A experiência de uma brasileira em escola inclusiva na Itália

A jornalista Valeria relata desafios e celebra conquistas na trajetória escolar do filho com deficiência: “Não existe nada mais inovador do que incluir pessoas”

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O que vem na sua cabeça quando pensa em uma mãe com um filho com deficiência? Dificuldades, limitações, tristeza e fragilidade? Com certeza as respostas serão parecidas, porque elas não vêm de vivências individuais, mas do senso comum que aponta a deficiência “como um triste destino”.  

Todos crescemos com essa ideia que afirma a existência de pessoas melhores e piores, normais e anormais. Uma fantasia coletiva que é muito violenta. Livrar-se disso é um processo de descoberta, reeducação e aceitação  não de um filho, mas das complexidades que envolve estar vivo e de partes nossas que não se encaixam em um “mundo de normais”.  

Por conta do trabalho, nós nos mudamos para Itália em 2014. Meu marido nasceu e cresceu na Itália, mas estava fora do seu país há 22 anos. Viemos para Bolonha, capital da região Emilia-Romagna, no norte do país. Uma cidade com cerca de 400 mil habitantes, dos quais quase cem mil são estudantes de uma das universidades mais antigas do mundo.  

Leone chegou em um dia raro de sol, no outono de 2015. Na maternidade, não tinha plaquinha com o seu nome nem lembrancinhas. Dividíamos um quarto com outra mãe que estava em observação para não ter o seu primeiro filho prematuro. Durante dois dias, meu marido dormiu em uma cadeira dura. Hospital público, todo mundo tinha o mesmo tratamento, sem hierarquia. 

Em 2018, eu segurava um diagnóstico na mão como quem segura um bilhete para um mundo desconhecido. A frase da doutora e professora especialista em genética da Universidade de Roma, Fiorella Gurrieri, reverberava em minha mente: “É irreversível, não existe medicina aqui. O seu filho será um reflexo da educação e dos serviços de saúde aos quais ele tiver acesso. O mais importante é pensar na inserção social dele”. O meu filho é uma pessoa com deficiência intelectual e motora decorrente da Síndrome do X Frágil. 

Eu tinha uma sensação de urgência dentro de mim e, junto dela, muitas perguntas. O que significava incluir uma criança com deficiência na Itália? Eu e meu marido tínhamos uma certeza: precisávamos encontrar uma comunidade que nos guiasse na jornada de criar uma criança com deficiência. Longe das minhas raízes, eu precisava de um porto, um farol que me ajudasse a navegar por esse mar bravo. 

Foi nesse deserto de incertezas que descobri uma associação de pais e famílias de pessoas com deficiência chamada Passo a Passo, liderada por Danilo Rasia. Por meio dela, conhecemos a Lei  104, de 1992, que garante às pessoas com deficiência o respeito à dignidade humana, à autonomia e à plena realização dos direitos civis, políticos e de propriedade. Essa lei italiana tutela e promove a plena integração da pessoa com deficiência na família, na escola, na comunidade, no trabalho e na sociedade.

Mas como fazer isso funcionar na prática? Eu sabia que precisava lutar para que o meu filho tivesse as mesmas oportunidades que as outras crianças. E fui compreendendo, lentamente, que a inclusão não é uma palavra atraente em um papel, é um processo que exige esforço, entendimento, dedicação, escuta e compaixão.

Eu mergulhei nos livros, nas pesquisas e em cada detalhe sobre a condição dele. Fui ao encontro do psicólogo e professor da Universidade de Évora, em Portugal, Vitor Franco, especialista na Síndrome do X Frágil. Suas palavras ficaram registradas: “No desenvolvimento da pessoa com X Frágil, a escola é o mais importante. Procure um país que tenha uma cidade, uma escola e um sistema inclusivo”. Ele estava me pedindo um pacote completo.  

