O ensino médio brasileiro tem estado sob vigília nos últimos tempos. A busca pela universalização do ensino fundamental, promovido desde há pouco mais de uma década, levou a um aumento da demanda por um ensino médio capaz de atender ao novo perfil de alunos que ultrapassa a nona série.
Administrado pelos estados, esse nível de ensino sofre, muitas vezes, com a distância entre as escolas e a gestão pública, o que dificulta o diálogo direto entre diretores das instituições e o corpo técnico das secretarias de educação. Há também questões complexas ligadas à repetência e evasão dos alunos. Estudos baseados na Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) afirmam que pouco mais da metade dos adolescentes entre 15 e 17 anos estão no ensino médio.
A partir dessa constatação, o Plano Nacional de Educação aprovado recentemente tem como meta que, até 2016, 100% desses adolescentes estejam matriculados e, até 2022, se reduza a distorção idade/série, com 85% dos alunos dessa faixa etária matriculados no ensino médio.
Neste contexto de questionamentos e mudanças, a proposta de educação inclusiva chega como mais um componente inadiável. Cada vez mais estudantes com deficiência, altas habilidades e transtornos globais de desenvolvimento terminam o ensino fundamental na escola regular e demandam espaço nos anos finais do ensino básico nacional.
O Colégio Coronel Pilar, em Santa Maria (Rio Grande do Sul), é um exemplo da busca em se atender a esse público no último nível do ensino básico. Ainda na década de 90, o diretor da escola à época, Paulo Portella, lembra como foi a inclusão do primeiro aluno cego nas classes regulares da escola:
Foi uma grande oportunidade para um serviço público oferecer uma coisa que não tinha. Foi a primeira escola que aceitou esse desafio, aqui. E foi realmente um desafio, porque não tínhamos nada. Nós saímos em busca dos recursos dentro da alma, do coração da gente.
A determinação do ex-diretor levou a um convênio entre uma associação de cegos da cidade e a escola para a transcrição de exercícios e provas para o alfabeto braile, o que exigia uma modificação do próprio processo da escola: era necessário entregar materiais a serem transcritos com antecedência maior do que anteriormente, para que um profissional pudesse montar e conferir as versões.
Agora, quase três décadas depois, o espírito do ex-diretor ainda norteia a escola, que tem 67 estudantes com deficiência entre seus mil alunos. A instituição, que sempre ofereceu classes especiais, vem aos poucos abandonando a prática até restar, em 2013, apenas uma. Os integrantes dessa turma são adultos, com grande distorção da relação idade/série.
Mas a meta da coordenação regional é que todos os alunos estejam frequentando as aulas regulares de educação para jovens e adultos (EJA), afirma Roberta Fugerini, assessora de educação inclusiva da 8ª Coordenadoria de Educação do Rio Grande do Sul, que abrange Santa Maria.
A distorção entre idade e série é um dos grandes problemas do ensino médio. Um estudo realizado pelo Instituto Unibanco e pela Universidade de São Paulo mostrou que “a característica mais importante para a evasão escolar é a existência de atraso escolar, pois alunos sem defasagem idade-série praticamente não deixam a escola”. Esse quadro se agrava nas pessoas com deficiência que já atingiram a idade adulta e continuam institucionalizados.
Outra barreira que tem surgido no ensino médio para a educação inclusiva é a ênfase excessiva em conteúdos que fogem à realidade dos alunos, mas compõe o corpo teórico dos vestibulares. Sônia Mogental, professora de matemática do Colégio Coronel Pilar, comenta sobre o assunto:
O nosso aluno hoje, do ensino médio, tem deficiências na base matemática. Então, essa deficiência também precisa ser catalogada. O nosso aluno dito ‘normal’ é deficiente na base da matemática. Ele também faz com que minha aula vá devagar, ele também faz com que o conteúdo não seja todo visto até o fim do ano. Mas a universidade continua com a mesma listagem para o vestibular.
A Drª. Eliana de Menezes, coordenadora do curso de graduação em educação especial da Universidade Federal de Santa Maria, acha que o problema está na forma conteudista com que o ensino médio se organiza:
A forma com que fomos ensinados a estruturar a escola e trabalhar nela é secular. As disciplinas, os saberes, o espaço físico, o controle do tempo: tudo isso continua igual, mas com o agravante de que, em função do vestibular, o conteúdo começou a ganhar uma ênfase muito grande. Atualmente, a escola não é uma preparação para a vida. É uma preparação para o vestibular.
Renata Basso, estudante com síndrome de Down que completou o ensino médio do Coronel Pilar no final de 2013, quer agora fazer curso superior em artes cênicas. Tendo sempre estudado em escolas inclusivas e recebido muito apoio da família para se desenvolver, ela venceu a barreira do ensino médio. Foi auxiliada por um bom planejamento didático, que contava com a parceria entre os professores de sala de aula e os profissionais da sala de recursos. Sandra Maximowitz era responsável pelo atendimento educacional especializado da adolescente, que acontecia no contraturno escolar. Ela conta que foi essencial a sintonia entre ela e a professora de matemática para conseguir dar apoio à estudante. A comunicação entre AEE e sala de aula tem se mostrado um grande facilitador do processo de ensino-aprendizagem, tanto na estruturação das atividades da sala de recursos quanto no planejamento das aulas e uso de ferramentas didáticas pelos professores.
O especialista em direitos humanos Conrado Mendes, ao estudar o projeto inclusivo dessa escola, conclui:
O atendimento educacional especializado tem, conforme a Política Nacional de Educação, responsabilidade crucial na concretização da educação inclusiva. Sem se confundir com o tradicional reforço escolar, no qual se busca abordar os conteúdos ocasionalmente mal compreendidos em cada matéria específica, o AEE deve ser o facilitador do processo de ensino e aprendizagem para alunos cujas deficiências possam gerar obstáculos particulares na sala de aula regular. Enquanto o professor especialista preocupa-se com o conteúdo e as habilidades inerentes à sua matéria, o professor de AEE busca identificar as eventuais dificuldades do estudante, propor atividades paralelas, conversar com o professor da respectiva disciplina e conceber uma estratégia personalizada para lidar com cada caso. Eles constroem pontes e atalhos para atenuar os percalços enfrentados pelos alunos.
O apoio do AEE é essencial para dar confiança aos professores do ensino médio que, na maior parte das vezes, não tiveram a oferta de disciplinas didáticas que os instrumentalizassem para lidar com o aluno com deficiência. Enquanto os movimentos sociais pedem a obrigatoriedade da disciplina de práticas de atendimento educacional especializado em todos os cursos de licenciatura e bacharelado, na prática, os professores que atuam hoje no ensino médio não passaram por nenhuma formação nesse sentido. Por isso, se fazem necessárias também parcerias com instituições especialistas que possam propor novos modelos e novas ferramentas que contribuam para o processo ensino-aprendizagem.
O caminhar do ensino médio em direção à inclusão ainda está começando. Se, no ensino fundamental, enfrentamos o desafio de como implementar a educação para todos, no ensino médio ainda é necessário esclarecer o que é a inclusão e por que ela é necessária. O modelo de um nível não se adequará para o outro. Mesmo em escolas com projetos avançados, como a de Santa Maria, ainda existem dúvidas e resistências entre os professores e mesmo entre os alunos. O trabalho das secretarias estaduais de educação em prol da universalização de seu ensino está apenas começando.
Augusto Galery é psicólogo, mestre em administração, doutor em psicologia social e pesquisador em sociedade inclusiva. Foi coordenador do programa DIVERSA Pesquisa de 2011 a 2015.
Artigo originalmente publicado pela Revista Sentidos, edição 83 (jul-ago/2014)
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