Quando cheguei à escola municipal EMEF Almirante Ary Parreiras, em 2015, me deparei com uma das realidades mais difíceis da minha carreira docente. Os estudantes estavam expostos à vulnerabilidade social.
Outros problemas latentes da comunidade escolar eram a ausência de saneamento básico e a estrutura precária das casas. Foi nessa realidade que decidi sair da minha zona de conforto e me candidatar para a vaga de professora de tecnologias.
Com o objetivo muito claro de transformar a vida de crianças e jovens por meio da tecnologia, pensei em ressignificar a aprendizagem com as tendências digitais. O intuito era utilizar o ensino do pensamento computacional, da cultura maker, da programação e de robótica como propulsores dessa transformação.
No entanto, como em muitas outras realidades que adentram nosso país, a escola não possuía os materiais adequados para ensinar robótica aos estudantes e a solução para minha angústia veio de um problema social relatado pela turma: o lixo.
Olhar para essa situação, que impedia os discentes de irem à escola em dias de chuva e que trazia doenças, como dengue e leptospirose, foi a solução. Dessa maneira nasce o trabalho de robótica com sucata, impactando estudantes do 1º ao 9º ano do ensino fundamental.
Passo a passo do projeto
O trabalho se deu em aulas regulares e incorporou diferentes conteúdos aprendidos a elementos da cultura maker, da programação e da robótica. O mais importante: aguçou a curiosidade dos estudantes para buscarem novas informações, despertando-os para o processo autoral e de autoconstrução do conhecimento.
Aula pública: saímos pelo território com trajeto definido em sala de aula por cada turma e série, com o objetivo de sensibilizar a comunidade local sobre a questão do descarte do lixo e sustentabilidade 5R´s (reciclar, recusar, reutilizar, reduzir e repensar).
Recolhimento de materiais: no percurso da aula pública, recolhemos lixo eletrônico e materiais recicláveis.
Separação dos materiais: separamos e pesamos os objetos que seriam usados em sala de aula e o que poderia ser vendido para adquirir itens, como placas programáveis, fios, leds, entre outros.
Mão na massa: aguçamos a aprendizagem para criatividade e experiências, como a construção de diferentes protótipos e o envolvimento das áreas do conhecimento, da cultura maker, de programação e robótica.
Pensamento computacional: idealizamos o trabalho por meio de mapas mentais e pesquisas com a programação realizada no scratch, software livre educativo e interativo, que funciona por blocos lógicos a partir de linguagem programática.
Robótica com sucata: exercício da criatividade e da inventividade. Realizamos pesquisa e desenvolvimento do pensamento científico, com a construção de protótipos com funcionalidades específicas sobre os anseios pessoais dos estudantes, unindo o lixo reciclável e o lixo eletrônico. Entre os trabalhos realizados estão carros, aviões, barcos, robôs, casas, entre outros.
Compartilhando ideias: exercício do protagonismo juvenil na feira de tecnologias, um momento para as alunas e alunos demostrarem os seus trabalhos à comunidade e enfatizarem a importância da sustentabilidade.
Resultados
Com uma boa dose de criatividade na educação, foi possível proporcionar o acesso ao ensino do pensamento computacional e da robótica com sucata às alunas e aos alunos da periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Mais do que isso: oportunizar que pudessem sonhar e fossem protagonistas da sua história, devolvendo a autoestima e possibilitando que os estudantes fossem multiplicadores de conhecimento ao intervir na comunidade.
Esse projeto, ao longo de três anos, contribuiu para a melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) da escola, que passou de 4,2 para 5,2 nos anos finais.
Em 2019, além de auxiliar na redução do trabalho infantil e na evasão escolar, pela identificação das potencialidades de cada um, os estudantes que participaram do projeto passaram a atuar como alunos-monitores, permanecendo em período integral na escola, e me auxiliando na execução das atividades junto às demais séries.
Houve também a retirada de mais de uma tonelada de lixo das ruas de São Paulo, que, ao longo do trabalho, foi recolhido, separado e pesado.
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Existiu ainda uma ressignificação do território educativo, possibilitando novos caminhos de aprendizagem, ao inserir na rotina escolar o pensamento computacional e as metodologias ativas aliadas ao currículo.
Essa é a história por trás do trabalho de robótica com sucata, que atualmente é uma política pública estadual de São Paulo, presente em mais de 5.400 escolas e eternizada em obras e relatos de experiência.
O projeto recebeu diversos prêmios, entre eles: Professores do Brasil 2018, Desafio de Aprendizagem Criativa do MIT 2019, e eu fui considerada uma das dez melhores professoras do mundo pelo Global Teacher Prize 2019.
Por uma educação criativa e inclusiva
Ao unir a criatividade a um problema social, os estudantes puderam trabalhar de maneira interdisciplinar, usando as áreas do conhecimento como matemática, história, geografia, língua portuguesa, ciências, arte…
O trabalho de robótica com sucata possibilitou, também, a participação de estudantes com deficiência, com experiências de troca com o outro, e esse foi apenas o começo para trabalhar temas essenciais, como a inclusão. Todos os estudantes, independentemente de suas especificidades, desenvolveram suas habilidades cognitivas, motoras e sociais para a criação e execução dos projetos.
Durante as aulas, a turma interagia entre si e manipulava os materiais, pensando em soluções para questões do cotidiano, como a criação de sensores para cadeiras de rodas e semáforos inteligentes para estudantes cegos.
O ensino de robótica com sucata é uma abordagem integrativa, que reúne e mobiliza as áreas do conhecimento de uma maneira eficaz, promovendo a inclusão e ressaltando que as pessoas são o centro do processo de aprendizagem!
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Débora Garofalo foi premiada como uma das 10 melhores professoras do mundo pelo Global Teacher Prize 2019.
É formada em Letras e Pedagogia, com especialização em Língua Portuguesa, Mestra em Educação e FabLearn Fellow, Columbia, EUA. Professora há 17 anos da rede pública de SP, é idealizadora do trabalho de Robótica com Sucata. Atualmente, é coordenadora do Centro de Inovação da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.