Trabalho colaborativo e olhar individualizado direcionam atuação em escola paulista
Com parceria entre educadores, profissionais de apoio, gestores e secretaria, Emeb Helena Zanfelici da Silva, em São Bernardo do Campo, trilha caminho para fortalecer a inclusão e enfrentar desafios como a formação docente
Há 11 anos, em fevereiro de 2013, a Escola Municipal de Educação Básica (Emeb) Helena Zanfelici da Silva foi objeto de um estudo de caso produzido pelo DIVERSA. Este ano, em nova visita à escola, constatamos que o engajamento e o compromisso com a educação inclusiva seguem como horizonte da equipe escolar.
O olhar individualizado para cada estudante, buscando, de maneira colaborativa, os melhores caminhos para acolhê-lo e desenvolver seu potencial não só na sala de aula, mas em todos os níveis de sua vivência escolar tem sido o principal direcionador do trabalho dos educadores da escola localizada no bairro dos Finco, em São Bernardo do Campo (SP), perto da Represa Billings e da Serra do Mar.
Dois pontos centrais contribuem para a abordagem com os alunos, sobretudo aqueles com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), cujo número cresceu nos últimos anos: as atividades de planejamento, seja no início do ano ou nas reuniões periódicas; e a aposta nos estudos de caso. Estes últimos constituem uma ferramenta ativa para as crianças que precisam de medidas de apoio e suporte para garantir a inclusão nos trabalhos cotidianos dentro e fora da sala de aula.
Quando o professor regente identifica barreiras que julga merecedoras de uma intervenção pedagógica, ele aciona o coordenador pedagógico e, daí em diante, são feitas uma avaliação e novas propostas de abordagens estratégicas. Elas partem de um dos princípios centrais relatados já em 2013 e preconizado pela rede de São Bernardo do Campo: o ensino colaborativo. A diferença é que hoje os estudos de caso seguem um roteiro pré-definido, elaborado pela rede de ensino para orientar todas as escolas (confira o documento orientador da rede aqui). O trabalho colaborativo é uma das âncoras de suporte aos professores regentes.
Segundo o coordenador pedagógico Éder Garcia, que está desde 2010 na unidade, normalmente os estudos de caso são feitos com os estudantes que chegam à escola trazendo algum laudo médico e com aqueles encaminhados pelos professores regentes.
“O coordenador irá observar o estudante em sala, ver se as impressões são convergentes e, se for factível, traçar junto com o docente uma nova abordagem. Se a criança ou jovem se integrar ao grupo a contento, o processo para por aí”, conta Éder.
Caso a solução pedagógica não seja encontrada, o professor do atendimento educacional especializado (AEE) é chamado para atuar em parceria com o regente e observar o estudante em classe, visando um aprofundamento da análise inicial. Depois, ao longo de todo ano, semanalmente, os dois educadores realizam encontros para trocar impressões e buscar soluções conjuntas. O AEE faz um estudo das habilidades da criança ou jovem, que resulta na elaboração do plano do AEE, e auxilia na formulação curricular do regente para toda a sala, pois o intuito é que esse currículo contemple a todos, com uso de variadas estratégias e linguagens.
A diretora Carla Soraya enfatiza que há uma busca coletiva para que o professor tenha o máximo possível de elementos para atuar. “Oferecemos tudo para o docente antes de começar [o ano letivo]. Percebemos que cada um tem um tempo para aprender a lidar com cada turma. Marcamos um dia para direcionar o trabalho e nos reunimos todos: AEE, coordenação pedagógica, professores regentes e direção”, conta.
O trabalho, no entanto, começa antes disso, na atribuição de turmas, feita de acordo com os diferentes perfis docentes. Busca-se fazer uma seleção o mais criteriosa possível quando um estudante com deficiência muda de turma. “Fazemos com que o professor converse com o docente anterior e com o profissional de apoio escolar, para não começar do zero. Nessas conversas, fala-se aquilo que o papel não diz”, relata Carla, mostrando algo que se aprende na prática: que a formalização e a escrita muitas vezes inibem observações que surgem mais espontaneamente na fala.
