Por meio de pesquisa sobre logradouros com nomes de mulheres, estudantes foram incentivados a discutir sobre a importância da luta pela igualdade
Observar a cidade com “olhos de turista” é uma forma de circular por espaços próximos e familiares com a atenção que se tem quando se está em um local novo e desconhecido.
Quando viajamos, a tendência é querer conhecer o máximo possível e se surpreender com o diferente. Porém, na nossa própria cidade, transitamos por ruas onde moramos, estudamos, trabalhamos e que, muitas vezes, pela correria do cotidiano, acabamos não nos dando conta que esses espaços são nomeados e demarcados por relações sociais e de poder. Foi em um desses passeios pela minha cidade, Porto Alegre (RS), que, ao visitar uma praça, me chamou a atenção o seu nome: Isabel, a Católica.
Fui procurar na internet para saber quem tinha sido essa personalidade que estava sendo homenageada. Deparei-me com o histórico de uma rainha espanhola do século XV, cuja vida não teve vínculo algum com a cidade. A partir de então, comecei a procurar outras mulheres que tiveram seus nomes escolhidos para denominar logradouros e equipamentos públicos.
Encontrei uma reportagem de 2019 que destacava o baixo percentual de personalidades femininas que batizavam praças da capital. Segundo a matéria, havia, aproximadamente, apenas uma praça com nome de mulher para cada nove praças com nomes de homens.
Isso acontece mesmo com a alteração na Lei Complementar Municipal 320, em vigor desde 2004, a qual determina que “a denominação dos logradouros e equipamentos públicos (ruas, praças etc.) deverá observar percentual mínimo de 30% e máximo de 70% para cada sexo, quando fizer referência a nomes de pessoas”. A partir daí, fui percebendo que o baixo percentual ocorria também com os nomes das ruas e viadutos.
Proposta pedagógica
Essa constatação me fez organizar uma proposta pedagógica nas aulas de sociologia para que os estudantes das turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) refletissem sobre a representatividade feminina no espaço urbano.
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A primeira tarefa consistia em fazer um esforço para lembrar quais eram os caminhos que cada estudante geralmente percorria no seu dia a dia a caminho do colégio, trabalho e retornando para a casa, registrando no caderno o nome das ruas, avenidas, becos, travessas, praças, parques e outros espaços públicos que vão configurando esses trajetos.
Caso quisessem, os estudantes poderiam acessar o aplicativo Google Maps. Para ajudá-los nesse processo, um mini tutorial foi elaborado, ensinando como traçar as direções e as navegações, com pontos de partida e destino das rotas utilizadas.
Lancei o convite para que registrassem, na medida do possível, as placas das ruas e demais espaços por meio de fotografias, destacando seus nomes oficiais e como são conhecidos popularmente, além de um breve histórico. Em um segundo momento, os dados que foram coletados pelas turmas passaram por uma análise mais direcionada a partir das seguintes inquietações:
a) Analisar os logradouros públicos listados durante os caminhos diários e destacar quais deles têm nomes de mulheres.
Logradouro é, segundo o Dicionário Michaelis, um “lugar livre, destinado à circulação pública de pedestres e veículos, tal como ruas, avenidas, praças etc.”, o que chamamos de endereço.
b) Comparar nas suas trajetórias a quantidade de logradouros com nomes de mulheres e de homens, e identificar qual aparece em maior número.
c) Pensando na cidade inteira, a maioria tem nomes de mulheres ou de homens? Quais os possíveis motivos que justifiquem essa discrepância?
Foi interessante perceber como a maioria dos estudantes se deu conta de que não sabia ou não prestava atenção nos nomes dos locais por onde circulava e, quando provocados a pensar se a nomeação era ou não feminina, certa indignação ficou evidenciada, exemplificada em falas como: “nós somos invisíveis”; “os homens têm direitos mais reconhecidos do que as mulheres”; “a gente caminha quilômetros até encontrar uma rua com nome de mulher”.
Concluíram que há preconceito de gênero, como se os lugares públicos fossem destinados apenas para os homens e, assim, somente eles merecessem ser homenageados, deixando de lado toda a luta, o trabalho e a importância das mulheres, como se elas não fizessem parte da sociedade.
Durante o debate, introduzi outra reflexão: Você considera que alguém que tem seu nome colocado em uma rua ou uma praça recebeu algum destaque social? De qual tipo? Por quê? Quem tem o poder de denominar esses espaços?
Destaco, com alegria, uma ação social apresentada por uma aluna, que relatou que onde ela mora e nas ruas ao seu entorno todas têm apenas letras e, por isso, está havendo um movimento da comunidade junto à Câmara de Vereadores para que esses logradouros tenham nome de pessoas representativas e importantes para o bairro e para o município, principalmente em homenagem às mulheres, como uma reparação histórica.
Fizemos uma grande discussão sobre representatividade, importância da compreensão histórica do papel das mulheres na vida social, a necessidade de reparar o déficit de reconhecimento feminino, seja no campo político, por meio da diversidade na composição dos cargos representativos nas Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas, bem como nos Poderes Executivo e Judiciário, e, ainda, nos diversos espaços sociais, como mídia, mercado de trabalho, instituições de ensino e outros.
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Compartilhando os resultados para toda escola
A fim de que a atividade ganhasse uma materialidade que atingisse todas e todos os estudantes do colégio para a reflexão, foi produzida uma intervenção na escola, intitulada “Há muito tempo que ando nas ruas de um Porto não muito feminino”.
