“Oferta plena de comunicação acessível é indispensável para uma educação inclusiva” 

Ao lançar seu 15º livro em nove formatos, Claudia Werneck defende de forma categórica: “sem acessibilidade física e comunicacional, não há a inclusão” 

A foto mostra a escritora e ativista Claudia Werneck, uma mulher branca, de cabelos curtos e grisalhos. Claudia usa óculos de grau de armação escura e uma blusa em tons de vermelho, amarelo e laranja, e está sorrindo para a câmera fotográfica. Em sua mão esquerda, ela segura o livro Tia Zilda - Histórias de inclusão, cuja capa tem fundo branco e o desenho de uma menina com cabelos de folhas abraçando o planeta Terra.
“Praticar inclusão é se dedicar a um roteiro de expansão da consciência para dar conta da humanidade como ela é, e não mais como nós gostaríamos que fosse”, defende Claudia Werneck. Crédito: Escola de Gente/PH de Noronha

“Inclusão não significa colocar para dentro quem está fora, porque isso significaria que ‘dentro’ está ótimo, e não está. Inclusão é uma proposta de revolução sistêmica para que a educação e outros sistemas se estruturem para atender as necessidades de todas as pessoas que de fato existem, e não daquelas que nós gostaríamos que existissem.” É o que defende a jornalista, escritora e ativista em direitos humanos Claudia Werneck, idealizadora da Escola de Gente — fundada em 2002 com o objetivo de colocar a comunicação a serviço da inclusão na sociedade, principalmente de grupos vulneráveis, como o de pessoas com deficiência.  

Claudia acaba de lançar seu 15º livro sobre inclusão e diversidade. Trata-se da obra “Tia Zilda – Histórias de inclusão”, lançado pela WVA Editora e a Escola de Gente, uma coletânea diversificada de contos, crônicas e artigos. 

“Crianças precisam saber a verdade, que toda pessoa, desde que nasce, tem o mesmo valor humano, que não se mede por nada, não diminui ou aumenta. Essa é a conversa que precisamos ter com as crianças. E se ao final dela vierem com a pergunta: ‘por que algumas crianças têm deficiência?’,  respire, aliviada, e responda: ‘pela mesma razão que algumas não têm’.” Esse trecho é um pequeno, porém potente, exemplo de como Claudia reitera, com firmeza, seu compromisso ético com a defesa dos direitos humanos. 

Com prefácios de Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas do Brasil; Sheila Kaplan, doutora em literatura e jornalista da área cultural; e Diego Werneck Arguelhes, professor associado do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), a obra está disponível em nove formatos acessíveis: impressão em tinta, audiolivro, audiolivro com audiodescrição, PDF com audiodescrição, arquivo TXT com audiodescrição, arquivo DOC com audiodescrição, vídeo com Libras e legendas, vídeo em linguagem simples com todo o conteúdo do livro e e-book acessível com descrição de imagens e gráficos. 

O livro pode ser baixado gratuitamente pelo aplicativo de cultura acessível “VEM CA”, da Escola de Gente, e nas plataformas digitais da organização. Além disso, a capa conta com um QR Code em relevo, que oferece acesso rápido a todos os formatos. Na versão física, a obra foi produzida com o uso de wire-o (espiral) para facilitar o manuseio por pessoas com dificuldade motora.  

Ao conceder entrevista ao DIVERSA, a autora explica por que a oferta de livros acessíveis fortalece a educação inclusiva e comenta os avanços na política e no marco legal brasileiro. Ela esclarece também que a sociedade deve ser cada vez mais vigilante para responder com agilidade à onda conservadora, afim de evitar retrocessos na garantia de direitos.  Confira a entrevista completa a seguir. 

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Como foi o processo para tornar seu livro acessível em nove formatos?

Claudia Werneck: Livro, para mim, tem de ser muito acessível, com diversos formatos, porque senão vira um objeto de discriminação, e não de democratização de informação. O que eu fiz, na verdade, ao pensar na publicação desse livro, foi apenas acrescentar um formato novo: o do filme em linguagem simples, para que pessoas com deficiência intelectual e outras pudessem acessar o conteúdo, tudo validado com pessoas com deficiência intelectual. Decidi acrescentar esse formato porque o livro será distribuído principalmente para estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA).  

Por que essa não é a realidade na maioria dos lançamentos editoriais? 

As leis brasileiras dispõem que todo livro publicado deve ter pelo menos um formato digital acessível a ser vendido como o formato impresso em tinta. Na realidade, isso raramente acontece. Em 2011, a Escola de Gente e a WVA Editora especializada em livros acessíveis, e incubadora da Escola de Gente lançaram a campanha “Todas as pessoas têm direito a conhecer todas as histórias”, com o apoio do Ministério da Cultura, justamente para fortalecer a concepção de leitura acessível, o que transcende a ideia do livro acessível. Na época, publicamos o primeiro livro infantil do Brasil em oito formatos acessíveis, “Sonhos do dia”, de minha autoria, por meio da Lei Rouanet, com patrocínio da empresa White Martins. Essa ação foi premiada na sede da ONU [Organização das Nações Unidas], em Viena, na Áustria, como um dos projetos mais inovadores do mundo na área de inclusão e acessibilidade.  

Como ter livros acessíveis fortalece uma educação inclusiva?

