Biblioteca inclusiva de Singapura é resultado de consulta a pessoas com deficiência

Construção da maior biblioteca do país asiático foi planejada desde o início para assegurar o direito de todas as pessoas ao universo da leitura

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Livros distribuídos em prateleiras baixas e corredores largos. Computadores para busca no catálogo com teclado e mouse adaptados, softwares de leitura e programas com interpretação em linguagem de sinais. Audiolivros, livros falados e e-books. Sistema para retirar e devolver livros emprestados desenhado para pessoas com cadeiras de rodas. Área de leitura reservada para uso prioritário de pessoas autistas. Voluntários preparados para oferecer assistência a pessoas com deficiência. Todas essas iniciativas podem ser encontradas na Biblioteca Regional de Punggol (BRP), situada no noroeste da cidade de Singapura, capital do país de mesmo nome. A melhor parte: elas foram elaboradas e colocadas em prática a partir de sugestões de pessoas com deficiência.  

Inaugurada em janeiro de 2023, a BRP faz parte de uma rede de 28 bibliotecas públicas coordenadas pelo Conselho Nacional de Bibliotecas de Singapura, conhecido pela siga em inglês NLB. Com 12 mil metros quadrados, cinco andares e um acervo de 350 mil itens, ela é a maior biblioteca daquele país e a primeira projetada desde o início considerando questões de acessibilidade. 

O projeto da BRP foi selecionado para compor a publicação Champions of Inclusive Space, produzido pela Zero Project, cujo foco é identificar e reconhecer ações inclusivas em todo o mundo, valorizando espaços considerados de excelência em acessibilidade. A Zero Project é uma iniciativa da Fundação Essl, uma organização austríaca sem fins lucrativos. 

Como foi desenvolvido o projeto da biblioteca? Para entender as necessidades e os desafios das pessoas com deficiência, a NLB realizou diversas ações de consulta a esse público e seus responsáveis. Em 2018, criou um Comitê Consultivo de Pessoas com Deficiência. “O comitê, formado por oito representantes de várias organizações com experiência em trabalhos com pessoas com deficiência, desempenhou um papel importante de fornecer observações e sugestões sobre a perspectiva desse público. Ele também conectou a NLB com especialistas da área que analisaram as iniciativas e os espaços da Biblioteca Regional de Punggol, fornecendo devolutivas importantes, e nos apoiou na formação dos nossos funcionários e na construção de parcerias externas para a elaboração de programas inclusivos”, conta Kavita Ilangovan, responsável pela área de acessibilidade da NLB.  

Segunda ela, também foram realizadas várias rodadas de conversas com um grupo focal de discussão formado por 500 pessoas com deficiências e seus responsáveis para “coletar suas percepções sobre como continuar melhorando a experiência da biblioteca para todos”.  

Algumas dessas pessoas foram convidadas a visitar a Biblioteca Regional de Tampines, no leste de Singapura, e compartilhar quais os pontos de atenção constatados lá e em outras bibliotecas públicas. “A devolutiva deles influenciou diretamente o design da BRP, resultando na instalação de corredores mais largos entre as prateleiras e na ampliação das entradas dos ambientes para melhorar a acessibilidade”, relembra Kavita.  

“A conversa com pessoas com deficiência visual ajudou a identificar os recursos eletrônicos mais adequados às necessidades deles, melhorando a acessibilidade digital da biblioteca. E uma de nossas principais inovações, a estação Borrow-n-Go [Empreste e Vá, em tradução livre], foi criada com base na devolutiva de pessoas com mobilidade reduzida, que enfrentavam barreiras para levantar os livros e colocá-los em balcões de atendimento tradicionais”, completa. O novo sistema permite que os usuários devolvam os livros em um local específico, sem a necessidade de suspendê-los. A identificação é feita por meio de tecnologia de radiofrequência, em uma tela posicionada em uma altura adequada para pessoas em cadeira de rodas.  

Os títulos que compõem o acervo acessível de três mil itens foram selecionados após consulta a usuários dessa comunidade. “Dentre eles, estão livros em braille, com leitores específicos para ajudar pessoas com dificuldade de linguagem ou sensíveis ao tato. São obras com histórias e temas de interesse desse público”, conta Kavita.  

De acordo com ela, as pessoas com deficiência que se tornam associadas da biblioteca têm direito a períodos estendidos de empréstimo e renovação de livros, além da possibilidade de fazer reservas gratuitas (nos espaços de trabalho) e obter acesso prioritário aos chamados Calm Pods. “Os Calm Pods são espaços silenciosos para crianças e adultos com deficiência, que podem frequentá-los quando precisarem de um local reservado para uma experiência sensorial mais tranquila”, explica. Um deles tem paredes e piso acolchoados.  

