Relatos iniciais do DIVERSA

Como garantir o acesso de Irenes, Franciscos, Marias e Severinos aos conteúdos da cultura corporal de movimentos.

Quais eram as características da escola, de suas classes e de seus estudantes no momento de criação de seu projeto?

O Colégio Santo Inácio – Noturno, fundado em 1968, é uma das obras sociais mais significativas da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro, oferecendo Educação de Jovens e Adultos/EJA e educação profissional de qualidade e totalmente gratuitos. Atende por volta de 1000 alunos de diferentes idades, que estejam em desfavorável situação socioeconômica, os quais podem cursar da classe de alfabetização ao ensino médio, com possibilidade de estender sua formação para a educação profissional. A formação integral oferecida a esses alunos possibilita o desenvolvimento de suas potencialidades, nas várias dimensões do ser humano, despertando para a consciência crítica frente à realidade pessoal, comunitária e social.

Que atividade estava sendo desenvolvida?

Os alunos na sua maioria são trabalhadores, tendo que dividir atenção e disposição entre os estudos, o trabalho e muitas vezes, a família. Desta forma, acredita-se que a educação física possa representar um espaço de ruptura do tempo de trabalho assalariado e do tempo de “não trabalho”, através do conhecimento da cultura corporal de movimento. Assim, este projeto, justifica-se não só para atender as necessidades legais (inclusão da educação física na estrutura curricular), mas também, construir uma proposta pedagógica adequada às características dos alunos da educação de jovens e adultos, garantindo a eles um espaço de apropriação de saberes e construção de conhecimentos, estimulando-os para adoção de um estilo de vida mais ativo, que garanta não só mais saúde e qualidade de vida, mas melhore sua autoestima e amplie suas relações.

Portanto, entende-se a educação física escolar na EJA, como uma disciplina que introduz, inclui e integra o aluno na cultura corporal de movimento, a partir de suas experiências nesse contexto. Os alunos jovens e adultos caracterizam-se como um grupo heterogêneo, do ponto de vista da faixa etária, da cultura, da visão de mundo, dos conhecimentos prévios e dos aspectos neurológicos relacionados ao aprendizado. A escola representa para eles um espaço, ao mesmo tempo de recolocação social, de sociabilidade, de formalização do saber e de desenvolvimento pessoal. Nesse sentido, os alunos jovens e adultos diferem em muitos aspectos das crianças, e isso deve ser considerado quando da seleção de conteúdos e da metodologia das aulas. A valorização do desempenho, com pouca ênfase no prazer, a abordagem técnica com referência em modelos muito avançados e, principalmente, uma concepção de ensino que deixa como única alternativa ao aluno adaptar-se ou não a modelos motores pré-determinados, pode resultar em exclusão. Neste projeto, propus uma mudança de paradigma conceitual que se traduz não por alcançar metas de aprendizagem a partir de modelos motores pré-concebidos, mas sim, um olhar sobre a “experiência” que se traduz numa visão fenomenológica sobre o “movimentar-se” a partir de sua cultura corporal, visando a inclusão de todos.

Quais foram as dificuldades encontradas?

Analisei as contribuições de diversos autores e trouxe para este projeto, uma proposta pedagógica com conteúdos e metodologia específica para as aulas de educação física na EJA. Foram consideradas as condições das instalações, materiais e meios auxiliares disponíveis no colégio. Reitero, contudo, que esta prática pode ser adaptada em qualquer outro lugar, considerando as intervenientes de cada processo, bem como a realidade de cada local. Os conteúdos foram trabalhados em quatro (4) “núcleos de movimentos” .

Núcleos:

1) Movimentos em descoberta do corpo: Habilidades motoras de base: locomotoras (andar, correr, saltar, saltitar, galopar, rolar, rastejar, subir, etc); não locomotoras (flexionar, estender, torcer, girar, levantar, etc); manipulativas (lançar, receber, arremessar, bater, rebater, volear, chutar, quicar, amassar e etc); coordenação motora; esquema corporal; percepção corporal.

2) Movimentos nas manifestações lúdicas e esportivas: Jogos (motores, sensoriais, criativos, intelectivos e pré-desportivos); circuitos psicomotores; esporte institucionalizado adaptado; atividades alternativas.

3) Movimentos na expressão do corpo e ritmo: Ginásticas, lutas, atividades aquáticas (hidroginástica e natação) exercício de Pilates, danças, brinquedos cantados, cantigas de roda, outros.

