Especialistas, familiares e educadores falam sobre o diagnóstico e a importância da família na luta por direitos das pessoas com autismo
O Dia Mundial de Conscientização do Autismo, em 02 de abril, foi constituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) há 14 anos. O objetivo da campanha continua o mesmo: eliminar preconceitos em relação às pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e proporcionar um ciclo de debates e conscientização social.
Dentro do tema de 2020 e 2021, “#Respectro: respeito para todo o espectro”, o DIVERSA conversou com especialistas, educadores e familiares, que reforçaram a importância do compartilhamento de informações para garantir respeito pelas pessoas com o transtorno. É o que reforça Raquel Del Monde, médica pediatra e diretora científica do Instituto Lagarta Vira Pupa:
Dar visibilidade a uma condição que atinge cerca de 2% da população permite que cada vez mais pessoas conheçam o assunto. Munidos de informação, as famílias podem exigir atendimento e leis para garantir inclusão social e profissionais da saúde e educação ficam mais alertas para direcionar as pessoas sob seus cuidados.
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O intuito é que, com aquisição de informação e conhecimento, pessoas com e sem deficiência colaborem na eliminação de barreiras para que todas as pessoas tenham oportunidade de ocupar espaços na sociedade e tenham seus direitos garantidos:
“Eu não tenho só responsabilidade com meus filhos, com a minha família, comigo… eu tenho responsabilidade sobre o coletivo. A sociedade precisa se responsabilizar por toda a humanidade.”, afirma Vanessa Ziotti, advogada, diretora jurídica do Lagarta Vira Pupa e mãe de trigêmeos com TEA.
O Transtorno do Espectro Autista
Para que cada vez mais pessoas entendam e compartilhem informações reais sobre o espectro, Raquel Del Monde, que também é mãe de pessoa com autismo, e Natália Cesar de Brito, psicóloga especialista em neuropsicologia e aprendizagem, explicam o que é o transtorno, como é realizado o diagnóstico e quais são os principais mitos que o rondam:
O TEA constitui uma condição do desenvolvimento que afeta em graus variáveis a comunicação, a socialização e o processamento neurológico de informações cognitivas e sensoriais. O diagnóstico é clínico, o que significa que não depende de exames, mas de uma avaliação detalhada e criteriosa.
Desde o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5ª edição (DSM5), de 2013, se fala em Transtorno do Espectro Autista, em que a palavra “espectro” implica que existe uma grande variação nas manifestações clínicas. Natália exemplifica: “é como se houvesse uma régua, onde zero seria aquela pessoa com mais dificuldades para se desenvolver, e trinta seria aquela que não tem outras dificuldades, que seria próxima do desenvolvimento típico.”
Todas as pessoas com autismo apresentam dificuldades em duas áreas principais: comunicação social e interesses e comportamentos restritos e repetitivos. São áreas complexas e as dificuldades em cada uma delas podem ser de tipos e intensidades variadas, o que as tornam muito diferentes entre si.
Existem muitos mitos acerca do autismo, exatamente em decorrência do desconhecimento da sua heterogeneidade: “é muito comum, por exemplo, que se descarte a condição em pessoas que falam bem, sejam muito afetivas ou que não apresentem movimentos repetitivos (estereotipias ou stimming).”, diz Raquel.
Também é necessário falar sobre o autismo regressivo. Por não entenderem do que se trata, pode haver pais que falem: “meu filho estava bem e acordou com autismo”; o transtorno sempre esteve ali, só se apresentou mais tarde. Ele não é provocado por vacina ou medicação.
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Levando as especificidades em consideração, a abordagem para trabalhar com pessoas com TEA é a análise do comportamento. As intervenções são estruturadas: tem começo, meio e fim, e são realizadas nos comportamentos que impedem que a pessoa se desenvolva.
Por conta das diferentes características que cada pessoa com autismo pode ter, Natália acredita que um dos maiores mitos é em torno da comunicação de sentimentos: “da mesma forma que as pessoas se expressam de maneiras diferentes na sociedade, as pessoas com TEA também podem demonstrar de maneiras diferentes. É necessário aprender a ler como a pessoa se comunica, se ela é verbal ou não e qual o nível de compreensão dessa pessoa. E isso tudo pode ser avaliado na intervenção constante.”
Outro mito é diretamente relacionado à intervenção: não é verdade que, uma vez diagnosticada, a pessoa pode sair do espectro. O que ocorre são diferentes níveis de desenvolvimento em resposta aos tratamentos, como conta a psicóloga: “a pessoa transita nesse espectro de acordo com a estimulação e a intervenção adequadas, precoces.”
EXTRA: o que se difere do desenvolvimento típico (de acordo com o “esperado”, dentro dos marcos do desenvolvimento) é chamado de atípico, não de anormal, que é uma linguagem pejorativa.
