Todos têm o direito de conviver em espaços heterogêneos e diversos e de aprender e se ressignificar a partir do outro
Desde cedo somos educados (ou melhor, doutrinados?) a ser ou não ser de certa forma ou a se comportar de determinado jeito por essa ou aquela convenção.
No filme Billy Elliot (Stephen Daldry, 2000), que se passa na Inglaterra de Margaret Thatcher nos anos 1980, em meio à crise e greves de mineradores, um menino de 11 anos descobre no balé uma forma verdadeira de se expressar e se descobrir enquanto sujeito. Mas, afinal, de que direitos ou privações estamos falando quando uma criança quer dançar? E o que ela pode nos ensinar sobre o direito à diferença?
Precisamos falar sobre Billy Elliot
Quase ao acaso, Billy sai da aula de boxe que fora obrigado pelo pai a frequentar. Com a missão de devolver a chave da academia onde treinava à professora de balé que fazia uso de o espaço após o ringue de luta sair de cena, o garoto vislumbra meia dúzia de meninas saltitando e dando piruetas de forma imprecisa e desastrada. Coordenando os movimentos, uma senhora de idade − aos berros − ordenava passos e criticava as performances realizadas pelas alunas.
Billy é provocado a dançar junto às meninas e, perturbado com o convite, refuta e foge. Onde já se viu um homem fazer balé?! Afinal, o que diriam seus amigos? O que diria seu pai? Sua falecida mãe: o que diria? Nesse contexto, é que se iniciam as privações, o não direito a participar e fazer o que se tem vontade. A uma criança – logo aquela cujas ações normalmente são encaradas como sinônimo de liberdade – não foi garantida a liberdade de ser livre, para parafrasear um livro de Hannah Arendt.
Após assistir ao filme e na sequência sua adaptação musical no Teatro Alfa em São Paulo (SP), me peguei refletindo sobre o que essa história me ensinou. A primeira coisa que concluí foi a questão geracional e do passar do tempo. No contexto da história (1984-1985), podemos até pensar que o conservadorismo era mais “aceitável”. No entanto, dados alguns contextos atuais, me questiono o quanto de fato avançamos. Uma pesquisa do Fórum Econômico Mundial, por exemplo, relata que a equidade de gênero (homem-mulher) no mercado de trabalho levará 200 anos (sim, dois séculos) para ser alcançada.
Depois, passei a me questionar quantos Billys não deixaram de existir ou até que ponto eu mesmo não deixei, em algum momento, de ser um Billy. O estímulo ao esporte em detrimento à arte e à cultura. Claro, não diminuindo o valor do esporte e o quanto ele também pode educar e ser transgressor aos códigos estabelecidos. Os papéis de gênero e a clássica divisão de “coisas de menina” versus “coisas de menino” permeiam até hoje nossas escolhas. Desde a desvalorização de determinadas áreas (como a educação por ser “feminina”) até os preconceitos e desafios de quem rompe com esse código.
A inclusão e o direito à diferença
Billy me fez pensar muito sobre a ideia de sociedade e escola inclusiva. Em um mundo onde não é permitido um menino dançar balé, como podemos imaginar (e permitir) que uma mulher cega seja mãe ou uma pessoa com deficiência física um atleta olímpico? É quase utópico. E seria, não fossem as décadas de luta das pessoas com deficiência.
A dança de Billy, com seus sapateados e rodopios, me permitiu vislumbrar o quanto ainda precisamos avançar em um projeto de educação que inclua verdadeiramente, de forma que todos possam ser e construir esse ser individual e coletivo de forma autêntica – tal qual o desejo da mãe de Billy registrado em carta.
Uma educação e uma sociedade inclusiva melhoram a qualidade de vida de todos. Que desperdício seria ao mundo se Billy não fosse estudar e se profissionalizar na arte e na dança. Que perda para o balé, para escola onde ele estudou e para sua família que pode vê-lo dançar em um grande espetáculo. Afinal, quantas crianças e jovens não estão, hoje, ainda na coxia ou na plateia enquanto deveriam ocupar o palco, sendo protagonistas de seus próprios roteiros?
Alocado do seu lugar por direito (aquele de ser livre), Billy poderia ter seguido os passos do pai e se tornado mais um minerador frustrado (não desmerecendo a profissão, mas falando aqui de garantir oportunidades). Saindo da ficção, diversas pesquisas de diferentes áreas, incluindo psicologia do trabalho e da própria administração, já comprovaram que a produtividade tem ligação direta e proporcional com a satisfação da ocupação e do cargo exercido. A lógica é bem simples: felicidade faz a pessoa produzir mais; satisfação e realização profissional geram maior valor econômico.
A segunda reflexão diz respeito à necessidade de desconstruir certos “acordos não ditos” dos papéis de gênero. Comecei, recentemente, alguns estudos sobre a construção de masculinidades e o quão nociva elas são para todos nós: homens e mulheres (cisgêneros, transgêneros, heterossexuais, gays, bissexuais ou fluídos). Mas, para além dessa mudança de percepção, é importante destacar ainda a importância da corresponsabilização de todos os agentes envolvidos.
Se, no processo de luta pela educação inclusiva, o foco – durante muitos anos – foi o de garantir o acesso de crianças, adolescentes e jovens com deficiência na escola comum –, hoje a luta é para garantir o direito à aprendizagem. Essa luta é de todos. Todos temos o direito à diferença, de conviver e trabalhar em espaços heterogêneos e diversos, de aprender com o outro e de me ressignificar a partir do outro.
Quantas pessoas não estão sendo privadas do direito de conviver com o diferente hoje? Com quantos Billys você estudou na sua vida? Com quantas meninas cegas você já conversou? Quantos usuários de cadeira de rodas trabalham no seu escritório?
Nesse misto de expectativa e decepção, de conquistas e retrocessos que seguimos com a dança e com nosso sapateado, na esperança de que um dia (um dia não!), de que em breve, usar tutu, vestido e salto alto não fique restrito aos palcos de um teatro na Zona Sul de São Paulo, mas que esse palco seja a própria rua. E que nessa rua tenham rodas, muletas, pernas, braços as mais diversas formas de ser(es) humano(s) e como tais, com a garantia de seus direitos.
Alexandre Moreira é licenciado em Educomunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atua na área de formação do Instituto Rodrigo Mendes (IRM).
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