Mulheres na ciência: um debate sobre equidade de gênero

Sabemos que a educação é um importante caminho para o acesso ao conhecimento e aos bens por ele gerados em nossa sociedade. Isso porque possibilita o desenvolvimento social, econômico, político e a sustentabilidade do nosso planeta. Apesar dessa conhecida premissa, a educação não é um direito humano amplamente garantido a todas as crianças e jovens.

Há décadas tem ocorrido um forte empenho de organismos internacionais, governos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil na luta pela eliminação das desigualdades em todos os povos. No mundo, mesmo antes da pandemia causada pela covid-19, mais de 200 milhões de crianças já estavam fora das escolas, a maioria delas meninas.

 

Encontro da formação Elas nas Exatas. Ao redor de mesa com tecido verde, diversos jovens e quatro adultas. Ao fundo, painéis informativos. Fim da descrição.
Foto: arquivo pessoal / Projeto Energéticas.

Desigualdade de gênero

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, promovida pela Organização das Nações Unidas em 2015, pontua a ciência e a equidade de gênero como medidas fundamentais para melhorar as condições de vida e a conservação do planeta. No mesmo ano, a ONU promoveu o 11 de fevereiro como o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, como uma estratégia para dar visibilidade à desigualdade de gênero no campo científico.

De acordo com o estudo “Decifrando o código: educação de meninas e mulheres em Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática”, publicado em 2018 pela UNESCO, entre as estudantes mulheres de ensino superior no mundo, apenas 30% escolheram cursos nas chamadas áreas “STEM” (sigla traduzida do inglês como Ciência, Tecnologias, Engenharias e Matemática). Esse grupo representa 35% de todos os estudantes matriculados nessas carreiras.

No Brasil, a situação não é diferente em relação aos cursos ligados às áreas STEM e, consequentemente, às realidades do mercado de trabalho.

Ainda em 2017, apenas 29,3% dos estudantes de cursos de engenharia eram mulheres. Já nos cursos de ciências da computação há cerca de 15% de estudantes do público feminino no país (BBC, 2018). A situação se agrava quando falamos de meninas negras, indígenas, lésbicas, trans e das que têm deficiência.

Elas nas Exatas

Diante dessa realidade, uma parceria inédita uniu, em 2016, três instituições com características específicas em torno de um objetivo comum: contribuir para o debate sobre desigualdade de gênero na educação básica. O foco estava nas meninas e no ensino médio, por meio do programa Edital Gestão Escolar para a Equidade: Elas nas Exatas.

A parceria reuniu o Instituto Unibanco, cujo foco é a gestão escolar para equidade visando melhoria da aprendizagem no ensino médio; a Fundação Carlos Chagas (FCC), com reconhecida experiência em pesquisa em educação; e o Fundo ELAS, dedicado ao protagonismo e ao avanço dos direitos das mulheres jovens e adultas no Brasil.

Um ano depois, em 2017, a ONU Mulheres somou esforços aos objetivos do Edital Elas nas Exatas. A ideia foi contribuir para o debate sobre políticas educacionais por meio de informações e experiências das iniciativas apoiadas pelo Edital. As metas do Elas Nas Exatas estão em consonância com os Objetivos de número 4, 5 e 10 de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, que são respectivamente:

a) Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos);

b) Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas;

c) Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles.

Visando influenciar a construção de alternativas que pudessem potencializar o interesse das meninas pelas áreas STEM, em seus processos de construção de autonomia e de escolha profissional, a iniciativa Edital Elas nas Exatas realizou dois processos seletivos. O primeiro lançado em 2015; e o segundo, em 2017.

Em cada um deles, foram apoiados 10 projetos selecionados, que receberam recursos financeiros para desenvolverem suas ações ao longo de um ano. Em ambos os editais, foram envolvidas diretamente nas atividades jovens estudantes do ensino médio de escolas públicas, professoras, gestoras e organizações feministas.

A parceria entre grupos de mulheres com seu conhecimento sobre os direitos humanos, gênero, raça/etnia, juntamente com a gestão escolar, criaram a possibilidade de visibilizar a importância de uma educação escolar com foco na diversidade, na equidade e na inclusão.

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Para conhecer um pouco sobre as iniciativas de ambos os editais visite ELAS nas Exatas.