Se o trabalho do AEE for insuficiente para assegurar a inclusão do estudante, entra em campo a equipe de orientação técnica da Secretaria Municipal de Educação, um time multidisciplinar composto por nove assistentes sociais, 18 psicólogos, nove fisioterapeutas, sete terapeutas ocupacionais e 16 fonoaudiólogas. Esse grupo tem reuniões periódicas com o pessoal da Secretaria de Saúde, que acompanha também a criança ou adolescente e visita as escolas em reuniões agendadas. Um dos profissionais da Secretaria de Educação é escalado para conversar com os gestores e professores da unidade para tentar novas soluções para o estudante.
Muitas vezes, as soluções encontradas são ajustes que demandam alguma sutileza na identificação do problema. Uma estudante com TEA foi designada para uma turma vespertina bastante agitada, por exemplo, e ficou mais agitada do que já era normalmente. A ideia de transferi-la para uma classe calma do período da manhã funcionou.
Outra, também com TEA, enfrentava o desafio de permanecer em ambientes fechados com muita gente. A opção encontrada inicialmente foi a de atrasar em 15 minutos a entrada da estudante na sala. Ao chegar na escola, ela era acompanhada por um educador que a levava para algumas atividades fora da sala de aula. Essa postergação visava dar tempo para que a classe se acomodasse antes de a aluna entrar. É preciso salientar, porém, que alternativas como esta devem ser desenvolvidas em carácter transitório, até que se encontrem caminhos para promover a autonomia da estudante com deficiência, fazendo com que ela possa ingressar junto com os demais e não perder tempo de aula. Nesse caso, por exemplo, isso pode implicar na reconfiguração do momento da entrada na escola, refletindo como ele pode ser realizado de maneira a atender as necessidades de todos os estudantes.
Um terceiro caso, ocorrido em 2023, envolveu um menino de oito anos, com TEA, que voltou à escola depois de uma temporada morando em Minas Gerais. “O menino mordia a mesa, comia folhas de caderno e não conseguia se alimentar”, relembra Éder. Não houve solução pedagógica. A assistente social foi acionada e levantou os atendimentos que o garoto já havia recebido na rede de saúde. “Tivemos a ajuda da equipe de saúde, que identificou a necessidade de apoiar também a mãe, então encaminhada para outros serviços da saúde e assistência social oferecidos pelo município. Entraram em cena psicólogo e neurologista. Hoje, o garoto está em processo de alfabetização, acompanha a turma e pede para fazer as atividades. Era completamente dependente dos cuidados de terceiros. Agora, não está precisando mais”, resume o coordenador.
Para o coordenador, a solução desse caso é fruto também da maturidade da equipe escolar. “Hoje, sabemos o que é nosso e o que não é. E contamos com a equipe técnica, que está atendendo com muita agilidade e presteza”, elogia.
Etapas do estudo de caso
1ª etapa – Avaliação inicial realizada pelo professor da turma.
2ª etapa – Observação do estudante pela coordenação pedagógica.
3ª etapa – Aprofundamento do estudo pelo professor do AEE, caso necessário.
4ª etapa – Conclusão do estudo de caso, realizada a análise pela equipe de orientação técnica referência da unidade (EOT), equipe de gestão e orientadora pedagógica referência da unidade.
Fonte: Equipe da Emeb Helena Zanfelici da Silva
A evolução da rede
Em 2013, o tema que aparecia como principal desafio naquela oportunidade, tanto da escola como da estudante retratada na reportagem e do próprio município, era a conquista da autonomia por parte dos estudantes com deficiência, objetivo que continua sendo perseguido por todas as partes.
Hoje, porém, a secretária de Educação, Sílvia Donnini, avalia que, em função do trabalho desenvolvido pela rede, não só a Helena Zanfelici é uma referência em educação inclusiva no município. Agora, diz ela, as outras unidades estão no mesmo patamar de atenção à inclusão, tendo como retaguarda as equipes de orientação pedagógica (EOP) e de orientação técnica (EOT), além de 307 professores da educação especial e 2.476 cuidadores.
Porém, a Helena Zanfelici não foge à realidade do país. Enfrenta questões comuns a outras unidades e à educação brasileira como um todo. A principal delas é a mudança acentuada do corpo docente, com a chegada de professores com pouca experiência na carreira.
