Os grupos de pessoas que estão fora do sistema educacional brasileiro e como equívocos nos métodos de contagem da população com deficiência prejudicam entendimento do cenário
Tenho o prazer de convidar vocês para uma breve caminhada pelo título deste artigo, que contém as seguintes partes:
Quem
Ao longo do texto, o termo “quem” se referirá a quatro grupos de pessoas:
Grupo A
Pessoas com deficiência que ainda não são estudantes e, por isso, estão ausentes da escola. Deste grupo, certos tipos de deficiência são frequentemente lembrados em cursos, palestras e publicações sobre educação para todos, tais como: deficiência física, deficiência visual, deficiência intelectual (com ou sem Síndrome de Down) e deficiência auditiva.
Além disso, fazem parte deste grupo as pessoas com os seguintes tipos de deficiência: surdocegueira, deficiência múltipla e deficiência psicossocial, um termo de raro uso, mas que explicita pessoas com impedimentos a longo prazo de natureza mental, conforme especificado na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência.
Grupo B
Pessoas com deficiência que estão na escola e, mesmo assim, estão “invisíveis ou ausentes” para o sistema educacional no sentido de que um considerável número de professores tem enfrentado sérias dificuldades para preparar e dar aulas de uma forma condizente com os princípios da educação inclusiva. Essas adversidades têm sido atribuídas pelos próprios educadores à carência total ou parcial dos seguintes recursos: tecnologias assistivas, adaptações razoáveis, conhecimento das sete dimensões da acessibilidade, entre outros. Fazem parte deste grupo os estudantes cujos tipos de deficiência são os mesmos citados no grupo A.
Grupo C
Pessoas sem deficiência que ainda não são alunos e, por isso, obviamente, estão ausentes da escola. São, na maioria das vezes, pessoas que, por inúmeros motivos que não a deficiência, não tiveram acesso, acabaram não sendo matriculados ou não permaneceram na escola. Dentre as razões, podemos citar a pobreza, a miséria (ou extrema pobreza), a localização longínqua de seus lares em relação às poucas unidades escolares comuns existentes, a falta de transporte público etc. Esses motivos podem estar presentes nos grupos A, B, C e D.
Grupo D
Pessoas sem deficiência que estão na escola e, mesmo assim, estão “invisíveis ou ausentes” para o sistema educacional, principalmente por apresentarem significativas dificuldades de aprendizagem e/ou desmotivação para estudar e aprender, notas baixíssimas, e/ou serem constantemente transferidas ou abandonarem a escola.
Permanece ausente
Todos citados nos quatro grupos (estudantes ou não) permanecem ausentes, de uma forma ou outra:
- Fisicamente ausentes da escola porque não foram matriculados;
- Fisicamente presentes na sala de aula, mas “ausentes ou invisíveis” por não conseguirem aprender “exatamente como os outros aprendem”.
Na educação
Aqui, a palavra “educação” se refere obviamente a todos os níveis de escolaridade e também ao aprendizado ao longo de toda a vida.
Temos discutimos muito sobre a prioridade que deveríamos atribuir a cada um dos níveis de escolaridade. Qual nível é mais importante, mais urgente, mais crucial: A educação infantil? O ensino fundamental? O ensino médio (hoje duramente desamparado)? Ou o ensino superior?
Pelo que a maioria de nós está entendendo sobre essas prioridades, não há unanimidade nas respostas que os educadores oferecem individual e/ou coletivamente. A qualidade deveria ser um componente obrigatório da educação, mas isso não aconteceu na maioria das vezes. Com isso, os resultados negativos até agora alcançados obrigaram-nos a criar a bandeira da educação de qualidade. Evidentemente, não sou contra uma educação de qualidade enquanto promessa, mas não é confortável constatarmos que a educação que vínhamos oferecendo aos nossos alunos não tenha sido de qualidade. Agora estamos passando por uma fase em que a qualidade da educação, quando existente, não tem sido boa. Isso tende a nos levar à luta por uma educação de boa qualidade daqui para a frente. E assim sucessivamente. Temos provado que sempre houve esforços na tentativa de melhorar a educação, mas sem muito sucesso. Por que será?
Para todos
Pelo menos, há uma certa unanimidade entre nós no entendimento de que a educação é para todos, isto é, para todas as pessoas – com ou sem deficiência. Isso já foi estabelecido, por exemplo, na Constituição federal, na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), na Declaração mundial sobre educação para todos, no Plano Nacional de Educação (PNE) e em muitos outros dispositivos nacionais e internacionais.
