Pesquisa aponta dez dos principais desafios para a oferta do AEE no Brasil

Estudo encomendado pelo MEC e a Unesco ouviu mais de quatro mil professores e 190 gestores de redes municipais e estaduais. Entre necessidades indicadas estão formação profissional, contratação de profissionais, maior investimento e parceria com as famílias

Em sala de recursos multifuncionais, uma menina branca segura com pinça um pedaço de madeira.
Garota faz atividade em sala de recursos multifuncionais. Crédito: Dimítria Coutinho

Alta demanda por formação, demora na contratação de profissionais, financiamento e transporte escolar insuficientes, dificuldade de envolver as famílias, resistência de educadores frente à inclusão, ausência de recursos didáticos acessíveis. Esses são alguns dos entraves que o país enfrenta para a garantir a oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE) no Brasil, apontados pelos próprios educadores e gestores de redes municipais de ensino.  

A constatação acima é fruto de um conjunto de pesquisas regionais que foram sintetizadas em um documento técnico, finalizado em 2022, que apresenta um panorama nacional da oferta do AEE. A publicação foi encomendada, via edital de consultoria, pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2021. Apesar de trazer uma análise nacional sobre a oferta do AEE, é importante destacar, porém, que o documento não teve até o momento uma ampla divulgação na mídia. 

Embora as pesquisas tenham como foco a oferta do AEE antes e durante o contexto da pandemia de Covid-19, muitos dos desafios apontados prevalecem atuais”, afirma Francisca Geny Lustosa, que coordenou o estudo nas regiões norte e nordeste. 

Ao todo, foram entrevistados 4.233 professores e 190 dirigentes da educação especial das redes municipais e estaduais do país para compreender as alternativas adotadas pelas redes e escolas brasileiras quanto à organização, às práticas pedagógicas e aos modelos implementados e praticados de AEE (leia reportagem com dez perguntas e respostas para entender o que é o AEE).  

Confira a lista dos principais desafios do AEE antes e após o retorno das atividades presenciais: 

1 – Formação/capacitação para todos os segmentos de profissionais da escola

2 – Demora na contratação dos profissionais de apoio e cuidadores para os estudantes

3 – Ausência e/ou pouco investimento financeiro do poder público

4 – Estudantes que não podem voltar no contraturno para receber o AEE

5 – Ausência ou insuficiência de recursos didáticos-pedagógicos acessíveis

6 – Elevado número de estudantes público-alvo da educação especial

7 – Resistência dos (as) professores(as) à inclusão

8 – Falta de transporte escolar para atender os estudantes no contraturno

9 – Falta de formação de professores na área do AEE, ofertada pelas redes de ensino/poder público

10 – Falta de projetos e/ou atividades da escola que envolvam a família

Os dados chamam atenção, pois mostram que, apesar dos avanços desde a sanção da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em 2008, que instituiu a obrigatoriedade da oferta de AEE na rede pública, há muito a ser feito.  

Entre os achados, o estudo revela que a grande maioria das escolas (3.609 respostas) oferecem o AEE no contraturno da escolarização, modelo mais indicado de acordo com a Resolução nº 4/2009 do Conselho Nacional de Educação (CNE). No entanto, também evidencia que há escolas nas quais os estudantes frequentam apenas o AEE (350 respostas) e casos de estudantes que frequentam o ensino especial e que não estão matriculados na escolarização obrigatória (32) o que vai contra a legislação. Aspecto este, segundo as autoras do estudo, que precisa ser objeto de novas análises, inclusive comparando com as informações declaradas pelas próprias escolas no Censo Escolar.  

Outros 1.213 entrevistados relataram que suas escolas oferecem AEE no mesmo turno da escolarização. 917 atendem estudantes de outras instituições de ensino do entorno/proximidades, e 194 atuam em períodos intermediários aos turnos e/ou ao final dos turnos de escolarização (leia reportagem especial sobre os principais modelos de AEE). 

Segundo o estudo, esses dados evidenciam realidades escolares que devem ser consideradas pelos gestores públicos. As pesquisadoras indicam, por exemplo, que o número de escolas que atendem à demanda de estudantes de outras instituições pode refletir a necessidade de expansão da oferta do AEE. “O investimento na ampliação da oferta desse serviço a todas as escolas públicas da rede de ensino possibilita ao aluno receber o AEE em sua própria escola, o que qualifica o acompanhamento pedagógico junto aos professores do AEE e da classe comum de ensino”, defende o texto.  

Para Francisca, mesmo que os modelos se apresentem como alternativas criadas pelas escolas e redes para poderem ofertar o atendimento, é preciso questionar se cumprem a finalidade de promover uma cultura inclusiva nos ambientes educacionais. 

“Quando o AEE não ocorre no contraturno, os motivos são estruturais do sistema de ensino, isto é, os desafios estão em outra esfera que não na pedagógica. São justificativas-álibis que não podem levar a uma institucionalização que dificulte o acesso do estudante à política pública”, aponta Francisca, coordenadora do Grupo Pró-Inclusão: Pesquisas e Estudos sobre Educação Especial, Inclusiva e Alfabetização, Práticas Pedagógicas e Formação de Professores, da Universidade do Ceará (UFC). 

Outro obstáculo para o acesso ao AEE citado no estudo passa pela dificuldade das escolas de oferecer merenda e transporte escolar, dado que muitas famílias não conseguem levar os estudantes para acessarem esse serviço no contraturno. 

