Sociedade civil propõe diretrizes para Educação Integral Antirracista no Ensino Fundamental
Publicação lançada no MEC apresenta reflexões e indica propostas práticas para garantir os direitos de estudantes negros, quilombolas, indígenas e com deficiência

Foi lançada nesta semana, no Ministério da Educação (MEC), a publicação “Diretrizes de Educação Integral Antirracista para o Ensino Fundamental: uma contribuição da sociedade civil”, destinada a educadores e gestores escolares e das secretarias de Educação. Desenvolvido com o apoio estratégico da Porticus pela Cidade Escola Aprendiz, Roda Educativa e Ação Educativa, em parceria com 25 organizações — dentre as quais o Instituto Rodrigo Mendes (IRM) — e movimentos sociais, o material propõe práticas e reflexões para garantir que os direitos dos estudantes sejam efetivamente respeitados. Para isso, direciona o olhar para as desigualdades educacionais, especialmente aquelas que afetam as populações negras e indígenas.
O caminho escolhido baseia-se na proposta de articulação entre as diretrizes da Educação Integral e da Educação para as Relações Étnico-Raciais (Erer). A primeira visa o desenvolvimento pleno dos estudantes em diferentes dimensões (intelectual, física, emocional, social e cultural), promovendo uma aprendizagem conectada à vida e ao território. A Erer, por sua vez, busca o reconhecimento e a valorização da diversidade étnico-racial, combatendo o racismo e incluindo saberes de povos africanos, afro-brasileiros, quilombolas e indígenas no currículo. Essa articulação enfatiza que tais perspectivas são inseparáveis no compromisso com uma educação inclusiva, democrática, ética, responsável e contextualizada.
Raiana Ribeiro, diretora de Programas na Associação Cidade Escola Aprendiz, explica que “a Educação Integral Antirracista é um conceito que articula os princípios da Educação Integral com os fundamentos da Educação para as Relações Étnico-Raciais para fazer convergir uma proposição que considere as identidades, as trajetórias, as práticas socioculturais, os múltiplos saberes e o território como partes indissociáveis de toda ação educativa voltada ao desenvolvimento integral dos estudantes”.
Nesse sentido, ela acrescenta, “as diretrizes reforçam que não é mais possível pensar e desenvolver uma Educação Integral sem o compromisso efetivo com o enfrentamento ao racismo e a todas as formas de desigualdade que se reproduzem no interior das escolas e redes de ensino no Brasil”.
Além de um diagnóstico sobre como essas iniquidades afetam o acesso, a permanência e a aprendizagem de diferentes grupos — meninos e meninas, negros e negras, quilombolas, indígenas, povos e comunidades tradicionais e pessoas com deficiência —, o material com as diretrizes aponta, de acordo com Raiana, caminhos concretos para que professores, gestores escolares e de secretarias de Educação possam desenvolver políticas e práticas que busquem superar essas desigualdades educacionais e garantir o direito à educação de forma sustentada para todos.
No documento, esses caminhos passam por ações necessárias para estruturar uma gestão democrática, rever o currículo, as práticas pedagógicas e o sistema de avaliação, repensar a construção das relações dentro do ambiente escolar e com a comunidade do entorno e organizar as formações dos educadores.
Deigles Amaro, especialista em gestão educacional do IRM, ressalta um ponto essencial. Ela afirma que a educação antirracista está diretamente atrelada à educação inclusiva, pois ambas “estão comprometidas com uma melhor qualidade de educação para crianças, jovens e adultos, considerando questões de gênero, raça, etnia, características físicas, intelectuais e sensoriais. Ou seja, a maneira de cada um ser e estar no mundo, sua cultura e sua realidade. Ter essa articulação como base é importante porque favorece movimentos de conquista de direitos, especialmente quando estamos lutando por equiparação de oportunidades em um contexto de desigualdades”.
Vale ressaltar que a iniciativa não tem força normativa, uma vez que foi realizada por organizações da sociedade civil. Elaborada a muitas mãos, com contribuições de instituições com ampla experiência no tema e que atuam em defesa do direito à educação, a publicação visa subsidiar educadores e fortalecer políticas públicas e programas governamentais.