Entretanto, também estamos cientes de que muitas pessoas ainda não fazem parte desse todos. Há cerca de 23 anos, quando surgiram os primeiros textos para divulgar o paradigma da educação inclusiva, seus autores cunharam a frase “todos significa todos”, que se tornou emblemática por defender que não poderá haver exceções.
Explicado o título “Quem permanece ausente na educação para todos”, desejo agora trazer alguma contribuição à guisa de sugestões para combatermos os problemas apontados.
O todos na Convenção
A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, no Artigo 31 (sobre estatísticas e coleta de dados), determina que:
(1) Os Estados Partes coletarão dados apropriados, inclusive estatísticos e de pesquisas, para que possam formular e implementar políticas destinadas a pôr em prática a presente Convenção. (2) As informações coletadas de acordo com o disposto neste artigo serão desagregadas, de maneira apropriada, e utilizadas para avaliar o cumprimento, por parte dos Estados Partes, de suas obrigações na presente convenção e para identificar e enfrentar as barreiras com as quais as pessoas com deficiência se deparam no exercício de seus direitos.
Parece-me que há muita dificuldade ou resistência contra o cumprimento desse ditame no Brasil.
O todos nos censos do IBGE
Entendo que é inevitável que eu pondere um pouco sobre a surpreendente notícia estampada no jornal O Estado de S. Paulo, em 21 de junho de 2018, a respeito do novo índice encontrado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com essa ponderação, considero-me alinhado com os consultores Lailla Micas, Liliane Garcez e Luiz Henrique de Paula Conceição, do Instituto Rodrigo Mendes, que já se posicionaram no artigo “Com nova margem de corte, IBGE constata 6,7% de pessoas com deficiência no Brasil”.
Então, para o IBGE, agora já não é 23,9% (verificados no Censo 2010) e sim 6,7%, ou seja, 17,2% a menos. Em números absolutos, se aplicarmos o índice percentual de 6,7% na mesma população geral existente em 2010 (que era de 190.755.799 habitantes), o anterior total de 45.590.636 pessoas com deficiência (Censo 2010) diminuiria para 12.780.639 pessoas com deficiência (corte em 2018). Ou seja, exatamente 32.809.997 pessoas com deficiência a menos.
Pergunto: as pessoas com deficiência e seus familiares e nós, os profissionais que atuamos nesse segmento populacional, em todo o Brasil, vamos ficar apenas imobilizados e perplexos diante do novo percentual demográfico apresentado em 2018 pelo IBGE? Não vamos nos manifestar ao IBGE? Vamos abandonar o percentual de 23,9% e vamos aderir ao novo percentual? O que e como iremos explicar aos nossos parceiros e demais agentes intervenientes sobre o novo índice de pessoas com deficiência? Novamente, nenhuma entidade de, para e sobre pessoas com deficiência foi procurada pelo Instituto para prestar nossa consultoria nesse assunto? O IBGE já vem preparando a organização do Censo 2020 e nós já deveríamos ter sido convidados para ajudar nessa organização, mas seremos mais uma vez ignorados?
Eu já vinha me interessando e me preocupando em saber a quantidade de pessoas com deficiência no mundo e no Brasil (desde a década de 1960, quando comecei a trabalhar na área). Por isso, discordei dos Censos 2000 (percentual de 14,5% de pessoas com deficiência) e 2010, porque em ambos foram aplicadas questões imprecisas ou mal formuladas. Nos dois censos, o resultado numérico saiu excessivamente além ou aquém (dependendo do tipo de deficiência) do provável número real de pessoas com deficiência, em relação aos sete tópicos seguintes:
- A forma como foram feitas perguntas referentes a pessoas com deficiência intelectual resultou em quantidade bem menor que a real. Já o modo como foram aplicadas as questões sobre pessoas com deficiência visual, ao contrário, resultou em quantidade bem maior que a real. Além disso, o IBGE continuou usando o estranho termo “deficiência mental permanente”, como se não importasse saber quantas teriam deficiência intelectual “temporária”, termo este também estranho e, principalmente, inaceitável.
- As perguntas referentes a pessoas com deficiência física foram divididas em duas subcategorias: deficiência física (da cintura para cima) e deficiência motora (da cintura para baixo), uma absurda divisão que nunca existiu no campo da reabilitação de pessoas com deficiência no Brasil. Com essa divisão, os dois censos não fizeram a contagem da quantidade de pessoas com hemiplegia (e também hemiparesia) direita e esquerda, com tetraplegia (e também tetraparesia), com triplegia (dois braços e uma perna ou um braço e duas pernas; e também triparesia), com diplegia (um braço e uma perna, e também diparesia), com malformações congênitas, entre outras.