Inclusão na escola
Além da aquisição de conhecimento sobre a neurodiversidade, a advogada Vanessa Ziotti afirma que é a convivência com a diversidade em suas diferentes faces que a faz ser uma pessoa melhor todos os dias. Para ela, a visibilidade e a participação plena de pessoas com deficiência em todas as esferas sociais apoiam, ainda, a desconstrução do capacitismo:
“A inclusão é o primeiro passo para eliminarmos o capacitismo. É a base. E a inclusão precisa começar nos primeiros anos da infância; a educação é fundamental pra isso, porque é onde as crianças passam a maior parte do tempo. É na escola que elas vão ter convívio social com outras crianças.”
Para Raquel Del Monde, o que impede o desenvolvimento pleno de uma educação de qualidade a todos atualmente é o despreparo dos profissionais. Isso faz com que, na prática, muitas escolas e educadores não estejam totalmente aptos a trabalhar com crianças com diferentes perfis de aprendizagem, tenham elas deficiência ou não.
Ela trabalha há anos com capacitação de professores e equipes pedagógicas e conta que ainda há muito o que fazer para transformar o cenário atual, “que perpetua um modelo de ensino engessado, baseado em dogmas e padronização”.
A educadora da rede municipal de Duque de Caxias (RJ) Vilma Soares, que desenvolveu projeto para seu estudante com TEA durante a pandemia, também expõe a necessidade de estratégias para garantir a permanência dos estudantes nas escolas, pois “incluir não é só garantir o acesso desse aluno e sim zelar para que sua permanência se concretize em forma aprendizagem”, e que essa é uma evolução que precisa ser feita na educação.
A escola precisa ser pensada como um lugar de experiências variadas, para se adquirir conhecimentos significativos para a vida de cada um, para educar para a autonomia. Isso é possível com a criação de novos modelos de ambientes e materiais, bem como pensar em disciplinas com aplicação direta na vida prática, flexibilizar procedimentos de avaliação, permitir escolhas curriculares mais individualizadas, estimular estudo colaborativo e aumentar o uso de tecnologias.
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Para Vilma e Raquel, a inclusão não beneficia apenas um grupo: “todas as pessoas são beneficiadas, na verdade, não só as que tem TEA. São também as pessoas com TDAH, dislexia, discalculia, síndromes genéticas, deficiências sensoriais e intelectuais, quadros orgânicos e psiquiátricos, e pessoas sem deficiência.”, diz a médica.
Vilma complementa: “conviver com as diferenças faz com que as crianças se tornem ainda mais empáticas. Elas se espelham muito nas atitudes dos adultos, e precisam vivenciar atitudes positivas, pautadas no respeito ao diferente, para que ao longo da vida se tornem cidadãos mais conscientes. E é na escola que ela irá experimentar essas vivências desde cedo.”
A psicóloga Natália reforça que nenhum diagnóstico é uma sentença: “É possível trabalhar com crianças que estão no espectro. Tem uma frase do psicólogo Ivar Lovaas que diz ‘se eles não aprendem como nós estamos ensinando, vamos ensinar como eles aprendem’ e essa deve ser a máxima da intervenção com as crianças: entender que eles conseguem aprender, a gente só precisa achar o caminho.”
Parceria entre educação, família e saúde
Ao lado da inclusão e do compartilhamento de informações para que mais pessoas que não estejam no espectro ou que não possuam familiares com autismo entendam o que o transtorno é, o apoio da família também se mostra muito importante para que os direitos das pessoas no espectro sejam respeitados.
Raquel exemplifica que, muitas vezes, é pelo envolvimento dos pais que é possibilitado o acesso do filho com TEA a serviços de diagnóstico e terapia e é garantida uma participação ativa em seu próprio desenvolvimento e bem-estar.
“É a família que convive a maior parte do tempo. O acompanhamento vai desde os tratamentos médicos e terapêuticos, até o acompanhamento pedagógico na escola. O sucesso da aprendizagem da pessoa com TEA é resultado de um somatório de forças.”, afirma a educadora Vilma.
Sobre essa união de forças, Natália complementa que muita informação de qualidade pode ser encontrada on-line, mas que o autismo também deve ser discutido com a família, com os neuropediatras e com a escola: “A família tem um papel fundamental na execução do trabalho. Sempre falamos da tríade: terapeutas, escola e família. Os três tem que falar a mesma língua”.
Para Vanessa, depois de todo o processo de aprendizado e desconstrução pelo qual passou, ela não desejaria que seus filhos saíssem do espectro, se fosse possível: “Eles não seriam quem eles são e eu não seria mãe dos meus filhos, seria mãe de outras pessoas, e eu não quero. Eu coloquei pessoas maravilhosas, incríveis, no mundo e é delas que eu quero ser mãe.”