“Uma sociedade inclusiva não é possível se a gente não remover as barreiras. O que estamos tentando é eliminar o maior número possível de barreiras para que as pessoas com deficiência possam participar [das atividades] como qualquer outra pessoa”, disse J.R.Karthikeyan, um dos participantes do Comitê Consultivo de Pessoas com Deficiência, em entrevista a um canal local de notícias, o CNA, quando a biblioteca foi inaugurada.   

Quando há opções, o público aparece  

A Biblioteca Regional de Punggol foi a mais visitada do país logo em seu primeiro ano, com 1,3 milhões de visitantes e empréstimos de 2,15 milhões de itens. Entre 2023 e 2024, a participação de pessoas com deficiência nos programas acessíveis cresceu de 82 para 440, segundo a responsável pela área de acessibilidade.  

“Para empoderar esse público, além de participar, eles foram convidados a liderar programas, compartilhando suas habilidades e talentos com a comunidade em geral”, informou Kavita. Em 2024, foram realizadas 19 palestras e workshops conduzidos por pessoas com deficiência na biblioteca, com aproximadamente 1.380 participantes. “Esse é apenas o começo — planejamos continuar trabalhando para assegurar que nossas bibliotecas sejam acessíveis para todos, o que inclui manter a colaboração com as comunidades de pessoas com deficiência para aprimorar nossos programas”, completa.   

Uma das questões que estão sendo trabalhadas, de acordo com a publicação da Zero Project, é a introdução de marcadores táteis, projetados especificamente para que pessoas com deficiência visual naveguem pela biblioteca com maior autonomia. 

Acesso a livros fortalece uma educação inclusiva  

Uma biblioteca preparada para atender a todos é um caminho livre de barreiras para o universo dos livros, objetos que permitem nos identificarmos com personagens e histórias, mas também oferecem a possibilidade de descobrirmos realidades, culturas e mundos diferentes, bem como de ter contato com o conhecimento produzido pela humanidade em áreas diversas. Mas a biblioteca pode ser muito mais do que um local que reúne livros. Ela pode ser um espaço de aprendizagem e de pesquisa, de promoção da cultura quando oferece contação de histórias, saraus e exposições, por exemplo e de interação social.  

Por todo esse potencial, uma biblioteca que acolhe pessoas com deficiência pode colaborar com a formação de leitores na comunidade onde está inserida, bem como com o fortalecimento de uma educação inclusiva. 

Outra estratégia complementar essencial é a construção de parcerias com escolas públicas e privadas, que podem proporcionar uma aproximação efetiva entre estudantes e esse universo da leitura e da cultura. Segundo Kavita, a Biblioteca Regional de Punggol recebe estudantes de todas as etapas de ensino, para conhecer e aproveitar o espaço e também para expor seus trabalhos ou realizar projetos colaborativos. “Uma biblioteca acessível fortalece a educação inclusiva ao oferecer recursos, espaços e experiências que atendam a diversas necessidades de aprendizagem”, diz a responsável pela área de acessibilidade. 

“Educação inclusiva também envolve criar oportunidades para organizações que trabalham com pessoas com deficiência mostrarem seu trabalho para os usuários desse espaço. Isso não apenas permite que pessoas com deficiência demonstrem seus talentos e habilidades, como também oferece ao público oportunidades para aprender mais sobre as capacidades dessas pessoas”, completa.   

Desafios do mundo digital  

Quais os desafios para uma biblioteca se manter relevante em um mundo cada vez mais digital? “Manter a relevância em um mundo digital exige pensar em novos caminhos para promover a leitura e o aprendizado para além dos livros físicos. Na Biblioteca Regional de Punggol, criamos experiências práticas e envolventes para inspirar a curiosidade em todas as faixas etárias”, afirma Kavita.  

Como exemplo, ela cita o Spark!Lab, desenvolvido em parceria com o Instituto Smithsonian — instituição educacional e de pesquisa dos Estados Unidos que administra um complexo com 21 museus, todos com entrada gratuita, 21 bibliotecas e vários centros de pesquisa. Na biblioteca de Singapura, o espaço criado é um “local de experimentação onde as crianças exploram desafios da ciência e da engenharia — como construir estruturas ou testar aerodinâmica — por meio de oficinas livres que estimulam a criatividade”.  

Também foi criada a chamada Sala Onde as Histórias Ganham Vida, que utiliza imagens e texto, luz e efeitos sonoros para tornar a narração de histórias uma experiência imersiva e interativa. E a Praia do Contador de Histórias, na qual “as crianças têm a oportunidade de apreciar e aprender histórias, costumes e cultura de diferentes países por meio de contação de histórias e atividades práticas”. 

Na biblioteca, há também uma brinquedoteca, que oferece “um espaço inclusivo para brincadeiras utilizando brinquedos educativos e atividades simples, do tipo ‘faça você mesmo’, incentivando o aprendizado por meio de brincadeiras sob a orientação dos pais”.  