A oferta plena de comunicação acessível é um atributo indispensável para uma educação inclusiva. Livros acessíveis, em diferentes formatos, como em vídeo com Libras e legenda, são fundamentais para garantir o acesso a conteúdos e histórias com equiparação de oportunidades a qualquer estudante; no caso, quem é surdo ou surda. E o conceito de comunicação acessível vai muito além da relação sala de aula-professor ou professora. Por exemplo, em regiões mais empobrecidas, muitas vezes, a criança não tem deficiência, mas a pessoa responsável por ela é analfabeta, e a professora só se comunica com as famílias por escrito. Ora, se a escola não implementar um plano de comunicação acessível que resolva também esse dilema de como a professora vai se comunicar com a responsável pela criança cotidianamente, para mim não será uma escola de fato inclusiva, porque todo o sistema escolar deve se transformar.

Há mais de 25 anos, você perguntava: “Quem cabe no seu todos?”. No seu livro atual, você continua a dizer que “há sempre um sentido pronto para justificar a exclusão”, e exemplifica com o fato de muitos continuarem a usar adjetivos como “especiais” ou “diferentes”. Em 2025, o quanto podemos comemorar em termos de avanços no caminho da inclusão efetiva e o que ainda anda lento demais? 

A inclusão, como conceito e prática, é um tema muito mal utilizado pela sociedade e pelos governos e hoje, pelo congresso, principalmente. Quem de fato sabe que inclusão não significa colocar para dentro quem está fora, porque isso significaria que “dentro” está ótimo, e não está. Inclusão é uma proposta de revolução sistêmica, para que a educação e outros sistemas se estruturem para atender as necessidades de comunicação, por exemplo, de todas as pessoas que de fato existem, e não daquelas que nós gostaríamos que existissem. Sem sairmos dessa espécie de delírio coletivo que considera que o conjunto da humanidade é algo que existe a partir do nosso desejo e continuarmos trabalhando com repertórios particulares de diversidade, estaremos longe da prática da inclusão, que deve ser cotidiana.  

O que podemos comemorar? A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [PNEEPEI], de 2008; e, como leis, a assinatura da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que no Brasil foi assinada com valor de Constituição, e a Lei Brasileira de Inclusão, a LBI. E movimentos como a Rede Brasileira de Inclusão [Rede-In], da qual a Escola de Gente e o Instituto Rodrigo Mendes (IRM) fazem parte, que diariamente realizam advocacy para interromper leis e projetos de lei que irão prejudicar pessoas com deficiência infelizmente, muito comuns hoje em dia. E facilmente assimilados pelo senso comum como bons. 

O que é uma escola inclusiva para você? Essa escola, na prática, é realidade no Brasil?

Tenho a minha definição de escola inclusiva, que escrevi para o livro “Quem cabe no seu TODOS?”. ‘Escola inclusiva é aquela onde as gerações se encontram, se reconhecem a partir de suas diferenças como parte de um todo indivisível, participando dos processos de aprendizagem juntas, durante os quais se testam eticamente e aprendem onde podem ajudar e serem ajudadas, se preparando para resolver novos e antigos dilemas que as gerações anteriores não conseguiram resolver.’ Essa ainda não é a realidade da maior parte das escolas no Brasil. E essa escola só será inclusiva, na minha opinião, se tiver como eixo estruturante uma ampla e diversificada oferta de comunicação acessível, que não é tudo, mas é um dos seus requisitos principais.

Como avançar na construção de uma educação inclusiva?

Profissionais da educação que fazem a gestão da escola, professoras e professores, todo mundo que trabalha dentro da escola deve fazer uma espécie de malhação psíquica e neuronal o que vai incomodar mais no início, como toda malhação sobre o conceito e a prática da inclusão diariamente. Com isso, acumularemos sinapses inclusivas, o que usualmente não temos.  E isso diante de pessoas com muitas diferenças, além da presença de pessoas com deficiência como estudantes, gestores ou gestoras, professores e professoras. É preciso desenvolver uma nova ética, aquela que nem valoriza a diversidade ou as diferenças, nem a enaltece, porque sabe que elas são tão intrínsecas à humanidade que não precisamos celebrá-la, apenas propiciar momentos de verdadeira inclusão a partir delas. E, claro, conhecer a política a qual me referi acima [PNEEPEI] e trabalhar para implementá-la, o que os governos precisam fazer com muito mais empenho, recursos financeiros e devoção.

Estamos sabendo comunicar o que é inclusão (por exemplo, sabendo demonstrar a diferença entre acessibilidade e inclusão) para as pessoas?  

Não. Existe um desinteresse pelo sentido real da palavra inclusão, ainda que esta seja cada vez mais utilizada. Usa-se o adjetivo inclusivo como se quer, e quase sempre sem vínculo com a oferta de qualquer acessibilidade, física ou comunicacional. Ou usam a expressão acessibilidade como algo opcional no contexto de inclusão. As próprias pessoas com deficiência, de tanto viverem sem direitos, também não solicitam a acessibilidade comunicacional que precisam, contentando-se com remendos ou migalha de uma acessibilidade mal feita, porque a acessibilidade deve ser oferecida por profissionais. A verdade, para mim, é que sem acessibilidade física e comunicacional não há inclusão. Entretanto, a oferta de acessibilidade por si só não é garantia de inclusão. Podemos ter um encontro de nazistas ou pedófilos plenamente acessível. Por isso, digo que ela é um atributo, e inclusão é processo construído todo dia a partir da oferta de acessibilidade.

Como a atual onda conservadora afeta a luta pela inclusão?

Afeta muito e exige uma atitude de sentinela cada vez mais ágil e firme, isso porque as ondas conservadoras têm o discurso que o senso comum adota, de quem ainda acha que inclusão é um conceito intuitivo, e não uma área de conhecimento. A Rede-In trabalha, neste momento, contra o Código da Inclusão, que significa um atraso imenso para pessoas com deficiência em todas as áreas. Um projeto dentro do congresso brasileiro que, sem admitir, quer, na verdade, adulterar a LBI, de 2015. Um terrível retrocesso.

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