escala estabelecida do menor (nível I) até o maior nível de domínio do espanhol escrito (nível IV). No esquema a seguir é apresentada a transformação atingida pelos alunos quanto a seu conhecimento:
Categorias | Distribuição dos alunos segundo seu conhecimento no início | Distribuição dos alunos segundo seu conhecimento ao término |
---|---|---|
Nível I | 4 participantes | 0 |
Nível II | 9 participantes | 3 participantes |
Nível III | 2 participantes | 6 participantes |
Nível IV | 0 | 6 participantes |
Apesar do sucesso conseguido pelos participantes, sabemos que esta experiência tem um caráter limitado quanto à duração, espaço e número de participantes. Por isso, não pretendemos oferecer verdades absolutas e sim, contribuir para se criar situações de diálogo que promovam a realização de outras experiências para e com os surdos. Esse desejo é baseado na convicção de que: “conhecer, que sempre é um processo, implica uma situação dialógica. Não é o ‘eu penso’ que constitui o ‘nós pensamos’, pelo contrário, o ‘nós pensamos’ é que me permite pensar” (Freire, 1984: 55).
¹ O projeto foi desenvolvido em Rosário, na Argentina, ao longo de dois anos (2007- 2009), graças ao prêmio, correspondente ao financiamento, outorgado pelo Centro de Cooperação Regional para a Educação de Adultos na América Latina e no Caribe (CREFAL) e ao apoio institucional do Círculo Social, Cultural e Esportivo de Surdos de Rosário.
Mónica Baez é argentina, psicolinguista e doutora em pesquisa educacional pelo Departamento de Investigação em Educação e Centro de Pesquisa de Estudos Avançados (México). Professora e pesquisadora na aprendizagem da linguagem escrita das pessoas surdas e ouvintes da Universidade Nacional de Rosario, Instituto Rosario de Investigação em Ciências da Educação (IRICE / CONICET) e bacharel em Psicologia no Instituto de Pós-Graduação da Grande Rosario. Diretora do Programa de Estudos Interdisciplinar em Alfabetização e Interculturalidade (UNR). Coordenadora de pesquisa do programa para o Departamento de Educação do Estado de Queretaro, no México. Desenvolve formação de professores em serviço na Argentina e no México.
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