Trajetória escolar afetada por desigualdades
- Na Educação Infantil, a maioria das crianças matriculadas em tempo integral, portanto com uma jornada estendida, é branca;
- À medida que os estudantes avançam no Ensino Fundamental, negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência enfrentam um crescimento mais acentuado das taxas de reprovação, distorção idade-série, evasão e abandono escolar em comparação aos alunos brancos, refletindo os impactos do racismo na permanência, aprendizagem e desenvolvimento integral;
- Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, a taxa de evasão entre estudantes negros e quilombolas (1,8%) é o dobro da registrada entre brancos (0,9%). Entre estudantes indígenas, esse percentual chega a 5%, enquanto entre pessoas com deficiência atinge 2,6%;
- Já nos anos finais, a evasão sobe para todos os grupos, mas em proporções diferentes: 4,8% para quilombolas, 4,9% para indígenas e pessoas com deficiência, 3,5% entre negros e 2,1% entre brancos.
- A taxa de distorção idade-série nos anos iniciais do Ensino Fundamental de maneira geral é de 7,5%. Esse percentual está acima da média para pessoas negras (9,1%), indígenas (22,1%), quilombolas (10,6%) e com deficiência (18,6%), e está abaixo da média para pessoas brancas (4,5%).
- Nos anos finais do Ensino Fundamental ocorre o mesmo: a taxa geral é de 17%, mas o percentual está acima da média para pessoas negras (20,9%), indígenas (43,9%), quilombolas (30,3%) e com deficiência (39,4%), e está abaixo da média para pessoas brancas (10,8%).
Fonte: Diretrizes de Educação Integral Antirracista para o Ensino Fundamental
O atual cenário brasileiro
O material com as diretrizes apresenta um estudo realizado no ano passado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC, no qual foi identificado que, embora o Brasil tenha marcos legais exemplares para a promoção da equidade racial na Educação, a implementação dessa legislação continua a ser um desafio, com dificuldades inclusive institucionais. Ao todo, 5.427 municípios brasileiros de todos os estados da federação (98% do total) responderam ao levantamento.
A pesquisa indica que apenas sete unidades da federação têm acima de 30% das cidades com Educação para as Relações Étnico-Raciais nas redes municipais; as demais unidades estão entre 20 e 30%. “Esse cenário revela que, apesar dos avanços no campo normativo, especialmente no que diz respeito às leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, entre outros dispositivos, ainda temos grandes desafios para garantir que a Erer seja implementada no cotidiano das escolas e redes de educação brasileiras”, afirma Raiana.
Ela afirma que o estudo da Secadi expõe um conjunto de fragilidades que, amparadas pelo racismo institucional, afetam as condições necessárias para que a Erer se viabilize — com investimento de recursos, formação continuada dos professores, revisão dos currículos, materiais contextualizados e acessíveis, formas de monitoramento e avaliação, infraestrutura adequada, protocolos de encaminhamento dos casos de racismo, práticas de escuta e participação comunitária, entre outros.
“As diretrizes buscam fortalecer a reflexão e o diálogo sobre essas questões, desnaturalizando o racismo, tornando visível os impactos de todas as formas de desigualdades na trajetória educacional das nossas crianças, adolescentes e jovens e apresentando princípios, práticas e competências que ajudam a traduzir e oportunizar a Educação Integral Antirracista na rotina dos ambientes escolares. Esse referencial pretende, sobretudo, dar suporte e estimular docentes, gestores, comunidade escolar e secretarias de Educação a revisarem e transformarem suas práticas, orientando sua atuação para a construção de uma escola que seja mais equitativa, participativa e livre de violências”, completa.
Deigles reforça que as diretrizes “nos convidam a pensar os tempos, os espaços, as relações e as propostas experenciadas no cotidiano escolar, considerando como isso pode ser vivido respeitando e valorizando as maneiras de ser e estar no mundo de cada pessoa. Como podemos trabalhar consciente e criticamente para lidar com os preconceitos cotidianos e criar um espaço para que se aprenda a reconhecer que o convívio com as diferenças é uma alavanca para o desenvolvimento integral e para os processos de aprendizagem? Nesse momento histórico, faz-se necessário explicitar, por meio de diretrizes, o quanto precisamos atuar intencionalmente com fluxos e processos que criem melhores condições para que todos os estudantes estejam em uma escola mais humana, democrática e inclusiva”.
Saiba mais: