A família na educação inclusiva

A família cumpre papel vital na educação de uma criança, para o bem ou para o mal. Apesar do consenso sobre essa verdade elementar, o debate (moral, político, jurídico e pedagógico) sobre como tal papel deve ser exercido é historicamente inflamado e sempre reaberto. Aquele lugar comum, se correto na sua generalidade, é cheio de nuances na prática.

Leia também:
+ Meu filho tem deficiência e precisa ir à escola, e agora?
+ Redes de inclusão entre família e escola
+ Crianças com deficiência são mais frágeis que as outras?

Pai e mãe, em primeiro lugar, mais do que o direito de exercer o poder familiar na escolha das opções educacionais dos filhos, têm o dever legal e a responsabilidade por decisões que atendam aos interesses da criança. A liberdade dos pais, por isso mesmo, não é absoluta. Estão em jogo não só os direitos da criança, mas o interesse público.

Educar uma criança, nesse sentido, tem a ver tanto com a formação de um indivíduo, inevitavelmente sujeita às escolhas que pais fazem em seu nome, quanto com um projeto de sociedade, consagrados numa política educacional. Numa democracia constitucional, que promete proteger direitos individuais, há espaços para decisões autônomas da família, mas há valores que a comunidade política não negocia, nem mesmo com a própria família.

A relação família e escola

Longe de serem apenas dilemas teóricos, essas questões têm implicações práticas difíceis de se resolver numa fórmula geral. Saber qual a divisão de trabalho mais desejável entre família e escola, e como ambas podem ajudar-se mutuamente num processo em que nenhuma é autossuficiente, são perguntas em voga desde a criação do ensino universal em qualquer país. As respostas variam segundo as políticas educacionais, o contexto cultural, a posição econômica de cada família, e assim por diante.

Se essas questões já são essencialmente controversas para a educação em geral, no campo da educação inclusiva elas ganham importância ainda maior. Devido à sua novidade histórica, e por chacoalhar um modelo educacional cujos princípios de base estão cristalizados há mais de século, a educação inclusiva renova e aprofunda a dificuldade daquelas questões.

Uma política educacional que adota tal filosofia, como a brasileira, tem um longo percurso de experimentação e de convencimento a seguir. Casos de inclusão atentam-se a diferenças e peculiaridades dos estudantes, com deficiência ou não. Cada caso traz especificidades a serem percebidas, inspira novas práticas a serem testadas e replicadas, desperta resistências a serem diluídas construtivamente. Tendo os pais e a família como parceiros, a instituição escolar realiza melhor aquelas especificidades e a inclusão pode funcionar de maneira mais efetiva. Os pais, por todas essas razões, são copartícipes na implementação e no eventual sucesso dessa política.

Documentos legais e marcos da educação

Essas conclusões estão presentes há pelo menos 20 anos nos principais documentos jurídicos e extrajurídicos na área de educação. A Declaração de Salamanca sobre necessidades educativas especiais, de 1994, redigida por um grupo internacional de especialistas sob os auspícios da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e principal referência simbólica no assunto, enfatiza no seu parágrafo 6º:

O sucesso delas [das escolas inclusivas] requer um esforço claro, não somente por parte dos professores e dos profissionais na escola, mas também por parte dos colegas, pais, famílias e voluntários.

E no parágrafo 59:

Uma parceria cooperativa e de apoio entre administradores escolares, professores e pais deveria ser desenvolvida e pais deveriam ser considerados enquanto parceiros ativos nos processos de tomada de decisão.

Ainda no plano internacional, merece menção a resolução sobre equalização de oportunidades para pessoas com deficiência, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), também em 1994, que caminha na mesma direção.

No Brasil, a Constituição de 1988, em seu art. 205, evoca orientação similar:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Entre as metas e estratégias do Plano nacional de educação (PNE), por fim, encontra-se a referência explícita à colaboração da família em variados papéis educacionais, entre eles o do acesso à escola e ao atendimento educacional especializado (AEE).

Papel da família na educação inclusiva

O caso de Renata, estudante com Síndrome de Down que concluiu em 2013 o ensino médio no Colégio Coronel Pilar, em Santa Maria, é valioso para a discussão desse tema, pois sua família deu particular contribuição em toda sua trajetória na escola. Renata teve o privilégio de pertencer a uma família ativa, que não apenas deu estrutura emocional e logística para que ela frequentasse a escola, mas que monitorou e dialogou com os educadores sobre as atividades que poderiam ser mais afinadas ao perfil dela. Diagnosticaram erros, cobraram mudanças e pressionaram por adaptações.

O caso do Colégio Coronel Pilar também exemplifica uma segunda faceta sobre o papel da família na educação inclusiva. Conforme os depoimentos ali presentes, não é somente a família da criança sujeita a atendimento educacional especializado que pode e deve contribuir nesse processo, mas as famílias dos colegas mais próximos e, obviamente, de todos os outros estudantes da escola. Além dos próprios educadores, as famílias que integram a comunidade escolar podem estimular uma cultura de respeito às diferenças, observar e mediar os conflitos que tais diferenças geram entre os estudantes, contribuir, enfim, para a inclusão e um ambiente de respeito e solidariedade.

A educação inclusiva ainda não foi naturalizada na prática, muito menos no discurso. Há enormes desafios sobre como fazer, e há o desafio ainda maior de formular uma resposta robusta sobre o porquê da sua adoção. Os acertos dos casos de inclusão tornam o apoio a essa política mais provável, e vice-versa. A própria ideia de acerto ou de sucesso, claro, precisa adotar uma métrica coerente com esta filosofia educacional radicalmente igualitária. O caso de Renata é evidência disso: oferece um poderoso argumento em defesa da inclusão, mas não esconde as dificuldades de sua implementação nem deixa de reconhecer o mérito de cada um dos indivíduos que contribuíram para esse desfecho. Entre esses indivíduos, foram os membros de sua família que deram a mensagem mais eloquente.


Conrado Hübner Mendes é professor-doutor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP).

© Instituto Rodrigo Mendes. Licença Creative Commons BY-NC-ND 2.5. A cópia, distribuição e transmissão dessa obra são livres, sob as seguintes condições: Você deve creditar a obra como de autoria de Conrado Hübner Mendes e licenciada pelo Instituto Rodrigo Mendes e DIVERSA.

Deixe um comentário