Paralelamente, colocamos no colégio o mapa político (oficial) do local e fixamos perguntas provocativas para a reflexão.
Foi impresso pela professora de geografia um mapa do município a partir do próprio Google Maps. Os alunos e alunas destacaram os logradouros públicos que tinham nomes femininos e foi montado um grande quebra-cabeça, afixado no saguão do colégio.
Consultamos um documento da Câmara de Vereadores do município, datado de 2007, no qual procuramos a biografia de algumas mulheres destacadas no mapa. Apesar de ter mais de 15 anos, esse é o único material existente que apresenta um levantamento de personalidades femininas e, com ele, foi possível saber quem eram as mulheres homenageadas com logradouros públicos.
Concluiu-se que, em sua maioria, essas mulheres eram brancas, com posses, e foram homenageadas por doar terras para construção das vias, recebendo o tratamento de santas da religião católica.
Por outro lado, também encontramos, mesmo que em número pequeno, mulheres com trajetórias de vida marcadas por empoderamento feminino, como Luciana de Abreu (pioneira na luta pela emancipação da mulher no Rio Grande do Sul), Rita Lobato Velho Lopes (primeira médica a se formar no Brasil), Dandara dos Palmares (líder feminina no Quilombo de Palmares) e Anita Garibaldi (revolucionária que lutou pela República no Brasil).
Em comemoração ao Dia da Mulher, convidei Laura Sito, uma das autoras do livro “Se as cidades fossem pensadas por mulheres” (2021), para conversar com o nosso público estudantil.
Ela destacou as ações políticas e sociais necessárias e urgentes, com as quais as mulheres de diversas áreas do conhecimento e de atuação estão mobilizadas. Mencionou que alguns ganhos já estavam sendo percebidos, dentre os quais uma bancada da Câmara de Vereadores negra e com mulheres no município de Porto Alegre.
Cabe destacar:
Considerando que as cidades se constituem como um espaço masculino, branco e heteronormativo, no qual diferentes grupos sociais a vivenciam de formas distintas e com oportunidades desiguais, o presente livro visa demonstrar o olhar plural das mulheres que compõem a cidade: mulheres trans, mulheres negras, mulheres gestoras públicas, mulheres educadoras, mulheres periféricas.
(SITO, QUADROS, Contracapa, 2021)
Encerramento da atividade
Como encerramento da proposta pedagógica, questionei os estudantes qual mulher gostariam de homenagear, colocando seu nome em uma das ruas de nossa cidade, se fosse possível. Para tanto, era necessário a indicação do nome da homenageada e a apresentação de uma breve biografia. Como inspiração, trabalhamos com a coleção de livros: “Histórias para ninar garotas rebeldes”, de Elena Favilli (2017, 2018, 2021).
As turmas se engajaram na atividade e destacaram pessoas próximas como mães, avós, esposas e filhas, como exemplos de mulheres que tiveram ou têm vidas marcadas por lutas, força e afeto.
Também foram lembradas personalidades públicas brasileiras e abrasileiradas como Elza Soares (cantora negra e compositora feminista), Carolina Maria de Jesus (escritora da Voz da Periferia), Dilma Ferreira (ambientalista e defensora dos direitos humanos), Dorothy Stang (ativista em prol do direito ambiental na Amazônia), Marielle Franco (política que lutou pela defesa dos direitos humanos), Marília Mendonça (cantora e compositora), Djamilla Ribeiro (filósofa e escritora sobre o feminismo negro), Conceição Evaristo (escritora), Dilma Rousseff (primeira mulher presidenta do Brasil), Maria da Penha (ativista contra a violência às mulheres), além de personalidades internacionais, tais como Abisoye Ajayi-Akinfolarin (empresária de negócios de impacto social), Malala Yousafzai (ativista pelo direito à educação das mulheres), Chimamanda Ngozi Adichie (escritora sobre o feminismo negro) e Oprah Winfrey (apresentadora de televisão e atriz).
No programa de computador Paint, foram criadas placas com os nomes das mulheres escolhidas e uma breve descrição de suas qualidades. Vale a pena destacar que a maioria das mulheres escolhidas era ou é negra, assim como a maioria das nossas alunas e alunos, marcando a questão da representatividade.
Por fim, demonstramos que uma placa de rua não é só uma placa. Trata-se de reconhecimento social e público da pessoa que a nomeia, a qual representa tantas outras que a veem como uma figura exemplar e digna de homenagem pública. Trata-se de representatividade, enquanto expressão dos interesses de um grupo social demonstrados na figura do representante (Dicionário de Política do cientista político Noberto Bobbio, 1998).
É uma forma de marcar e consagrar lugares de fala. Nós, da EJA do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, almejamos a ampliação e a diversificação de pessoas comprometidas com as demandas e necessidades das mulheres e de todos os grupos sociais considerados minoritários, principalmente dentro da educação.
Nessa e em outras atividades que aplicamos na EJA, os nossos estudantes se sentiram parte do conteúdo, protagonistas do estudo, uma vez que as questões de preconceito e desigualdade trazidas como parte das tarefas evidenciam uma realidade do público da Educação de Jovens e Adultos.
Com o projeto, eles puderam refletir sobre o papel da escola e da sociedade, não só em relação às mulheres, mas pessoas negras, com deficiência e pobres, principalmente em nosso território. Foi possível entender que todas as pessoas podem exigir e lutar por todos os direitos e melhorias fundamentais para suas vidas.
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