Brincadeiras estimulam prática de atletismo e esportes coletivos

A chegada dos estudantes Erick* e Tiago* na Escola Estadual Vereador Narciso Yague Guimarães, em Mogi das Cruzes (SP), despertou minha atenção. Há mais de 20 anos atuando como professora de educação física, até aquele ano, nunca havia trabalhado com alunos autistas. Senti a necessidade de aprofundar meus conhecimentos sobre educação inclusiva para proporcionar uma aprendizagem digna e coerente para esses estudantes. Durante os dois anos em que lecionei para suas turmas, procurei trabalhar as propostas curriculares para o ciclo II do ensino fundamental na perspectiva inclusiva, adaptando atletismo e esportes coletivos.

Leia também:
+ Inclusão por meio do esporte: dicas e práticas para a educação física

Localizada no bairro periférico de Vila Natal, a escola atende cerca de 1.100 educandos dos anos finais do ensino fundamental, do ensino médio e da educação de jovens e adultos (EJA). Quando assumi as turmas de Erick (7º ano) e Tiago (8º ano), os garotos apresentavam laudos médicos de Síndrome de Asperger e transtorno do espectro autista (TEA), respectivamente. Ambos eram agitados durante as aulas. Tiago tinha mais dificuldade em compreender ordens, apresentava menos noção de perigo e se isolava com mais frequência. Já Erick faltava mais às aulas.

Após compreender um pouco melhor o que é inclusão, realizei um planejamento pedagógico pautado na valorização das interações entre os estudantes. Para isso, busquei ressaltar o elemento lúdico, utilizando diferentes tipos de materiais e aplicando brincadeiras nas quais as turmas puderam desenvolver os movimentos requeridos para a prática dos esportes de modo autônomo, sem o rigor da técnica. As atividades executadas foram referentes à proposta curricular de educação física para os anos finais do ensino fundamental.

Atletismo

O primeiro eixo temático trabalhado foi o de atletismo. Para desenvolver os movimentos básicos da modalidade, inseri elementos como estafetas, cordas, bastões, colchões, cones e bolas de tamanhos diferentes. As atividades foram realizadas ora em grupo, ora individualmente.

• Salto: foram feitas atividades de salto em distância e em altura com o uso de cordas e tatames. Uma das estratégias utilizadas foi a brincadeira do “aumenta-aumenta”, na qual duas pessoas sustentam uma corda estendida em diferentes níveis para que os alunos a saltem. A cada passagem de todo o grupo sobre o obstáculo, a altura da corda é aumentada. A atividade visa desenvolver a coordenação motora, o trabalho em equipe, o senso de equilíbrio e a concentração.

• Corrida: o tema foi desenvolvido por meio de uma série de jogos como “pique-bandeira”, “pega-pega”, corridas em dupla (na qual os dois integrantes amarram braços e pernas juntos). Com o uso de estafetas, foi possível trabalhar a técnica de revezamento. Nessa atividade, as crianças se organizaram em duas filas. Cada participante correu até um ponto final, contornou um obstáculo (uma garrafa com água ou areia, um cone etc.) e retornou, liberando o próximo colega de time para iniciar o exercício por meio de um toque de mãos.

Esportes coletivos

Nas aulas de esportes coletivos, novamente, recorri a atividades lúdicas para apresentar os movimentos do handebol, do basquetebol, do futebol e do voleibol.

Handebol: a preparação é a queimada, que realizei com diversas variações. Em uma delas, com todos dispersos pela quadra, iniciei o jogo lançando a bola para cima. O jogador que pegou a bola deu três passos e tentou queimar um colega. O estudante atingido deveria, então, se sentar. Para retornar à brincadeira, ele deveria capturar a bola do lugar em que estava parado. Outras versões jogadas foram a queimada com passada direta (na qual não se pode andar segurando a bola) e a queimada em dupla, em que um aluno deveria realizar um passe para que um colega pudesse “queimar” alguém.

Voleibol: a variação “vôlei câmbio” costuma ser praticada por pessoas idosas e é uma boa prática para introduzir os fundamentos do vôlei. Ao invés dos movimentos de manchete e toque direto, nessa versão, as crianças puderam segurar a bola antes de passá-la. Em quadra, criamos diversas regras de acordo com as sugestões dos estudantes. Em certas partidas foi possível executar os dois movimentos: passar imediatamente ou segurar a bola. Já em outras, definimos que o toque direto não seria válido.

Futebol: o esporte foi introduzido por meio de atividades de chute ao gol. Para torná-las mais atrativas, utilizamos garrafas cheias de água debaixo das metas como alvo. Para trabalhar o domínio de bola, dispusemos garrafas pela quadra para que as turmas desviassem. As partidas foram realizadas com times mistos de meninos e meninas, o que integrou todo o grupo.

Basquetebol: procurei realizar atividades com vários tipos de bola, em diferentes tamanhos e formatos. Em uma das práticas propostas, duas equipes se deslocaram pela quadra executando apenas o passe, sem o drible, até que alguma acertasse a cesta.

Avaliação

Procurei realizar um trabalho integrado com as mães dos garotos com autismo. Durante todo ano, estive em contato com elas, trocando informações sobre seus filhos. Conforme convivíamos, percebia que seria necessário apresentar os materiais e o espaço utilizados com antecedência para Tiago. Assim, ele poderia se habituar. Também foi preciso explicar-lhe individualmente as atividades. Sua questão social era mais prejudicada e, por isso, fui introduzindo o auxílio dos colegas nas atividades que propunha aos poucos. A participação de Erick foi muito espontânea e proveitosa.

Acredito que introduzir os movimentos do atletismo e esportes coletivos por meio de brincadeiras proporcionou aulas muito mais instigantes e ricas do que aquelas em que há a mera repetição de exercícios técnicos. Ao término do projeto, a avaliação foi realizada a partir dos registros escritos e da observação da participação e do interesse da classe durante a prática. Todos realizaram uma prova em que associaram figuras, desenhos e letras aos esportes estudados. O uso desses elementos visuais foi uma estratégia para facilitar a compreensão não só dos alunos com autismo, como também de outros com possíveis dificuldades.

Os resultados foram maravilhosos. Os estudantes participaram com entusiasmo, propondo alterações nas atividades ou realizando comentários. Houve respeito pelas diferenças e prazer em frequentar as aulas.

Desafios e continuidade

Inexistia na escola uma proposta efetiva de inclusão interdisciplinar e de atuação colaborativa com o atendimento educacional especializado (AEE). Muitas burocracias dificultavam essas iniciativas, pois desconheciam a realidade e as necessidades inclusivas da escola regular. Isso porque, infelizmente, o Projeto Político-Pedagógico (PPP) é muitas vezes visto como mera formalidade a ser cumprida. Assim, deixa de ter seu devido valor, que é identificar a trajetória da comunidade escolar, sua história, sua cultura e particularidades. Não são raras as unidades onde o documento acaba sendo copiado, resumido sem a devida consistência, apenas para cumprir uma exigência legal.

Foram Erick e Tiago quem me incentivaram a buscar mais conhecimento. Pretendo iniciar uma especialização em neuropsicopedagogia e psicomotrocidade. Desse modo, quero continuar buscando mais informações para auxiliar não só estudantes com autismo, como os outros e também suas famílias.

* Nomes fictícios para preservar a identidade dos estudantes.

Deixe um comentário