Estereótipos e discriminação

Os aprendizados adquiridos com os 20 projetos se somaram aos resultados da pesquisa Elas nas Ciências: um estudo para a equidade de gênero no ensino médio (2016-2017). O estudo foi realizado pela Fundação Carlos Chagas, com apoio do Instituto Unibanco, e buscou identificar e compreender alguns fatores relacionados à escola que influenciam no processo de escolha das jovens em relação à carreira profissional e à continuidade de seus estudos.

Observamos que os estereótipos de gênero ainda estão muito presentes nas interações sociais dos e das jovens, bem como em suas percepções sobre as possibilidades de futuro profissional.

Nesse sentido, um dos primeiros desafios parece ser justamente o de criar e difundir narrativas que problematizem as diferenças sociais de modo a ampliar a compreensão sobre as desigualdades geradas pela discriminação de gênero.

A pesquisa e a avaliação das 20 iniciativas do Edital ELAS nas EXATAS nos mostra que os processos de socialização diferenciados para meninas e meninos estão no centro da produção de certas expectativas de gênero, que, mesmo questionadas, tendem a ser incorporadas pelas pessoas.

Tais expectativas são expressas em narrativas, atitudes e valores que influenciam, em alguma medida, as trajetórias de vida. Muitos foram os relatos de professoras e professores que naturalizam, a partir dos desempenhos nas disciplinas das exatas, alguns conhecidos estereótipos de gênero:

“Os meninos têm mais facilidade em aprender, mas isso corresponde a apenas 90% dos casos. Em algumas turmas poucas meninas sentem interesse pelos estudos.”

“[sobre ] diferença entre o raciocínio, os meninos são mais rápidos, reflexivos.”

“As meninas, em sua maioria, são mais organizadas em relação ao andamento das aulas. Exemplo: atenção na hora das explicações e elaboração de tarefas e melhores notas ao final de cada bimestre.”

O relatório mundial da UNESCO Gender and Education for All: The Leap to Equality já indicava em 2007 a influência do contexto educacional no interesse e no sucesso das estudantes. As adolescentes não buscam as ciências e os estudos técnicos na mesma proporção que os adolescentes do sexo masculino, embora haja variação por área temática e por país.

Esse comportamento seria alimentado por ações tanto na escola como na própria família e resultaria numa desigualdade de acesso a recursos técnicos e financeiros para a formação de mulheres nessas áreas.

Diante do desafio que está posto, a gestão pode desempenhar um papel importante no desenho de ações voltadas para a promoção da equidade de gênero no ambiente escolar. Isso porque a função dos gestores e gestoras escolares envolve execução da política pública, mediação de atividades administrativas e pedagógicas, formação continuada da equipe da escola e estabelecimento de diálogo com as famílias e a comunidade.

Ainda em tempo, a compreensão das desigualdades na educação exige necessariamente um olhar interseccional. Se as jovens estão sub-representadas nas áreas das ciências exatas e naturais, ainda mais estarão as jovens negras e as estudantes com deficiência.

 

Em laboratório de ciências, estudante com deficiência utiliza materiais com auxílio de educadora. Fim da descrição.
Foto: arquivo pessoal / Edital Energéticas.

Jovens com deficiência no campo científico

Uma das iniciativas aprovadas no II Edital – Energéticas, coordenado pelo grupo Cientistas do Pampa (UniPampa, Uruguaiana-RS) ao compor o grupo de jovens meninas que participariam do projeto, acolheu uma estudante com deficiência física usuária de cadeira de rodas.

Várias atividades previstas ao longo do projeto envolviam experimentos científicos, inclusive no laboratório da Universidade. A experiência para a jovem estudante foi singular por vários motivos, por ela mesma relatada no encerramento do projeto. Mas dois pontos chamaram a nossa atenção.

O primeiro, pela inciativa ter favorecido o entrosamento dela com as demais colegas da escola. Embora houvesse convivência diária, as atividades do projeto, em círculo menor, com metodologia sensível para a empatia e enfrentamento de discriminações e preconceito promoveram o entrosamento entre as jovens.

O outro ponto foi a sua chamada de atenção para a total falta de ambiência dos laboratórios para a sua condição de cadeirante. Embora houvesse acessibilidade física e arquitetônica para os prédios da escola ou da universidade, as bancadas dos laboratórios não eram adequadas para a participação dela em igualdade de condições.

