Como oportunizar o acesso de alunos com Síndrome de Asperger ao ensino superior

A Síndrome de Asperger se enquadra no bojo do Transtorno do Espectro Autista (APA, 2013) e está relacionada às alterações qualitativas na interação social, interesses restritos, sensibilidade a mudanças e rotinas, além de déficits de comunicação. As dificuldades ou limitações relacionadas à comunicação dizem respeito às inadequações de respostas em conversas, à inabilidade em interpretar sentidos e significados tanto nas relações não-verbais como na interpretação de textos.

Em 2011, pela primeira vez, foram incluídas as categorias de Autismo infantil, Síndrome de Asperger e Transtorno Desintegrativo da Infância no Censo da Educação Superior de 2011 (MEC/INEP, 2013). Apesar da nova nomenclatura se remeter ao TEA, os Censos ainda utilizam categorias anteriores e, por isso, destacamos a Síndrome de Asperger neste texto.

Assim, com relação à permanência do aluno com TEA na educação básica e sua transição para o ensino superior, percebe-se que vem acontecendo de forma contínua, mesmo que discreta. Os números dizem respeito àqueles que se autodeclararam com os respectivos diagnósticos. Entretanto, supõe-se que o número de matriculados com TEA deva ser maior.

 

Censo/Ano Número de matriculados com TEA
2011 137
2012 300
2015 442
2016 591
2017* 980
Fonte:  Orrú (2019); *MEC/INEP (2018)

Direito à educação

O Brasil possui um acervo legislativo e orientador importante em prol da inclusão da pessoa com deficiência. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD, ONU, 2006) é o primeiro instrumento jurídico de nível internacional para a garantia e defesa dos direitos e proteção às pessoas com deficiência. Deixa claro que essa responsabilidade é de todos da sociedade civil e não somente dos Estados. Em seu artigo 24, estabelece que a educação é um direito básico e fundamental para o processo de qualificação e empregabilidade.

Nesse sentido, promover a inclusão no ensino superior é algo importantíssimo e, para isso, é necessário que o sistema educacional se constitua de recursos, ferramentas e ações inclusivas para todos. No entanto, a passagem da educação básica para o ensino superior costuma ser conturbada e excludente em razão da forma como são concebidos e realizados os processos seletivos vestibulares (PSV) nas instituições de ensino superior que ainda permanecem com esse instrumento de seleção.

O PSV, dentre outros fatores, provoca uma ruptura drástica na vida estudantil daquele que tem Síndrome de Asperger, como no universo mais amplo do diagnóstico do TEA, uma vez que não responde as demandas do estudante em geral. Uma dessas demandas refere-se às dificuldades na área da linguagem, especificamente em compreender os sentidos e significados dos enunciados das questões, principalmente aqueles mais extensos e de pouca objetividade. Não se intenciona, aqui, generalizar que todos os estudantes com SA apresentarão dificuldades na compreensão de enunciados. Mas de alertar que esse acontecimento não é incomum.

De acordo com a nota técnica da Diretoria de Avaliação da Educação Básica de 2013 (MEC/INEP, 2012), devem ser disponibilizados serviços profissionais especializados e recursos de acessibilidade para a realização do ENEM. O ledor e o transcritor contam como serviços prestados aos candidatos com autismo (p. 6). No presente documento, o “Auxílio ledor” é destinado à leitura de prova para “pessoas com deficiência visual, deficiência intelectual, autismo, déficit de atenção ou dislexia” (p. 3).

Em razão das dificuldades relacionadas à Síndrome de Asperger, entende-se que o serviço oferecido não é suficiente para suprir as demandas apresentadas por esses candidatos. A ampliação da função para não somente ler a prova, mas também, quando necessário, esclarecer dúvidas e auxiliar nos textos, oferecendo sinônimos ou sinais que o ajudem no reconhecimento das expressões idiomáticas, orações e contextos, semelhante ao que é ofertado pelo serviço de “Tradutor-intérprete de LIBRAS”, preenche uma lacuna, cujo o propósito é proporcionar a igualdade de oportunidades.

Intérprete de enunciados para efetivar direitos

Levando-se em conta os estudos já realizados, essa singularidade sugere um profissional que o auxilie no processo interpretativo das mensagens dos enunciados, para que possa realizar a avaliação com melhor desempenho, de modo que usufrua da mesma igualdade de oportunidades dos demais candidatos sem o diagnóstico de TEA em sua amplitude.