Os aprendizados da vivência em família

Cresci em um ambiente em que a deficiência sempre esteve presente: minha mãe teve paralisia infantil e perdeu a visão de um dos olhos em um acidente. Ela sempre viveu à margem de uma sociedade capacitista (leia reportagem que explica o termo). Lembro-me de quando, na porta da escola, as crianças ficavam olhando para ela, e as mães diziam: Não olhe!”. Minha mãe, sempre atenta, nunca teve problema algum em comentar sobre a sua deficiência e dava uma bela aula para as crianças. Ela contava que a deficiência nunca foi obstáculo para ter quatro filhos, todos de parto normal, e para nos ensinar a ser anticapacitistas e não duvidar do potencial dos outros.  

No percurso com Leone, nada foi mais potente do que a musculatura que a vivência me trouxe. Mas também nada foi mais transformador do que o conhecimento que precisei buscar. Para minha surpresa, já estávamos em um dos países mais inclusivos, onde a Lei 104/1992 assegura o direito à inclusão. E por que isso é tão vital? Porque a lei estabelece a escola pública como um direito de todos. Não é a criança que precisa se adaptar à escola, mas a escola que precisa se adaptar à criança. A escola deve estar preparada para todas as eventualidades.

Porém, nada é automático. O sistema italiano oferece elementos e ferramentas, mas é crucial saber usá-las. Como, por exemplo, o professor de apoio, que é um educador especializado em educação especial e que trabalha na sala comum em colaboração com o docente responsável pelo processo de ensino da turma. Aqui não há um serviço em horário e local separados, como o atendimento educacional especializado (AEE) no Brasil, que via de regra acontece no contraturno. Muitas vezes o papel da família é ajudar o sistema a funcionar, fazer com que esses profissionais consigam acolher essa pluralidade que, durante tanto tempo, ficou à margem.

Foi uma jornada árdua, feita de encontros com representantes de entidades públicas, profissionais médicos e distintos personagens da escola, de pedagogos a neuropsiquiatras infantis, do sistema público, que acompanharão toda a trajetória escolar de Leone, ajudando a escola a encontrar estratégias para a aprendizagem dele. Existe uma preocupação em torno desse percurso, que é a de não deixar os desafios da educação se transformarem em assuntos médicos. 

Por isso, as equipes (educadores e profissionais de saúde) conversam entre si para entender como está ocorrendo o desenvolvimento do meu filho e o que cada especialista pode fazer dentro da sua atuação. Os profissionais da saúde vão apenas pontualmente na instituição de ensino para observar Leone no contexto escolar, mas sem interferir no trabalho pedagógico. Na última visita de observação, por exemplo, a neuropsiquiatra acompanhou um pouco da rotina de Leone, percebeu os avanços dele na interação com os adultos de referência e os limites na interação com os pares, indicando a necessidade de continuar o trabalho para que ele conquiste autonomia social.  

À medida que navegávamos por esse complexo sistema, senti-me rodeada por pessoas dispostas a ajudar meu filho a crescer e se desenvolver em uma sociedade que, por vezes, parece apática, dura e implacável. E isso fez eu me dar conta de que não existe nada mais inovador do que incluir pessoas, do que a potência de um bando de gente reunida para buscar conhecimento para isso. Faz-se professores e profissionais melhores a partir de pessoas dispostas a assumir o seu lugar na conversa, e não o contrário.

O início da jornada escolar  

Leone começou na Escola Materna Degli Esposti, uma instituição pública correspondente à educação infantil no Brasil, em 2018, com três anos de idade, usando fraldas, com dificuldade na fala e nas habilidades motoras e curioso para conhecer esse novo mundo que estava por vir. Ir à escola nunca foi um problema para ele.

Junto com o grupo operativo (na Itália, a criança ou adolescente com deficiência é acompanhada por um conjunto de pessoas formado por educadores, profissionais da saúde e família, que se reúne ao longo do ano para avaliar o desenvolvimento da criança e replanejar o que será feito), adotamos um calendário com informações visuais com o qual ele conseguia entender as atividades planejadas, a rotina, a previsão do tempo para cada etapa do dia e os horários de voltar para casa.  

Aos poucos ele foi ampliando a participação nas atividades do grupo. Uma que estava na rotina era a chamada, quando cada criança, conforme seu nome era dito, colocava sua foto no quadro. Muitas vezes, Leone assumia a missão de colocar as imagens de todas as crianças no quadro.  