- Os dois censos não tinham perguntas sobre pessoas com deficiência múltipla (associação de duas ou mais deficiências simultaneamente na mesma pessoa) e, portanto, não houve a contagem dessas pessoas.
- Os dois censos não tinham perguntas sobre pessoas com surdocegueira. Falando tecnicamente, a surdocegueira não pode ser considerada uma deficiência múltipla, como se ela fosse mera junção de duas deficiências tradicionais: a visual e a auditiva. A surdocegueira é uma deficiência única, distinta e específica, na qual o aspecto visual e o auditivo juntos adquirem características próprias.
- Os dois censos não tinham perguntas sobre pessoas com deficiência psicossocial (também chamada deficiência psiquiátrica, por transtorno mental, por questão de saúde mental), a qual consta na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (Artigo 1) e na Lei brasileira de inclusão (Art. 2°). Portanto, a contagem dos numerosos tipos da categoria transtorno mental como, por exemplo, o transtorno do espectro do autismo, não foi feita nos censos 2000 e 2010 e no corte 2018.
- Alegando que se inspirou no Grupo de Washington, o IBGE incorporou na categoria “deficiência intelectual” as seguintes condições: deficiência intelectual, autismo, transtorno do desenvolvimento, paralisia cerebral, Síndrome de Down e outras síndromes (mesmo que essas outras síndromes se referissem explicitamente a alguma parte física do corpo?).
- O IBGE explica no volumoso livro “Panorama nacional e internacional de indicadores sociais: Grupos populacionais específicos e uso do tempo” que: “apenas a questão sobre deficiência mental fugiu a esse padrão no Censo 2010 – vale lembrar que o Grupo de Washington ainda não dispõe de um conjunto de questões consolidado sobre saúde mental”. Ou seja, observe-se, nessa frase, que o IBGE insiste em utilizar o superado termo “deficiência mental”, colocando a questão da deficiência intelectual dentro do mesmo espaço da questão da saúde mental.
A notícia do Estadão saiu após o IBGE ter publicado em maio de 2018 o acima citado livro, sendo que o seu capítulo “Os desafios para a produção de indicadores sobre pessoa com deficiência – ontem, hoje e amanhã” tem 53 páginas. Segundo esse capítulo específico sobre pessoas com deficiência, que se inspirou nos critérios do Grupo de Washington, “é medido dentro do Censo o grau de dificuldade em domínios funcionais centrais para participação na vida em sociedade”.
Na resposta às questões do Censo, o entrevistado com deficiência foi convidado a avaliar a dificuldade que ele tem em relação a enxergar, ouvir, caminhar ou subir escadas, a partir de uma escala que contém os seguintes itens, em ordem crescente: “nenhuma dificuldade”, “alguma dificuldade”, “muita dificuldade” e “não consegue de modo algum”. Por quais motivos os outros domínios funcionais, como raciocinar, sentir, aprender e comunicar, não foram considerados centrais?
E dos subtotais relativos àqueles graus de dificuldade, foram desconsideradas as pessoas com deficiência que responderam “nenhuma dificuldade” e “alguma dificuldade”, pois está parecendo que, para o novo olhar do IBGE, essas pessoas não deverão ser reconhecidas como titulares dos “direitos de pessoas com deficiência”. Assim, o IBGE acolheu apenas as pessoas que disseram ter “muita dificuldade” ou que disseram “não conseguirem de modo algum”, o que explicaria a enorme diminuição dos números absolutos e do consequente baixo percentual de pessoas com deficiência no corte 2018 em relação aos resultados do Censo 2010.
Mas, como expliquei acima, os resultados do IBGE nos Censos 2000 e 2010 e no corte 2018 saíram equivocados também por outros motivos, que já mencionei: a omissão do questionário do IBGE quanto às pessoas com deficiência psicossocial, deficiência múltipla, hemiplegia, tetraplegia, surdocegueira, entre outras. Outro motivo foi o acréscimo da categoria “deficiência motora” (só da cintura para baixo) quando já havia e continua havendo o tradicional termo “deficiência física”, que abrange o corpo inteiro (e não apenas a parte da cintura para cima).
Portanto, é urgente, é imprescindível que discutamos o novo índice percentual de pessoas com deficiência no Brasil. Como hipótese ainda não comprovada, o percentual real poderia ser mais ou menos 17% (ou seja, entre 23,9% e 6,7%). Será que já começamos a nos envolver na discussão sobre esses novos estudos demográficos, considerando que o Censo de 2020 está muito perto de acontecer?
Romeu Kazumi Sassaki é consultor de inclusão social, educação inclusiva e inclusão laboral. Presidente da Associação Nacional do Emprego Apoiado (Anea).
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