O gargalo da formação 

O levantamento também mostra que o maior desafio para a realização, organização e oferta do AEE na rede de ensino de todas as regiões do país é a “formação/capacitação para todos os segmentos de profissionais da escola” (2.475 respostas), seguido de “demora na contratação dos profissionais de apoio e cuidadores para os estudantes” (2.157) e de “ausência e/ou pouco investimento financeiro do poder público” (1.897). 

Para Francisca, a ausência de formação é hoje um gargalo que precisa ser resolvido com urgência. “Os educadores acreditam na formação, eles a querem e dizem que têm expectativas sobre isso”, afirma a pesquisadora. “Houve uma renovação dos profissionais das escolas sem o acompanhamento de formação adequada. Seria necessária uma ação grande, que incluísse o MEC, para fomentar mestrados e doutorados dentro da temática”, avalia. 

Na opinião da pesquisadora, outro caminho para a qualificação dos profissionais é também por meio do estreitamento da relação das universidades com as redes municipais e estaduais. “Os professores reclamam muito das metodologias de formação porque elas não respondem às necessidades diárias, do cotidiano, do trabalho com o estudante. Por isso, hoje, estamos trabalhando com estudos de caso”, diz.  

Um ponto que complementa e amplia o debate sobre a necessidade de formação está no vínculo empregatício dos entrevistados. Do total de profissionais que responderam ao questionário, 2.275 são professores do AEE da unidade escolar (efetivos), já 1.148 professores do AEE estão nas unidades escolares sob vínculo de contrato temporário. “Se considerarmos que o fato de ser professor efetivo proporciona maior estabilidade quanto às perspectivas de futuro profissional e, possivelmente, maiores condições de dedicação às escolas, é preocupante o alto número de professores temporários”, indica o texto. 

Entre as questões a serem trabalhadas, também apareceu “resistência dos (as) professores/as à inclusão”, o que provoca a reflexão sobre o quanto disso é resultado da falta de formação qualificada e o pouco investimento orçamentário no AEE. 

“Precisamos fomentar a formação docente no modelo social da deficiência. A verdade é que modelos biomédicos são referências ainda não superadas e que não constroem boas formações de professores”, diz Francisca. A visão médica foi superada pelo modelo social já na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2006, que fundamenta todo o aparato legal sobre deficiência e educação inclusiva no Brasil, inclusive a LBI e a PNEEPEI. No modelo social, o foco não está nas características da pessoa, e sim nas barreiras existentes na sociedade — físicas, atitudinais, de comunicação, tecnológicas etc. — e que criam impedimentos para que ela se desenvolva e participe plenamente da vida em sociedade, incluindo a escola.    

Investimento público 

De acordo com a pesquisa, observa-se que a ausência e/ou pouco investimento financeiro do poder público demonstra que as iniciativas até então implementadas não estão sendo suficientes para suprir as necessidades pedagógicas, metodológicas e estruturais das escolas para qualificar o AEE para os estudantes com deficiência, Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e altas habilidades ou superdotação nas escolas. 

“A precarização fica evidente quando os professores dizem que estão em uma sala embaixo de uma escada fazendo o AEE ou quando dizem que, desde 2008, quando foram criadas as primeiras salas multifuncionais, estão esperando chegar os materiais”, aponta Francisca.  

Em nota, o MEC alegou que, por meio da Diretoria de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, implementa o Programa PDDE-Sala de Recursos, que tem como propósito distribuir recursos financeiros para a aquisição de itens, materiais pedagógicos, equipamentos e materiais para o AEE, para atender as especificidades pedagógicas dos estudantes da educação especial, matriculados em classes comuns das escolas públicas.  

“Em 2023, foram distribuídos R$ 237,29 milhões em recursos para oferta do Atendimento Educacional Especializado que, além de contemplar as 11.430 escolas, beneficiou 191.025 estudantes do público da educação especial. Para 2024, o programa mantém-se ativo e nas próximas semanas será iniciado um novo ciclo de adesão”, apontou. 

A pasta também lembrou que os estados e municípios possuem autonomia para adequar os serviços e programas aos seus contextos e realidade, desde que os princípios da PNEEPEI sejam preservados. “No entanto, é importante acrescentar que se encontra na agenda de discussões da Secadi [Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão] o planejamento para articular a oferta do AEE a outros modelos, como é o caso da escola em tempo integral. Esse planejamento é respaldado na perspectiva da educação inclusiva, de modo que não haja prejuízos para o estudante público-alvo da educação especial.” 

Sobre a pesquisa 

Além dos desafios para a oferta do AEE antes e durante a pandemia da Covid-19, o relatório nacional apresenta algumas especificidades da oferta desse serviço em outras etapas e modalidades de ensino, como, por exemplo, na educação de jovens e adultos (EJA) e na educação integral, e sugestões para políticas públicas a partir da percepção dos dirigentes municipais.  

A pesquisa foi realizada por meio de metodologias quanti-qualitativas, que envolveram levantamento de dados estatísticos e análise bibliográfica sobre educação especial. A aplicação dos questionários semiestruturados para professores e gestores municipais de educação ocorreu em junho de 2022, em cada uma das cinco regiões brasileiras.  

A coordenação da pesquisa em cada uma das regiões do país foi feita por três pesquisadoras com ampla experiência no campo da educação especial: Francisca Geny Lustosa, da UFC, nas regiões norte e nordeste; Daniela Antonello Lobo D’Avila, do Instituto Federal Farroupilha (IFFar), no centro-oeste e no sul; e Luciana A. Rodrigues Silva, consultora do Instituto Olga Kos e gestora da empresa Scio Desenvolvimento e Inclusão, no sudeste.  

Confira o documento na íntegra.  

 

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