Elas ficavam à altura da testa da jovem. Ainda assim, a aluna participou ativamente auxiliada pelas amigas. Essa jovem não vislumbra ser cientista, tem outra trajetória em mente – ser escritora -, mas com certeza, se houvesse uma pequena fagulha de desejo, as possibilidades concretas seriam dificultadas. A lição aprendida é que, ao olhar o todo, é preciso ter olhos atentos para cada parte ou uma jovem poderá estar sendo privada de um direito humano fundamental.

Em auditório, várias mulheres e jovens posam para a foto. Do lado direito, cartaz com logo do "Cientistas do Pampa". Fim da descrição.
Foto: arquivo pessoal / Edital Energéticas.

Conscientização para a equidade de gênero

Nesse sentido, o ambiente escolar, familiar e outros espaços de convivência relevante para as meninas não são sempre favoráveis ao pleno desenvolvimento delas. Isso muitas vezes reproduz estereótipos, preconceitos e pode fomentar a violência de gênero, orientação sexual, raça, deficiência.

Daí a urgente necessidade de investir tanto na educação de qualidade para as meninas, mas também na sensibilização para a equidade de gênero e raça. O que significa que a partir dos diferentes espaços de ambiência, as desigualdades sejam tratadas desde o início.

Isso para o desenvolvimento da plena cidadania das crianças; promoção da igualdade entre meninas e meninos no acesso às carreiras STEM; assim como, igualdade de condições para que as meninas desenvolvam autoconfiança, autoestima e acreditem que possam estudar o que elas quiserem e exercer qualquer profissão.

Cenário de desafios e retrocessos

Os editais ELAS nas Exatas tiveram como forte característica a valorização do papel de grupos e organizações de mulheres no fortalecimento das capacidades das escolas para a redução das desigualdades de gênero e raça. Além disso, a relação existente entre os grupos e organizações de mulheres também fortaleceram sua visão e suas experiências relacionadas ao campo da educação como espaço estratégico e fundamental para a equidade de gênero e raça.

Contudo, neste momento o contexto político e cultural tem se mostrado bastante adverso para a equidade de gênero e raça, inclusive com ameaças de exclusão de direitos já adquiridos por mulheres e pela população negra e LGBTI+.

Nas atuais condições políticas e econômicas em que se encontra o país, onde há cortes na educação, cerceamento e perseguição ao debate político, principalmente no que se refere às defesas dos direitos humanos, é fundamental que inciativas como ELAS nas EXATAS possam ser replicadas e ampliadas.

O atual debate sobre os efeitos da pandemia na educação amplia nossa responsabilidade como organização da sociedade civil e instituição do setor privado atuante no campo da educação. É preciso sensibilizar a sociedade em geral para a importância de um olhar atento para a promoção da equidade e da inclusão e para o enfrentamento das discriminações como elementos fundamentais a serem considerados nas políticas públicas educacionais.


Amalia Eugenia Fischer Pfaeffle é mexicana-nicaraguense, radicada no Brasil desde 1995, socióloga, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Fellow Ashoka e Synergos. Cofundadora e Coordenadora Geral do ELAS, o fundo de mulheres do Brasil. Cofundadora da International Network of Women’s Funds, cofundadora do Fundo de Ação Urgente da América Latina, impulsora e cofundadora da Rede de Esporte pela Mudança Social do Brasil, cofundadora da Rede de Filantropia para a Justiça Social. Integra o Conselho do Fundo Baobá e o Conselho da Action Aid.

Marilucia do Espirito Santo é Integrante da Coordenação de Articulação Institucional do Instituto Unibanco, atua nas agendas de equidade racial na educação. É doutoranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio.

Sandra Unbehaum é socióloga e doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; pesquisadora na Fundação Carlos Chagas e vice-líder do Grupo Gênero, Raça/Etnia: educação, trabalho e direitos humanos, atuando em estudos e projetos com ênfase na problemática das desigualdades de gênero na educação.

Savana Brito é gerente de Programas do Fundo ELAS, contribui para o fortalecimento e protagonismo de grupos e organizações LBT e de mulheres que trabalham em prol da garantia de direitos no Brasil. Licenciada e Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa, pós graduanda em Gênero e Justiça na América Latina pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais – FLACSO/Argentina.

Thais Gava é doutoranda em educação pela Universidade de São Paulo (USP); mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP (2013) e graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) (2001). Pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, direitos sexuais e direitos reprodutivos em suas intersecções com a educação, vinculada aos grupos de pesquisa: Gênero, Educação e Cultura Sexual – Edges (FE/USP) e Gênero, Raça Direitos Humanos e Trabalho (FCC).

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