Leone tinha muitos momentos nos quais ficava incomodado, principalmente com barulho ou mudança de rotina. Para essas situações, foram utilizadas estratégicas práticas para incentivá-lo a retomar as atividades com a turma, como um passeio no jardim ou ir a uma sala fazer alguma atividade em silêncio, onde ele conseguia se acalmar antes de retornar. 

Sua verdadeira paixão não eram as professoras, mas Dada Rosa, a senhora responsável pelos serviços gerais da escola, que nos momentos nos quais Leone estava mais agitado o assumia como assistente, na cozinha e por toda a escola.

A transição para o ensino fundamental  

Todas essas estratégias, que são infinitas, seguiram com Leone quando ele foi transferido para a Escola Primária Fortuzzi, também pública e que atua como o equivalente no Brasil ao ensino fundamental. Agora ele irá iniciar a terceira série.  

A escola é em tempo integral, com atividades entre 8h30 e 16h30. Em sua classe, temos três professoras oficiais (de italiano, matemática e história), além da professora de apoio. É importante dizer que ele tem direito a 40 horas semanais de professores de apoio, mas, se estivesse em uma escola privada, esse direito seria reduzido em 60%. 

Na Fortuzzi, há quatro professores de apoio que se revezam entre turnos e classes responsáveis por ajudar a incluir a criança com deficiência em seu grupo social e na equipe escolar. A proposta de não ser uma professora fixa é essencial para a autorregulação de Leone e para que ele compreenda as trocas de apoio. Isso é feito para não sobrecarregar uma única pessoa, afinal são várias horas de atividades na escola, e não prejudicar a criança. Com uma só pessoa de referência, imagine o que poderia ocorrer, por exemplo, quando ela se ausentasse por conta de doença? Poderia gerar uma dificuldade de adaptação da criança e da continuidade do planejamento pedagógico, pois mudanças de pessoal podem causar instabilidade.  

Por outro lado, ter um grupo de quatro educadoras que se revezam entre si contribui para mais criatividade nas propostas de atividade e na maneira de lidar com eventuais situações desafiadoras, para a redução do cansaço mental e, especialmente, para a troca de experiências e perspectivas entre elas. Para a criança, também é importante aprender a lidar com mudanças e com a diversidade de interações para manter um desenvolvimento educacional consistente.    

Nas escolas italianas, existem duas ferramentas fundamentais no planejamento do ano escolar: o Plano Educacional Individualizado (PEI) e o Plano Educacional Personalizado (PDP). O PEI é sempre obrigatório nos casos de estudantes com deficiência que tenham laudo e é elaborado com base nas informações prévias de cada criança, enquanto o PDP é formalizado a partir de um modelo pré-estabelecido que avalia as habilidades do aluno em diversas atividades.  

Infraestrutura e materiais adaptados  

A Fortuzzi se encontra dentro do parque principal de Bolonha, o que garante um jardim grande em seu entorno, onde as crianças realizam diferentes atividades externas como horta, encontro literário embaixo da copa de uma árvore e educação física. No inverno, uma parceria entre a prefeitura e um clube privado garante aulas de tênis para os estudantes em um local fechado.  

A unidade tem uma biblioteca que é utilizada pelas crianças quase que diariamente. Toda sexta-feira elas escolhem um livro para ler em casa durante o fim de semana. No caso de Leone, há opções de títulos adaptados por meio da comunicação aumentativa alternativa (CAA).   

A partir desse ano letivo, que começa em setembro, Leone vai ser o primeiro a usar recursos digitais para fazer as atividades. A expectativa do grupo operativo é de que, com isso, ele consiga avançar em seu processo de alfabetização e de entendimento dos números, uma vez que a escrita em letra cursiva ainda é uma barreira a ser superada. 

Esse apoio de especialistas e do sistema são cruciais na trajetória escolar de Leone. Encontramos pessoas preparadas e com vontade de se aprofundar. A colaboração é essencial para manter a coerência entre a família, a criança e o trabalho da escola e dos profissionais de saúde. 

