Proposta em sintonia com o currículo estimula autonomia e protagonismo de estudantes da Educação de Jovens e Adultos
Sou professor de educação física da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Colégio Santo Inácio, no município do Rio de Janeiro (RJ). O colégio atende por volta de 900 estudantes, entre ensino fundamental II, ensino médio e educação profissional. As alunas e os alunos são de diferentes idades e apresentam distintas condições socioeconômicas, por conta do programa de bolsas oferecida pelo Colégio.
Situação desafiadora
As turmas da EJA são compostas por alunos e alunas que recebem bolsas integrais. Lidamos com educandos em processo de construção e reconstrução de identidade e que estão aprendendo sobre a sociedade, sobre os outros e sobre si mesmos. Contamos com dois professores por turma, justamente para atender a heterogeneidade do grupo e proporcionar a inclusão de todos.
Nesse sentido, as aulas de educação física devem propiciar, por meio das atividades corporais, atitudes construtivas de todas as pessoas, considerando as diferentes expectativas de aprendizagem e estimulando o respeito e solidariedade. O professor deve desenvolver as potencialidades dos estudantes e incluir a todas e todos, eliminando as barreiras para que possam plenamente buscar autonomia e protagonismo.
Com o objetivo de estabelecer um diálogo entre a prática corporal e o seu sentido histórico na formação multicultural e étnica da identidade brasileira, decidi trazer para as aulas os princípios da capoeira, uma forte expressão cultural do país, que mistura dança, luta, jogo e música, e tem sua origem a partir dos negros africanos trazidos por Portugal para serem escravizados no Brasil.
O objetivo era estimular a construção de valores a partir das atividades da dança, melhorando a autoestima, a relação com o outro e ampliando a visão de mundo para além das experiências pessoais.
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Descolonização do currículo
A proposta está baseada no currículo da EJA e se orienta a partir de pressupostos para valorizar as diferenças e dar voz às culturas que foram sistematicamente excluídas pela escola. O currículo constrói identidades e subjetividades e, neste sentido, conduz as percepções, disposições e valores que modulam os comportamentos e estruturam as personalidades.
Para desenvolver o estudo da capoeira como prática corporal foram observados quatros princípios:
1) Enraizamento cultural: práticas vinculadas a um determinado grupo.
2) Ancoragem social dos conteúdos: baseados na formação histórico-cultural da nossa sociedade, respeitando e incluindo o povo negro.
3) Justiça curricular: fundamental para equidade do processo, pois aborda conteúdo vinculado a um grupo, a uma região, a um povo específico.
4) Descolonização do currículo: valorização de práticas corporais pertencentes a grupos historicamente excluídos.
Desenvolvimento das atividades
O projeto foi trabalhado como unidade didática do 2º bimestre de 2018. Em média, foram realizadas 11 aulas para cada turma: duas para apresentação de conteúdos conceituais; oito para desenvolvimento de conteúdos procedimentais; e uma para avaliação.
As questões trabalhadas com os alunos, tanto nos conteúdos conceituais quanto nos conteúdos procedimentais, foram: a capoeira nos aspectos culturais, filosóficos, políticos e históricos, os cânticos, os instrumentos, a formação da roda de Capoeira e seus rituais, a capoeira como tríade jogo-luta-dança, os estilos da capoeira e seus percursores e os principais movimentos (golpes) de ataque, defesa e esquiva.
As aulas destinadas ao desenvolvimento dos conteúdos conceituais foram realizadas em sala de aula equipada com computador, TV e Datashow. Usando recursos das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), apresentei aos alunos o funcionamento de uma roda de capoeira, os cânticos, os estilos da luta e os golpes básicos.
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Já as atividades de desenvolvimento dos conteúdos procedimentais aconteceram em sala multiuso, que conta com espelhos e guarda os materiais utilizados na tematização da capoeira, como berimbau, atabaque, agogô, caxixi, dobrão. Os alunos e alunas tocaram os instrumentos e executaram os movimentos de ataque e defesa sugeridos de acordo com suas possibilidades.
Para a avaliação os estudantes se organizaram em grupos e seguiram um roteiro de pesquisa elaborado pelo professor. Cada grupo pesquisou sobre a história e a roda de capoeira, cânticos, instrumentos, e golpes básicos. Ao final do semestre, os grupos realizaram apresentações sobre o tema em sala de aula.
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Impactos na aprendizagem
Os estudantes puderam ampliar os conhecimentos sobre a história da capoeira, bem como seus valores, rituais, cânticos e instrumentos usados. Eles também estudaram as origens culturais da capoeira e exploraram os movimentos da prática corporal. Adaptações no ritmo e nos gestos da capoeira possibilitaram a cada um “jogar” do seu jeito, o que fez da inclusão um ponto marcante do projeto.
Além disso, os trabalhos em grupo e a preparação de conteúdos para apresentações coletivas permitiram romper com estereótipos e preconceitos e garantir a participação de todos.
Com o desenvolvimento do projeto, alunas e alunos compreenderam os processos de exclusão e desenvolveram a valorização de sua própria história, o que impactou no fortalecimento da autoestima e da confiança, além de proporcionar a aquisição de novos saberes e conhecimentos.
Marcelo Luiz de Souza foi um dos 50 finalistas do Prêmio Educador Nota 10 de 2019 com o projeto “Capoeja – Tematização da Capoeira como Prática Corporal”.