Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispector LISPECTOR, C. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.
Se me perguntassem quando escolhi ser professora de Educação Física, eu responderia com segurança: foi no Ensino Médio. Aliás, antes disso eu odiava participar das aulas de Educação Física. Primeiro, porque eu não sabia jogar. Segundo, porque ninguém me ensinava. Terceiro, porque mesmo que me ensinassem, as minhas precárias habilidades não me fariam passar ilesa à exposição dos olhares judicativos dos meus colegas de turma.
No Ensino Médio descobri que, embora canhota, o meu lado direito funciona melhor para algumas coisas. Um professor de Educação Física, numa atitude atenta e sensível, disse pra mim o seguinte: se você não consegue jogar com a esquerda, tente com a direita! Daí, passei de uma pessoa sinistra e desastrada a alguém que sabia jogar; me tornei atleta de handebol e… decidi ser professora de Educação Física. Comecei a atuar profissionalmente ensinando esporte competitivo em clubes e instituições escolares. Contudo, a estrada profissional não se faz somente de retas, mas de curvas, encruzilhadas, retornos, pequenos e grandes desvios…
No meu primeiro emprego me vi desafiada a trabalhar com a Educação Física adaptada, mas como muitos, não tinha tido formação para isso na graduação. Foi meu primeiro grande exercício de flexibilização da/na prática profissional e o impulso que faltava para entender que “o não entendimento” pode ser visto sob outro ângulo.
No percurso da prática pedagógica e da formação continuada descobri que é necessário ajustar o olhar. Nos diálogos com meus companheiros de profissão e influenciada por inúmeros autores entre os quais Paulo Freire, Vygotsky, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Jocimar Daolio, Suraya Darido, Carmem Lucia Soares, entre tantos outros, entendi que Educação Física escolar não é sinônimo de formação esportiva, embora tenha o esporte como um de seus conteúdos. Que teoria e prática não existem uma sem a outra. Que a linguagem é a primeira instituição da qual fazemos parte e que os sujeitos são efeitos da linguagem, dos textos, dos discursos, das relações de poder… e que o corpo é produto e produtor de linguagem(ns). Que nem sempre atividade física é saúde e que nas aulas de Educação Física cabe problematizar: o que é saúde? Que direito eu tenho ao meu corpo? Aprendi, também, que a inclusão pode ser perversa e que, necessariamente, está relacionada, de forma dialética, a processos de exclusão, nas palavras da socióloga Bader Sawaia. Neste cenário, se sentir excluído já é sinônimo de exclusão. O debate a respeito da dialética inclusão-exclusão nos convoca, segundo essa autora, a preocuparmo-nos com o “sofrimento ético-político que retrata a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade”, como diz Sawaia. A escola é, portanto, um local privilegiado para identificação, valorização e desenvolvimento de potenciais. Flexibilizar o olhar para enxergar a diferença como vantagem pedagógica, na visão da professora Vera Candau, pode ser um dos caminhos para promover a inclusão.
Ao estudar a criatividade na prática pedagógica, em suas relações com a inclusão em educação, constatei que o exercício da Educação Física inclusiva requer a assunção, por parte dos professores, de três disposições essenciais: a disposição para se colocar no lugar do Outro – exercício que possibilita a alteridade; a disposição para o diálogo – prática que possibilita a reflexão a respeito dos sentidos atribuídos à dialética inclusão/exclusão e favorece o planejamento, desenvolvimento, avaliação e reavaliação de ações que visam minimizar as barreiras à aprendizagem e ampliar as possibilidades de participação dos estudantes; e a disposição para articular teoria e prática – atividade que possibilita a transformação da prática em práxis, através da superação da visão dicotômica que separa o pensar do fazer pedagógico.
No segundo segmento do Ensino Fundamental, em geral, e no Ensino Médio, de maneira específica, observamos a ênfase no desenvolvimento das habilidades motoras especializadas por meio de práticas esportivas tradicionais/não tradicionais, reforçando o imaginário cristalizado focado no binômio Educação Física-formação de atletas. Cabe, contudo, investir em outras frentes e apostar em outras práticas que se contraponham a essa visão hegemônica de Educação Física. Um caminho possível é a realização de debates sobre inclusão, igualdade, Direitos Humanos, (d)eficiência, valores, gênero, ética, saúde, relações de poder aliados às vivências corporais e por meio delas.
Segundo o professor Marcos Neira é fundamental desenvolver atividades pedagógicas que recorram ao diálogo e não à tolerância. Tais práticas visam à desconstrução de representações dominantes e ao descortinamento de discursos que mascaram processos de exclusão: não perdemos, foi o juiz quem roubou; bateu, levou; ele ou ela é café com leite; não é briga, é apenas uma brincadeirinha; se ele ou ela não faz aula por que eu tenho que fazer?; se ele ou ela que tem uma deficiência conseguiu realizar a atividade, você também vai conseguir; ele ou ela não se esforça, por isso não foi escolhido(a) para o time; ele ou ela não é normal como nós…
Os argumentos usados para explicar atitudes agressivas, racistas e preconceituosas na escola e nas aulas de Educação Física muitas vezes colocam em evidência a negação da própria responsabilidade dos sujeitos e naturalizam práticas excludentes, no lugar de se expressar indignação diante delas. Mas isso não ocorre apenas na escola. A mídia e as próprias relações sociais extraescolares sustentam, constroem, reforçam e reproduzem essas atitudes.
Finalmente, defendo que a Educação Física inclusiva exige mais do que a adaptação técnica dos conteúdos pedagógicos. Exige, pois, a problematização do sofrimento ético-político que permeia a dinâmica da dialética inclusão-exclusão. O que é incluir? Como é se sentir excluído? Por que é importante aumentar a participação de todas as pessoas em todas as áreas da vida humana? Que mecanismos limitam a participação e por que isso ocorre?
Neste sentido, não cabe falar da Educação Física como um componente curricular isolado dos demais, que se justifica em si mesmo pelos resultados positivos obtidos nas competições esportivas. Trata-se, pois, de ressignificá-la enquanto campo do currículo escolar que engendra relações de poder e saber que não podem ser vistas de maneira isolada. Ainda há, portanto, muito trabalho a fazer. O primeiro passo, talvez, é reconhecer que temos muito a aprender sobre o assunto.
Profa. Dra. Kátia Regina Xavier da Silva, Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica do Colégio Pedro II/ Pós-Graduação em Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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