A vivência do jovem Jederson como músico no espetáculo “Pelos olhos dela” é prova de que a relação entre deficiência auditiva e percepção rítmica não são opostas. Surdo de nascimento, o estudante do ensino médio participou da montagem da trilha sonora da peça, realizada pelo grupo “Cena especial”, em Belém (PA). A tarefa de tocar um instrumento em palco impôs desafios para o adolescente e para a direção. Mas com um trabalho progressivo durante os ensaios, a experiência levou à criação da técnica da tatopercussão, que permitiu a uma pessoa surda compreender e fazer música a partir da referência rítmica natural de todos humanos – os batimentos do coração.
Criado em 2015, o projeto de extensão universitária Cena especial, realizado na Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), tem como meta formar atores inclusivos: pessoas com ou sem deficiência dispostas a montar produções teatrais que abordem questões relacionadas à inclusão social das pessoas com deficiência. A participação é aberta a todos interessados, com ou sem experiência em artes, e que tenham a partir de 16 anos. Eu, Carlos Correia Santos, sou diretor e criador do Cena, que em seus dois primeiros anos esteve ligado à Faculdade Integrada Brasil-Amazônia (FIBRA).
Jederson fez parte da primeira turma do projeto, que contou com outras pessoas sem deficiência, pessoas cegas, com autismo e com Síndrome de Down. Todos fizeram parte de “Pelos olhos dela”, uma dramaturgia que convidava o público a experimentar a ausência da visão. O elenco se dividiu entre músicos, que executavam ao vivo as canções da produção, protagonistas e atores indutores dos jogos sensoriais, que ficaram responsáveis por provocar sensações na plateia.
O jovem participou do grupo na companhia de uma amiga de infância que atuou como sua intérprete de Língua brasileira de sinais (Libras).
A compreensão do ritmo
Uma das cenas do espetáculo previa a execução de uma tuba de modo rítmico, seguro, dramático e com uma certa intensidade progressiva. Para desafiar o estudante, dei-lhe essa tarefa. Sua pergunta imediata foi: mas como se ele era surdo? Das tentativas para ajudá-lo nessa missão surgiu a técnica da tatopercussão.
Durante os ensaios com o texto, o adolescente acompanhava visualmente a movimentação dos atores e as marcações. Na sequência, eram realizadas as atividades de autopercepção. Como todos temos uma referência rítmica natural – as batidas do coração –, optamos por fazê-lo compreender a pulsação da música por meio da sensação dos próprios batimentos cardíacos.
Para evitar que outros fatores sensoriais o distraíssem, inicialmente, esse trabalho foi feito somente com participação da direção, de Jederson e de sua amiga e intérprete. Nesses momentos, o jovem fechava os olhos para se concentrar no pulso do coração. Em seguida, de olhos abertos, eu solicitava que ele reproduzisse as batidas na palma da minha mão. Depois de alguns ensaios, o exercício passou a ser feito junto aos demais membros do elenco, que formavam um círculo ao redor. A proposta era estimular sua memória sensorial e corporal.
Reproduzindo a música
Na etapa seguinte, introduzimos mais uma pessoa à dinâmica. Dessa vez, o estudante deveria bater na mão do novo integrante seguindo o ritmo da minha regência, que ele acompanhava visualmente. As primeiras tentativas não foram satisfatórias, houve muitos desencontros. Mas, após cinco sessões, ele começou a executar as batidas de modo harmônico aos meus comandos.
O próximo passo foi apresentar-lhe as músicas que fariam parte da peça. Primeiro, ele as acompanhou com a tradução em Libras. Depois, sem a interpretação da língua de sinais. A ideia era que ele centrasse a atenção nos movimentos dos músicos. Em seguida, enquanto as canções eram executadas, sentei-me a seu lado e fiz a marcação rítmica de todas as cenas em sua mão. Ao final, perguntei o que tinha sentido. Ele relatou ter tido a sensação de entender melhor o que era música.
Por fim, o adolescente passou a interagir com a tuba. Primeiro, o ritmo que ele deveria executar lhe foi passado com os toques na mão. Depois, ele reproduziu as marcações no instrumento de sopro. E, enfim, em um terceiro momento, a execução passou a ser regida por mim.
Após todas essas etapas, Jederson participou dos ensaios completos. As cenas eram passadas em sequência e, na sua vez, ele se dirigia ao instrumento e o tocava de acordo com a regência.
A experiência no palco
“Pelos olhos dela” estreou em junho daquele ano. A proposta da produção chamou a atenção na região e a procura do público foi grande. O jovem surdo esteve em cena em todas as apresentações e seu desempenho foi notável. Ele executou a percussão na tuba com precisão.
Nas primeiras sessões, ele seguiu minha regência. Mas com o tempo, ele não precisou mais da marcação – sua percepção do ritmo das músicas já estava em sua memória corporal. Ao final das apresentações, quando os espectadores retiravam as vendas, era sempre um fator de grande emoção descobrirem que o percussionista era uma pessoa surda.
A vivência de todo o processo de montagem do espetáculo melhorou notoriamente a habilidade de interação social do estudante. No início, sua ida aos ensaios estava condicionada à presença da amiga e intérprete de Libras; se ela faltava, ele também. Mas à medida que sua noção de ritmo e seu envolvimento com o grupo se desenvolviam, Jederson passou a ir aos encontros sozinho.
No ano seguinte, o projeto de extensão produziu uma peça inspirada no clássico da literatura infanto-juvenil “O pequeno príncipe”. A produção foi protagonizada por um rapaz com Síndrome de Down.