Desse modo, a aplicação e realização do PSV ocorreria pelo que aqui denominamos como um “intérprete de enunciados” (IE) para o momento das instruções preliminares, bem como durante o exame, de maneira que possa ser consultado para o esclarecimento de possíveis dúvidas semânticas. O “intérprete de enunciados” acumularia os serviços de leitura e auxílio no esclarecimento de dúvidas para a melhor compreensão sobre os enunciados presentes nos processos seletivos e avaliativos em geral, a partir do favorecimento da percepção dos sentidos e significados das expressões idiomáticas, orações, metáforas e contextos.

“O auxílio do intérprete de enunciados às pessoas com Síndrome de Asperger não faz com que o acesso à educação superior fique mais fácil para elas ou que desfrutem de privilégios.”

Há que se lembrar, permanentemente, que as pessoas com deficiência, as pessoas com SA, estão a todo tempo procurando se adaptar à lógica e ao fluir das exigências de uma sociedade organizada, majoritariamente, de forma padronizada e excludente, que tem dificuldades e resistência em lidar com as diferenças, apesar das lutas e manifestos permanentes dos diversos e distintos movimentos sociais (SOUZA, 2008).

As barreiras dos vestibulares aos estudantes com SA

Também o processo de passagem do ensino regular da educação básica para o ensino superior é realizado por vestibulares que tendem a ser homogêneos e classificatórios, e, portanto, não respeitam todo o acervo legislativo que há em prol de uma educação de todos e para todos. Mesmo embora as instituições de ensino possam optar por diferentes formas de realização de seus PSV (tradicional, seriado, agendado, ENEM), o caráter conteudista privilegia alguns candidatos em detrimento de outros.

“Se o PSV é obrigatório para a ascensão ao ensino superior, ele também deve promover alterações e configurações necessárias às singularidades dos candidatos para que tenham igualdade de oportunidades, equidade e possam pleitear a uma vaga no curso de graduação que sonham realizar.”

Chama-se à atenção, igualmente, para os exames realizados pelo SISU, principal meio de acesso às instituições federais de ensino, bem como ao PROUNI e do FIES.

Neste contexto, é de compreensão que os Núcleos de Acessibilidade podem e devem suprir as demandas de alunos com deficiência nas universidades, sendo que nesta categoria encontram-se as pessoas com TEA (BRASIL, 2008). Não se deve colocar obstáculos ou impedimentos para o acesso à educação da pessoa com deficiência, seja na educação básica ou ensino superior. Ao contrário, deve-se garantir a igualdade de oportunidade em prol de um aprendizado para toda vida, com apoio educacional necessário com vistas a sua permanência na instituição de ensino de modo a facilitar seu processo de aprendizagem, inclusive, com adoção de medidas efetivas que considerem as singularidades do aluno.

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A inflexibilidade do PSV não deve ser a barreira a dificultar ou impedir a graduação desse candidato em questão; muito menos, o motivo de desperdício de talentos. Seria muito mais lógico, para os candidatos com Síndrome de Asperger, que o PSV fosse vocacionado, uma vez que seu potencial, seu conhecimento e suas habilidades cognitivas estão muito mais focadas em seu eixo de interesse, podendo revelar-se um talentoso profissional na área por ele escolhida. A propósito, a configuração de um processo de ingresso no ensino superior de acordo com o curso aspirado pelo candidato e focado no eixo de interesse poderia ser um caminho mais razoável de acesso para todos os estudantes, independentemente de suas diferenças singulares.

Igualdade de oportunidades, é preciso!

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-V. 5. ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.

BRASIL. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Brasília: Presidência da República, 2008.

MEC/INEP. O atendimento diferenciado no ENEM (Nota Técnica). Brasília: Diretoria de Avaliação da Educação Básica, 2012.

MEC/INEP. Censo da Educação Superior 2011: Resumo Técnico. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2013.

MEC/INEP. Censo da Educação Superior 2017: divulgação dos principais resultados. Brasília: Diretoria de Estatísticas Educacionais – Deed, 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Doc. A/61/611. Nova Iorque: ONU, 13 de dezembro de 2006.

ORRÚ, S. E. Alunos com Síndrome de Asperger: o intérprete de enunciados e o acesso à educação superior. Revista Educação em Perspectiva, Viçosa, 9, n. 3, 18 janeiro 2019. 668-693. Disponivel em: <https://periodicos.ufv.br/ojs/educacaoemperspectiva/article/view/7068/2872>. Acesso em: 16 julho 2019.

SOUZA, M. A. Movimentos sociais e sociedade civil. Curitiba: IESDE, 2009.


Sílvia Ester Orrú é doutora em Educação. Professora da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Alfenas. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão (LEPAI).

Este artigo é uma versão resumida do artigo “Alunos com Síndrome de Asperger: o intérprete de enunciados e o acesso à educação superior” publicado na Revista Educação em Perspectiva. Acesse: https://periodicos.ufv.br/educacaoemperspectiva/article/view/7068

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