É evidente que temos muitos desafios a serem superados. Leone ainda não lê e não escreve. Durante o percurso até aqui, ele se mostra eficiente na escuta, atenção e planejamento. É inegável que a prática do dia a dia é difícil e requer de nós uma constante preparação para cada etapa. O modelo de aprendizagem dele precisa sempre de ajustes para que possamos alcançar os objetivos necessários. 

Mas, ao refletir sobre tudo isso hoje, eu me pergunto: e depois da escola, como será? A vida social é crucial para uma criança com a Síndrome do X Frágil. Precisamos pensar em como assegurar que Leone terá o apoio necessário para desenvolver suas habilidades sociais e viver uma vida plena e enriquecedora.

Como Clarice Lispector escreveu: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Viver ultrapassa o entendimento. Esse mergulho profundo, de se render e lutar, de encontrar forças na fragilidade, tornou-se a nossa jornada diária. 

Pioneiros na educação inclusiva  

A Lei 104, de 1992, trata da “assistência, integração social e direitos das pessoas com deficiência”. O primeiro artigo estabelece a responsabilidade da República de garantir o pleno respeito pela dignidade humana e os direitos à liberdade e à plena integração na família, na escola, na comunidade, no trabalho e na sociedade. Os artigos 12 e 13 tratam de assegurar a presença dos estudantes com deficiência em escolas comuns. 

Antes, porém, já havia leis que apontavam para uma educação inclusiva. Desde 1971 (Lei nº 118/1971), a Itália garante o acesso à sala de aula regular para todas as crianças e os adolescentes com deficiência. Em 1977, por meio da Lei nº 517, todas as escolas especiais foram abolidas. E como o Brasil, o país é signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2006. A ratificação italiana ocorreu em 2009. 

Na região da Emilia Romagna atuam 185 mil professores de apoio nas escolas públicas, segundo o Ministério da Educação da Itália. Atualmente, a proporção de estudante com deficiência (handicap) para cada professor de apoio (insegnante di sostegno) é de 1,4, abaixo do que a legislação em vigor recomenda, que é de dois alunos para cada docente.

Nos últimos 20 anos, o percentual de professores de apoio mais que dobrou na região, passando de 9,1% para 19,4% do total de docentes. 

Itália em números 

População: 58,8 milhões de habitantes

IDH: 0,895

Esperança de vida ao nascer: 82,85 anos

Taxa bruta de matrícula para todos os níveis de ensino: 90,77%

Taxa de conclusão do ensino primário: 98%*

Taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais: 99,35%

Investimento em educação em relação ao PIB: 4,2%**

Despesa anual por estudante de 11.400 dólares**

Os salários médios reais dos professores representam 69% da remuneração paga a outros trabalhadores com nível de ensino superior.**

Fonte: IBGE Países, *The World Bank Data e **Education at Glance 2023 

6 Comentários

  • Que texto incrível! Amei ler cada passo dessa jornada que vem nos ensinando tanto e descobrir ainda mais detalhes desse processo que é uma inspiração. <3

  • Parabéns para essa mama pela jornada incrível de inclusão. Adorei conhecer mais a fundo esse processo e ver na prática a importância de políticas públicas bem executadas. Um sonho para gente aqui!

  • Importante relatos como esse, modelos que funcionam e não nos deixam desistir da busca diária, trabalho colaborativo, cultura inclusiva, avanço pedagógico e social.

  • Obrigada por dividir conosco a trajetória desbravadora e linda que me faz conhecer um pouco mais deste seu caminho! (E como escreve bem!) Congratulo Leone, vocês e também a Italia pela seriedade!

  • Valeria, que forte e inspirador acompanhar sua jornada de força inclusão, dedicação e por fim por contar e compartilhar ao mundo a sua trajetória. A luta da inclusão pelo que você conta, está bem avançada na Italia, já no Brasil nao é bem assim, torço que essa sua fala sirva de motivação para pequenos e constantes avanços na inclusão das crianças atípicas por aqui.

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