4) Movimentos e a saúde: Higiene, funcionamento do corpo, nutrição, envelhecimento, cérebro e aprendizagem, treinamento, drogas e anabolizantes, composição corporal, frequência cardíaca, respiratória, alongamentos, conhecimento e cuidados com o corpo, o corpo e seus limites, autoestima e atividade física, ergonomia, atividade física como caráter permanente, sedentarismo, lazer, aptidão física, doenças crônicas não transmissíveis, “academias de saúde”.

Que ações foram realizadas para lidar com a situação?

1) Metodologia das aulas práticas. As aulas são organizadas em 40 minutos da seguinte forma:

1ª parte: “O corpo desperta” (10min): O professor utiliza exercícios que vão estimular um “despertar” do corpo para as atividades que vão seguir. Circuitos psicomotores usando materiais diversificados, exercícios recreativos, caminhadas, corridas e alongamentos são utilizados (núcleos 1, 2 e 3). São realizadas “oficinas de movimento” a partir da colocação de problemas.

2ª parte: “O corpo sente-percebe” (20 min): Exercícios com materiais diversificados, visando o estímulo ao desenvolvimento de habilidades motoras e capacidades físicas (núcleos 1, 2 e 3). Jogos, circuitos psicomotores, esportes, “ginásticas”, lutas, danças e etc. Coloca-se um “problema”, um estímulo corporal para o aluno desenvolver suas estratégias motoras a partir de suas “experiências”, criando novas “aprendizagens” e outras experiências.

3ª parte: “O corpo relaxa” (10min): Exercícios respiratórios, alongamentos, exercícios ergonômicos. Debates sobre o corpo, atividades físicas e a saúde (núcleo 4).

2) Metodologia das aulas teóricas. Nas aulas teóricas trabalhei com temas relacionados ao núcleo 4 do quadro de conteúdos. Os conteúdos são apresentados aos alunos em slides do power point e vídeos. Em seguida, realiza-se um debate com os alunos discutindo as questões apresentadas na aula. Ao final da atividade, foi feita uma avaliação teórica dos conteúdos trabalhados.

Houve participação do atendimento educacional especializado?

São muitas as adaptações nas aulas de educação física quando tratamos da EJA. Poderia dizer que a maioria dos alunos têm necessidades pedagógicas específicas. Contudo, relato o caso de F., aluno da 6ª fase que tem uma “ataxia cerebelar”. Esse distúrbio provoca alterações na marcha e em seu equilíbrio, provocando nele o que se chama de “marcha do ébrio ou cambaleante”. Durante todo o desenvolvimento do projeto, F. foi atendido em propostas de trabalho individualizado e em grupo. O trabalho em grupo foi necessário não só para estabelecimento de atividades inclusivas, mas também para o desenvolvimento de habilidades que são fundamentais para seu processo de crescimento e aprendizado. O resultado foi uma nítida melhora na sua locomoção, equilíbrio, coordenação, organização espaço-temporal. Sente-se feliz e com sua autoestima elevada, vem melhorando seu rendimento escolar.

Ressalta-se o bom relacionamento do grupo com F., que sempre o acolheu muito bem, favorecendo o desenvolvimento de suas competências e habilidades.

Ao longo do projeto, como foi a participação da:

Direção da escola: foi uma participação direta, apoiando e acompanhando todas as necessidades levantadas no projeto e dando totais condições e autonomia para poder desenvolver o mesmo.

Coordenação pedagógica: apoio pedagógico, na logística e estruturação das demandas necessárias para implantação e execução do projeto.

Quais foram os principais resultados gerados com a implementação de seu projeto?

Este projeto foi o desafio que precisava para mostrar que é possível e necessário ter um olhar diferenciado para a educação física na EJA. Estive presente em todos os momentos do trabalho, sendo assíduo, mostrando comprometimento, construindo valores, relações e, fundamentalmente, mostrando ao aluno a relevância social dos conteúdos desenvolvidos no projeto. Com o desenvolvimento deste projeto, foi possível ver IRENES, FRANCISCOS, MARIAS E SEVERINOS e tantos outros, usufruindo criticamente dos conteúdos da cultura corporal de movimentos, construindo suas “identidades corporais”, realizando práticas, sendo felizes se movimentando, melhorando sua autoestima, seu rendimento escolar, suas relações sociais, possibilitando também aos alunos a adoção de um estilo de vida mais ativo.

Participante do prêmio Educador Nota 10 – 2013

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