Setembro é um mês de grandes significados para as pessoas com deficiência auditiva. Em 23 de setembro, é comemorado, pela Federação Mundial dos Surdos, o Dia Internacional das Línguas de Sinais. Em 26 de setembro, é celebrado o Dia Nacional dos Surdos no Brasil e, no dia 30, o Dia Internacional dos Surdos.
O Dia Nacional do Surdo faz referência à primeira dotação orçamentária, em 26 de setembro de 1857, para a manutenção da primeira escola de surdos do Brasil, localizada no Rio de Janeiro, o atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).
Já a data de 30 de setembro, remonta 1951, quando foi proposto o primeiro Congresso Mundial da Federação Mundial dos Surdos.
Este mês foi, portanto, um período no qual as comunidades surdas de todo o planeta se organizaram para travar debates sobre os direitos humanos e suas especificidades para as pessoas surdas. É um mês de intensas discussões, eventos formativos, comemorações e conscientização.
Movimento pelos direitos
Esse movimento surgiu a partir dos anos 1960 e teve mais força nos anos finais da década de 1990, quando os surdos se organizaram de tal forma, nos movimentos surdos ao redor do mundo, que reivindicaram o reconhecimento das Línguas de Sinais e de sua condição de minoria linguística e cultural em diferentes países.
Os movimentos surdos perpetrados por surdos e ouvintes do Chile, Argentina, Uruguai, Venezuela, Brasil, entre outros, inseriram nas agendas de governos novas formas de pensar a educação dos surdos e o status político das Línguas de Sinais.
No Brasil, a Língua Brasileira de Sinais foi reconhecida em 2002 pela Lei de Libras (Lei nº 10.436/2002), provocando uma mudança definidora da condição cidadã dos surdos sinalizantes brasileiros.
Além da Lei de Libras, o Decreto nº 5.626 de 2005 garante, entre outros direitos, o acesso educacional via Língua Brasileira de Sinais; a presença, na escola e na sala de aula, de intérpretes de língua de sinais e a acessibilidade de que o ensino da língua portuguesa seja na perspectiva de ensino de segunda língua. Do ponto de vista do processo de escolarização, isso significa que a Libras é a língua de instrução.
Educação bilíngue na escola comum
A educação bilíngue não se restringe à questão do ensino de línguas, há todo um emaranhado de consequências que vai além da convivência de uma ou mais línguas dentro da escola comum.
Uma nova modalidade na educação brasileira é resultado de um movimento político de muitos anos, engendrado por um sentimento de pertencimento a uma cultura que disputa espaços de poder e que luta ferozmente pelo respeito a sua existência.
Para Castells (1999), entende-se por identidade a fonte de significado e experiência de um povo. Além disso, o autor, ao falar de autores sociais, entende, por identidade: “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (1999, p. 22). Desse modo, pode-se compreender a surdez como um marcador cultural que posiciona e diferencia indivíduos, estabelecendo redes de reconhecimento e pertencimento constituídos pela experiência visual materializada em uma língua e em traços e lutas compartilhadas.
A língua do surdo, entendida como atributo/marca cultural, também define, aqui, a surdez. Surdez não mais vista como falha ou falta de algo: audição, língua, comunicação. Mas surdez vista como presença de uma língua com modalidades de recepção e produção diferentes.
Castells apresenta uma hipótese de três formas e origens de construção de identidades: Identidade Legitimadora, Identidade de Resistência e Identidade de Projeto. A Identidade de Resistência, que é a que aqui interessa, tem sua origem em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação.
Desse modo, para o autor, são construídas trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade. No caso dos surdos, a resistência levanta-se contra o estereótipo da doença, da incapacidade, da falta, contra os dolorosos processos educativos da língua majoritária.
O que é ser surdo?
Para falar sobre o que é ser surdo, dois pesquisadores surdos da área, a Gládis Perlin e o Wilson Miranda, explicam:
Se vocês nos perguntarem aqui: o que é ser surdo? Temos uma resposta: ser surdo é uma questão de vida. Não se trata de uma deficiência, mas de uma experiência visual. Experiência visual significa a utilização da visão, (em substituição total a audição), como meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela língua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento científico e acadêmico
(PERLIN; MIRANDA, 2003; p. 218).
Ser surdo é uma questão de vida! Uma vida individual e coletiva que briga muito por seus direitos. Durante muito tempo, a surdez foi representada como doença ou como falta.
Com relação ao modelo da deficiência (modelo clínico), Obasi (2008, p. 457) salienta que existe um padrão social da deficiência e, se nesse paradigma, as representações das pessoas surdas são construídas a partir da presença de uma deficiência. Os surdos serão vistos, portanto, como pessoas com deficiência. A partir desse modelo, surgem diferentes representações, tais como de surdez como déficit (GIORDANI, 2004, p. 3) e como patologia, anormalidade, ou seja, como sujeitos a corrigir (THOMA, 2005, p. 252).
Entretanto, ao longo das últimas décadas, de acordo com Obasi (2008, p. 456), um discurso surdo cultural emancipatório tem tensionado uma mudança das representações. De acordo com a autora, esse discurso emerge das narrativas surdas sobre cultura e identidade, orgulho surdo e história surda.
Essas representações apresentam um perfil socioantropológico e discutem a surdez como minoria linguística (LANE, 1995, p. 171), como comunidade (LOPES, 2005), como produtores de cultura (KARNOPP, 2010, p. 171), como etnia (LANE, 2005, p. 291; CLAROS-KARTCHNER, 2009, p. 64), entre outras.
As representações são, de acordo com Hall (1997, p. 183), uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura. As representações implicam no uso de linguagem por meio de signos ou imagens, que significam ou representam as coisas.
Comunidade surda
Lutas pelo direito linguístico, pelo direito de ter uma cultura diferente. Esse processo de construção de identidade, segundo Castells, leva à formação de comunas ou comunidades, “dá origens a formas de resistência coletiva diante de uma opressão que, do contrário, não seria suportável” (1999, p. 25).
O Dia Internacional dos Surdos, é, portanto, um dia de reflexão sobre a resistência coletiva, sobre a cultura compartilhada, sobre o sentimento de pertencimento a uma comunidade linguística e cultural que, na maioria das vezes, é diferente da qual se nasceu.
É importante entender que, por uma visão socioantropológica, a surdez pode ser compreendida pela presença de uma língua minoritária e de uma cultura visual, sendo essa o resultado das experiências visuais que o surdo vive em seu entorno, ou seja, um entorno que prescinde de som.
Assim sendo, a data evoca, anualmente, a necessidade de garantir os direitos dos cidadãos surdos brasileiros, de reafirmar a premência de uma educação que seja mais inclusiva pela perspectiva de garantia de direito linguístico, pelo direito de uma existência diferente, pelo respeito à identidade e cultura.
Referências
BRASIL. Lei Nº 14.191. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. 2021.
LEBEDEFF, T. B. O povo do olho: uma discussão sobre a experiência visual e surdez. In: LEBEDEFF, T. B. (Org.). Letramento visual e surdez. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2017, p. 226-251.
ROCHA, S. Instituto Nacional de Educação de Surdos: uma iconografia dos seus 160 anos. Rio de Janeiro: MEC/INES, 2018.
Tatiana Bolivar Lebedeff possui graduação em Educação Especial, habilitação em Áudiocomunicação, Mestrado em Educação e Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento. Atualmente, é professora da Área de Libras do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Professora Efetiva do Programa de Pós Graduação em Letras da UFPEL. Participa do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação de Surdos / GIPES.
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