A inclusão escolar como conquista de direitos

As problematizações relativas às práticas escolares na perspectiva inclusiva, hoje tão presentes nas discussões educacionais, emergem no Brasil de forma mais pontual na década de 90 do século XX, quando passamos a falar em inclusão para referirmo-nos a práticas relacionadas à escolarização de alunos com deficiências nas escolas regulares. Na tentativa de alteração do cenário que sustentava a existência de sistemas paralelos de ensino – o regular e o especial –, discursos educacionais passaram a ser articulados a discursos assistenciais, políticos, filosóficos e legais na busca da subjetivação de todos à ideia de que havia lugares mais adequados do que outros para a escolarização dos alunos com deficiência. O lugar mais adequado seria, então, a escola onde a diversidade seria finalmente respeitada e valorizada. Mais do que uma questão de adequação de espaços, a escola inclusiva passou a ser nomeada como uma questão de direitos humanos, e sua concretização representaria um passo importante em direção à efetivação do conclamado direito universal à igualdade entre os homens.

Na busca de aceitação pela escola regular e por seus atores com relação à necessidade de abertura de suas salas de aula para o “acolhimento” dos alunos com deficiência, técnicas de subjetivação são postas em funcionamento, dentre as quais, destaco a aliança entre os discursos que circulam em materiais produzidos pelos Governos FHC (1995/1998; 1999/2002) e Governo Lula (2003/2006; 2007/2010) e a defesa dos direitos humanos. Com isso, a inclusão escolar passa a ser apresentada como “evolução” e “superação” da situação de preconceito e exclusão que as pessoas com deficiência viviam até então.

O direito de cada criança à educação é proclamado na Declaração Universal de Direitos Humanos e foi fortemente reconfirmado pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Qualquer pessoa portadora de deficiência tem o direito de expressar seus desejos com relação à sua educação, tanto quanto estes possam ser realizados. Pais possuem o direito inerente de serem consultados sobre a forma de educação mais apropriada às necessidades, circunstâncias e aspirações de suas crianças (Brasil, 1994, s/p.).

Nesse contexto, parece ser interessante pensar o quanto a matrícula do aluno com deficiência na escola regular consistia inicialmente numa escolha da família e estava condicionada às possibilidades da escola, no que diz respeito à estrutura física e humana, de receber esse aluno. A LDB (Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional) 9.394/96, documento concebido como um dos precursores no Brasil das ações inclusivas, destaca que a matrícula de alunos com deficiência deveria ser efetivada preferencialmente nas escolas regulares. Da mesma maneira, a Declaração de Salamanca (1994, s/p.), que embasa tanto as diretrizes educacionais inclusivas previstas na referida LDB quanto os demais documentos legais promulgados no final do século passado e início do presente século, prevê como princípio fundamental da escola inclusiva “que todas as crianças devem aprender juntas, sempre que possível, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que elas possam ter”.

Atualmente, passados 15 anos da promulgação da referida LDB, as orientações com relação às matrículas dos alunos com deficiência nas escolas regulares já não se apresentam mais como um aspecto facultativo. Hoje, especialmente pela Resolução nº 4, de 2009, que institui diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na educação básica, a matrícula do aluno com deficiência em escolas especiais e/ou centros de atendimento especializado fica condicionada à matrícula desse aluno na escola regular. A condicionalidade da matrícula especial à matrícula regular imprime, então, um caráter imperativo à inclusão escolar.

Pode-se perceber, desse modo, o movimento da inclusão como possibilidade (e escolha) ceder lugar ao movimento da inclusão como obrigação (e dever). Partimos de práticas que atendiam alunos com e sem deficiências em espaços diferenciados, cujos profissionais também possuíam formação e habilitação distintas, e passamos à possibilidade de unificação desses espaços e à formação generalista dos professores (para que fossem capazes de atuar com todo e qualquer aluno) como fatores facultativos. Ao ultrapassarmos a primeira década do século XXI, temos a obrigatoriedade tanto de matrícula dos alunos com deficiência nas escolas regulares quanto de inserção de conhecimentos relativos às deficiências em todos os cursos de licenciaturas do país.

Hoje, parece não haver escolhas com relação à escola inclusiva. “Os sistemas de ensino devem matricular alunos com deficiências nas classes comuns do ensino regular” (Brasil, 2009). Independentemente das condições das escolas, dos recursos disponíveis, das concepções existentes acerca das potencialidades e possibilidades de aprendizagem dos alunos com deficiência, é imperioso que crianças com deficiências estejam matriculadas em escolas regulares. Mais do que um imperativo legal, a inclusão tem se apresentado como um imperativo moral. Afinal, como não defender a igualdade de oportunidades? Como não respeitar o direito que todos têm de estar na escola regular? Como defender práticas nomeadas de segregacionistas? Entendo que, costuradas aos princípios morais, as estratégias de convencimento de todos com relação à necessidade de inclusão acabaram conquistando seus objetivos. Práticas ditas inclusivas acabaram sendo naturalizadas e hoje fazem parte das relações entre os sujeitos. Partimos do princípio de que, se todos têm o direito à vida em sociedade, não há o que se discutir e, assim, não discutimos nem mesmo sob quais condições essas práticas têm sido postas em funcionamento, tampouco quais sujeitos têm sido produzidos por elas. Portanto, não olhamos para as in/exclusões que nós mesmos provocamos.

Nesse sentido, entendo que seja importante manter aceso um debate relativo aos efeitos daquilo que temos feito quando afirmamos que estamos “incluindo”. Inegavelmente, o direito à matrícula dos alunos com deficiência nas escolas regulares está efetivado e garantido, mas mais inegável ainda é o fato de que o direito tão defendido ultrapassa a possibilidade de partilha de um espaço físico. É preciso que as diferenças sejam o ponto de partida para os planejamentos. É preciso que o olhar direcionado para o aluno seja um olhar de aposta. É preciso que nesse espaço partilhado, as relações humanas potencializem processos de desenvolvimento e aprendizagem, e assim, como já afirmei em outro momento (Menezes, 2008) a escola inclusiva, aquela que se propõe a ensinar tudo a todos, poderá ser aquela que dá “a todos a possibilidade de se colocarem nesse tudo. Aquela que dá a todos a possibilidade de, nesse tudo, escolher” (Moreira, Garcia, 2003).

Referências

BRASIL. Declaração de Salamanca. Brasília: MEC, 1994.

BRASIL. Resolução nº 4 de 2009. Brasília: MEC, 2009.

BRASIL. Declaração de Salamanca. Brasília: MEC/SEESP, 2004.

BRASIL. Lei nº 9394/ 96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

MENEZES, Eliana da Costa Pereira. Inclusão: entre pedagogias, espaços e saberes. In: RECHICO, CÍNARA Franco. & FORTES, Vanessa Gadelha. (Orgs). A educação e a inclusão na contemporaneidade. Roraima: UFRR, 2008. p. 109 – 139.

MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa; GARCIA, Regina Leite (Org.). Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2003.


Eliana Pereira de Menezes é professora adjunta do Departamento de Educação Especial da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria).

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