Essa troca geracional na docência, com muitos professores se aposentando e um número decrescente de licenciandos que efetivamente ingressam nas escolas, já vem sendo apontada desde os anos 2000. Em 2007, um estudo do Conselho Nacional de Educação (CNE) indicava um déficit de 250 mil professores na educação básica, com situação mais crítica no ensino médio e nos anos finais do ensino fundamental.
A rede municipal de São Bernardo do Campo é uma rede de grande porte. São 175 escolas próprias e 44 parceiras (conveniadas), com 3.187 turmas. Os 74.698 estudantes são atendidos por 5.940 professores (ver mais informações no quadro ao final do texto).
Formação e relação com as famílias são desafios
No total, a Emeb Helena Zanfelici da Silva tem 810 estudantes, sendo 298 da educação infantil e 512 dos anos iniciais do ensino fundamental. São 37 professores regentes, dois professores do AEE (um para cada turno), seis especialistas (quatro de educação física e dois de artes), cinco auxiliares (que atendem exclusivamente as turmas da pré-escola) e 23 profissionais de apoio escolar para os alunos público-alvo da educação especial. Não há professores intérpretes de Libras na escola. Neste primeiro semestre de 2024, os professores do AEE acompanham um total de 39 estudantes, 20 no período da manhã e 19 à tarde.
“Antes, tínhamos vários professores mais experientes em sala. Houve algum estranhamento [quando da vinda de estudantes público-alvo da educação especial para classes do ensino regular, no início da década passada], mas percebi que logo se adequavam. Nos últimos cinco ou seis anos, os docentes ingressantes têm pouca ou nenhuma experiência de regência de sala de aula. Quando há um aluno com deficiência, é preciso ter um repertório variado de estratégias pedagógicas. Isso exige um trabalho mais aprofundado para orientação desse professor”, diz o coordenador Éder. Além dele, a escola também conta com a coordenadora Camila Leonel, que entrou na unidade no mesmo ano de 2010.
Éder estima que hoje apenas um em cada quatro professores figure no grupo dos mais experientes. Os ingressantes, segundo relatos feitos à coordenação, veem três aspectos como barreiras para que se atinja o objetivo de inclusão: comportamento desafiador dos estudantes, dúvidas sobre a legislação vigente e falta de conhecimento de como a rede trabalha. Já os coordenadores comentam uma dificuldade inicial desse grupo de educadores em relação à articulação curricular, visto que a inclusão exige o uso concomitante de uma variedade de estratégias pedagógicas.
Outra mudança significativa de uma década para cá, segundo os educadores, foi o aumento dos estudantes que chegam à escola com laudos, com os pais e responsáveis solicitando apoio individualizado. Segundo a diretora Carla, o aumento maior foi de alunos com diagnóstico de TEA. “Sentimos que, muitas vezes, os pais vêm à escola com o laudo para fazer valer o direito inscrito na lei. Muitas famílias se pautam mais por esse direito do que pelas potencialidades dos sujeitos [seus filhos]”.
Até por isso, na relação com as famílias, são necessários tato e cuidados, dizem os coordenadores. “Muitos se recusaram por anos a procurar ajuda. É preciso acolhê-los da melhor forma possível”, diz Camila Leonel.
Em acréscimo aos laudos, há outro perfil de família que também procura a coordenação. “De tempos para cá, temos tido contato com mães que dizem que os filhos têm TEA, mesmo que não tenham nenhum laudo”, relata Éder.
Assim como aqueles cujos professores notam algum tipo de barreira para a aprendizagem, nessas situações, são realizados estudo de caso para avaliação do tipo de atenção que cada estudante deve receber. Cabe destacar que a existência de um laudo não significa que automaticamente a criança ou jovem será direcionado ao AEE. A análise da equipe escolar é o fator determinante para identificar as barreiras a serem enfrentadas e as estratégias a serem utilizadas para isso (saiba mais sobre a oferta desse serviço aqui).
AEE: renovação constante
O trabalho do professor responsável pelo AEE não admite acomodação, pois estudantes e realidades são mutantes. Como diz a professora Silvéria Rodrigues Madeira, assessora pedagógica da Secretaria Municipal, o objetivo da rede é incluir todos os alunos. Para isso, “é preciso que a proposta do AEE seja sempre revisitada, assim como as orientações pedagógica e técnica. É uma diretriz da Secretaria”.