Já o Espaço MakeIT, voltado para adultos, é uma “iniciativa onde os usuários podem explorar tecnologias de fabricação digital, como impressão 3D, corte digital e robótica. Essas instalações, materiais e workshops são gratuitos para todos os membros da NLB e permitem a realização de projetos pessoais ou de exploração criativa”, informa Kavita. A área é acessível para cadeiras de roda, com espaços mais amplos e cabos de energia pendurados no alto, em vez de no chão.  

“Para complementar, oferecemos uma gama abrangente de recursos digitais por meio do aplicativo NLB Mobile. Os usuários podem acessar e-books, revistas e jornais eletrônicos a qualquer hora e em qualquer lugar, garantindo que as descobertas e os aprendizados continuem para além das paredes da biblioteca, no espaço digital”, ressalta.  

“À medida que a Biblioteca Regional de Punggol evolui, ela continua sendo um testemunho do que pode ser alcançado quando acessibilidade e inclusão são priorizadas”, declara a NLB na publicação da Zero Project. “A biblioteca não serve apenas como um modelo para criar espaços inclusivos em Singapura, mas também fornece lições valiosas que podem inspirar iniciativas semelhantes ao redor do mundo.” 

Bibliotecas inclusivas no Brasil  

O Brasil também tem exemplos de bibliotecas que se destacam por suas propostas inclusivas. É o caso, entre outras instituições, da Biblioteca do Parque Villa-Lobos (SP), que possui no acervo livros em braille e falados, além de recursos como computador de leitor de tela, reprodutor de áudio e mesa ergonômica, entre outros; a Biblioteca Estadual Benedito Leite (MA), uma das mais antigas do Brasil, com acessibilidade arquitetônica e acervo com livros em braille, em Libras e falados, e audiolivros; e a Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (MG), com um setor de braille fundado em 1965 e diversos recursos assistivos.   

No entanto, essas iniciativas ainda são exceção. De acordo com um relatório produzido pelo Ministério da Cultura ((MinC) com dados de monitoramento do Plano Nacional da Cultura (PNC) — que instituiu 53 metas para nortear as políticas da área no período de 2010 a 2020 e foi prorrogado até 2024 —, a oferta de bibliotecas públicas está distante de ser universalizada nas cidades brasileiras. Além disso, é pequeno o percentual daquelas que garantem a acessibilidade. 

A meta 32 do PNC estabeleceu como objetivo assegurar que todos os municípios tenham ao menos uma biblioteca pública em funcionamento, ou seja, aberta e com renovação constante de seu acervo, que deve incluir publicações das diversas linguagens artísticas. Contudo, dados de 2022 indicam que, naquele ano, 16,4% dos municípios não tinham sequer uma única biblioteca pública em funcionamento.  

Segundo o relatório de balanço das metas, “nos governos Lula e Dilma, foram zerados o número de municípios sem bibliotecas. Mas mais de mil bibliotecas públicas foram fechadas nos últimos anos e as prefeituras não as reabriram. É preciso uma grande campanha de valorização social da biblioteca e do livro e uma transformação desses equipamentos em centros culturais dinâmicos e atrativos”.  

O PNC também traz, em sua meta 29, o compromisso de ter “100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das pessoas com deficiência”. Mas o monitoramento indica que o percentual de bibliotecas públicas acessíveis cresceu muito pouco no período, passando de 428 (7%) a 525 (9%) entre 2010 e 2022. 

Ausência de dados dificulta monitoramento 

No Brasil ainda faltam indicadores para acompanhar de forma efetiva quais requisitos legais de acessibilidade são atendidos (ou não) pelas bibliotecas. Essa constatação está presente no próprio documento produzido pelo MinC.  

Para contornar essa ausência de informação, em 2015 foi feito o “Mapeamento quantitativo de acessibilidade em bibliotecas públicas do sistema nacional de bibliotecas públicas”. A pesquisa foi realizada pela Mais Diferenças — organização que trabalha em defesa dos direitos das pessoas com deficiência à educação e à cultura, a partir de demanda do próprio ministério em parceria com o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) e a Fundação Biblioteca Nacional, da Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB)  

Durante o estudo, foram entrevistados profissionais de 305 bibliotecas públicas de 277 cidades do país. Dessas, 53% afirmaram ter publicações com formatos acessíveis (como livros em braille ou audiolivros, entre outros), 69,5% têm entrada ampla que permite a circulação de pessoas em cadeiras de rodas ou com andadores, e 52,1% têm rampas, mas apenas 8,5% têm elevadores e 4%, recursos de tecnologia assistiva.   

De acordo com os respondentes, um dos principais pontos que dificultam o atendimento a pessoas com deficiência são recursos de tecnologia assistiva insuficientes ou inexistentes (para 73,1%). Outros são: acervo acessível reduzido (57,3%), acessibilidade de mobiliário insuficiente (55,7%) e dificuldade de comunicação com usuário com deficiência (48,8%), entre outras questões.   

Saiba mais: 

+ Confira o manual com orientações sobre como transformar bibliotecas em espaços inclusivos produzido pela Mais Diferenças. 

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