A chegada de André* ao ensino médio, em 2015, marcou o início de um processo de transformação da minha prática pedagógica na escola Professor Nagib Coelho Matni, em Belém (PA). Cego de nascimento, o estudante passou a frequentar minhas aulas de física, o que me despertou para a questão: como garantir que uma pessoa com deficiência visual aprendesse a disciplina? Compartilhei a dúvida com toda a turma, provocando discussões sobre inclusão social, equidade e igualdade. Desse diálogo entre os adolescentes, tivemos a ideia de confeccionar materiais para que o colega pudesse compreender conceitos de óptica por meio do tato.
Localizada no bairro do Coqueiro, periferia da capital paraense, a Nagib Coelho Matni oferece cerca de 1.500 vagas para alunos dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Sou professor de física na unidade. Durante o desenvolvimento do projeto, procurei fazer com que os estudantes fossem protagonistas de seu próprio processo de aprendizagem, incentivando-os a pesquisar e estudar por conta própria e a trabalhar em conjunto. Da concepção à confecção dos produtos educacionais, todo processo criativo foi conduzido por eles.
A responsabilidade pela inclusão
Como falar sobre luz, cores e formação de imagens para quem não enxerga? Nosso primeiro passo diante desse desafio foi estudar o que era a inclusão de pessoas com deficiência na educação. Para isso, toda a turma leu artigos e assistiu a reportagens sobre o tema. A principal questão levantada foi: quem era responsável por garantir que André aprendesse física? O Estado? A escola? A família?
Para desafiá-los a buscar soluções, as aulas teóricas de óptica foram dadas com todos vendados. Sem contar com a visão, eles perceberam como a presença de poucos recursos sonoros e táteis tornava difícil a compreensão da matéria. Após esse contato com a disciplina a partir da perspectiva de uma pessoa que não vê, os alunos concluíram que eles mesmos poderiam criar mecanismos para que o colega aprendesse.
Pesquisa sobre ensino de física para cegos
Em seguida, os estudantes dividiram-se em grupos. Cada conjunto ficou responsável por pensar em um objeto que permitisse a um cego compreender um determinado conceito da óptica. Os temas trabalhados foram: refração, reflexão e dispersão da luz e formação de imagens em espelhos.
A criação dos materiais foi precedida por uma intensa pesquisa sobre ensino de física e inclusão. Nessa etapa, o trabalho de Eder Pires de Camargo foi bastante explorado. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Camargo é referência no assunto e foi a primeira pessoa com deficiência visual a obter livre-docência no Brasil. A turma leu seus artigos e assistiu a vídeos onde o pesquisador faz uso de recursos não visuais.
Outros especialistas foram consultados. Em visita à Universidade Federal do Pará (UFPA), a classe conversou com Jorge Adonai Coelho Brasil, professor cujo trabalho de conclusão de curso teve como tema “Propostas de ensino de física para alunos com deficiência visual”. Lá, eles também conheceram e receberam orientações de Simone da Graça de Castro Fraiha, outra referência na área.
Foram os próprios adolescentes que encontraram o trabalho desses pesquisadores na internet.
A montagem dos materiais
Após a etapa de pesquisa, os estudantes começaram a produzir os objetos de aprendizagem, usando materiais reutilizáveis ou de baixo custo. Além de fazer parte de um dos grupos, André foi responsável pelos testes de qualidade de todos os produtos. Com isso, esteve em contato com toda a turma, avaliando se os recursos criados atendiam à proposta de ensinar fenômenos ópticos sem a necessidade de recorrer à visão.
Os conceitos abordados e os respectivos objetos criados para o kit de ensino de física foram:
Formação de imagens em espelhos planos
Refração, dispersão da luz e formação das cores
Antes de passar pela primeira lâmina de acrílico, as diversas linhas foram unidas e encapadas. Esse “fio” formado pela união das cores retrata a luz branca. Ao passar pelo prisma, ocorre o fenômeno da dispersão e as cores saem separadas do outro lado da estrutura.
Composição da luz branca
Com o disco parado, André reconhecia pelo tato as várias texturas, ou seja, as diferentes cores. Com o objeto em movimento, ele perdia essa noção e tinha a impressão de sentir uma única superfície, tal como ocorre com a luz branca.
Formação de imagens no espelho côncavo
Os resultados da iniciativa para a escola
Quando os alunos foram colocados diante do desafio de ensinar óptica para alguém que não enxerga, eles começaram a compreender o que é inclusão social e qual sua importância. André, que chegou ao ensino médio tímido, se envolveu mais com a turma e se tornou mais participativo nas aulas. A pedido dos próprios colegas e professores, ele decidiu aprender braille.
Enquanto educador, procurei ser provocador e entusiasta. Mediei todo o processo, dividi os grupos, mostrei os possíveis caminhos para a pesquisa e fui responsável por organizar os encontros com os especialistas da área. A experiência foi edificante e eu aprendi muito.
A escola Nagib Coelho Matni, depois do projeto, passou à comunidade um kit de ensino de óptica por meio do tato. Há intenção de dar continuidade ao trabalho, produzindo materiais educacionais para ensinar outros temas de física e de outras disciplinas.
* Nome fictício.
Projeto participante do Desafio Criativos na Escola de 2017