A professora Maria Antônia Silva Gazinhato, uma das duas do AEE da Helena Zanfelici, vê esse padrão mais do que como uma diretriz: é uma exigência do dia a dia. “Vim para cá em 2011, de uma escola especial. Na época, os casos eram bem mais simples de resolver. Hoje em dia, com o crescimento do diagnóstico de TEA, há uma questão comportamental séria para a inclusão. É uma realidade mais rica. Aprendemos muito, pois a cada ano há novos alunos que demandam novas estratégias e novos conhecimentos. A escola inclusiva nos dá novos desafios. Até 2010, os estudantes com deficiência estavam em escolas especiais. Hoje estão junto com outras crianças.”
Maria Antônia conta que começa o ano trabalhando para conhecer o aluno. Ela estuda as habilidades de cada estudante para estabelecer um plano de ação e auxiliar o professor regente a planejar o currículo e fazer as flexibilizações de atividades necessárias. O diálogo é semanal com o professor regente. Ela procura conhecer o conteúdo a ser trabalhado a cada semana, para refletir sobre as necessidades dos estudantes que acompanha. A chave do trabalho é a observação das crianças e adolescentes, de suas capacidades e dificuldades, para planejar as próximas atividades.
O uso de recursos como imagens, sons e objetos manipuláveis é planejado para ser aplicado com todos durante as aulas regulares, o que tem ajudado especialmente os estudantes com TEA, que precisam avançar na socialização com o grupo.
“O que determina a estratégia a ser utilizada é a barreira. A sala de recursos multifuncionais é o último suporte a ser usado”, diz Éder. Ele lembra que o atendimento direto não precisa ser necessariamente individual. “Há indicação de que o trabalho de grupo, quando possível, é bom.”
No caso dos portfólios, nos quais se registram as atividades de cada estudante, com documentação pedagógica e histórico do processo de aprendizagem, é utilizado um leque diferente de linguagens, como fotografias ou desenhos, por exemplo. São caminhos para não ficar preso à linguagem escrita quando ela ainda não está ao alcance do aluno.
Se a mudança do quadro docente e a inexperiência inicial tem sido desafiadora, a orientadora pedagógica Izaura Martins vê aí o acréscimo de mais uma estratégia de trabalho, ainda mais necessária diante desse novo quadro. “Acho que a questão formativa ganhou uma nova importância para o conjunto da escola, com o acompanhamento e o acolhimento de cada um dos educandos e dos novos educadores.” Nova estratégia ou reforço do antigo trabalho colaborativo — não importa. O que se destaca na equipe escolar da Helena Zanfelici é o fato de todos estarem conscientes de que não irão acertar sempre e que precisam reavaliar suas práticas a cada dia. Inclusão não combina com inércia.
Acesso à rede de estudantes com deficiência cresceu 96,3% em sete anos
Com 850 mil habitantes, o município de São Bernardo de Campo, na região metropolitana de São Paulo, ficou conhecido ao longo da segunda metade do século passado pela presença da indústria automobilística e de seus fortes sindicatos de trabalhadores.
Em paralelo a essa face industrial, a cidade também foi construindo redes de saúde e de educação bem estruturadas. Por isso, quando o documento nacional da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) foi publicado, em 2008, o município já havia começado o movimento de levar os estudantes com deficiência para a educação regular.
Assim, a procura de escolas por parte de estudantes com diversos tipos de deficiências (visual, auditiva, múltipla, física e intelectual), altas habilidades/superdotação e TEA tem aumentado de forma significativa. Hoje, o total de estudantes da educação especial no município é de 2.790 pessoas. Esse número corresponde a um aumento de 96,3% quando comparado aos 1.421 estudantes desse público matriculados em 2017 e a 173,5% a mais que os 1.020 de 2013.
Para atendê-los, há uma equipe de orientação pedagógica (EOP) com 56 profissionais, 26 para a educação infantil, sete para o ensino fundamental e ensino de jovens e adultos (EJA), 13 creches parceiras e dez para os núcleos de formação. Além deles, há 307 professores da educação especial, divididos por deficiência e com carreiras específicas, a grande maioria para deficiência intelectual (265), 29 para deficiência auditiva e 13 para deficiência visual. E 2.476 cuidadores, profissionais contratados por meio de organizações sociais, com formação de nível médio.