Retomada das aulas é desafio para escola atingida por enchente no RS

Em meio a reformas e revezamento de turmas, a equipe escolar da EMEF La Hire Guerra, em Eldorado do Sul, trabalha para garantir a aprendizagem de todos os estudantes

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A volta às aulas foi numa manhã fria, com chuva fraca, na primeira quinzena de julho. Os estudantes do primeiro ano estavam sentados em círculo, com as mochilas nas mãos, contando como foi o período que passaram longe da escola. A cena parece ser o início de um ano letivo qualquer, mas em vez de histórias de passeios, brincadeiras e aventuras de férias, as crianças compartilhavam com a professora os momentos de medo que passaram ao ter de sair de casa por causa das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul no final de abril. A grande quantidade de chuva que inicialmente caiu em Santa Cruz do Sul, a 155 quilômetros da capital gaúcha rapidamente se espalhou pelas outras regiões do estado deixando um rastro de destruição. 

“A gente passou por três correntezas. A última era muito forte, ficava puxando. Nós pegamos um barco e uma carona no caminhão do Exército para chegar à casa da minha avó”, conta um garoto de seis anos. A professora Carmem Lúcia Almeida escuta atenta os alunos. Essa é a primeira vez que eles se reúnem depois de dois meses sem aulas presenciais na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) La Hire Guerra, em Eldorado do Sul. A cidade, que fica na região metropolitana de Porto Alegre (RS), foi uma das mais atingidas pelas inundações. Segundo o Mapa Único do Plano Rio Grande (MUP), elaborado pelo governo estadual, 80% dos 42 mil habitantes foram afetados.  

Das 19 escolas municipais de Eldorado do Sul, 14 foram impactadas pela enchente. Uma delas é a EMEF La Hire Guerra, que ficou quase 30 dias alagada. A biblioteca nova, que ainda não tinha sido inaugurada, todos os equipamentos do laboratório de informática, os mantimentos e o mobiliário do refeitório, a sala dos professores e a sala de recursos multifuncionais (SRM) todos esses espaços foram danificados. A escola fica no bairro Sans Souci, que é próximo do lago Guaíba. A diretora Luciane Souza Lentino conta que algumas ruas do entorno já foram alagadas em outros momentos, mas que a água nunca tinha entrado na escola. 

O início da limpeza aconteceu no dia 4 de junho, com apoio voluntário de professores e funcionários da escola e de um grupo de pessoas que cumpre pena em regime semiaberto. Depois do mutirão, eles conseguiram recuperar algumas mesas e cadeiras de plástico, prateleiras de ferro e materiais didáticos que estavam em prateleiras altas. As geladeiras e uma máquina de lavar também puderam voltar a serem usadas após conserto. Luciane conta que o foco era recuperar pelo menos o prédio principal. A equipe gestora utilizou parte de um recurso que estava na conta escolar para refazer a instalação elétrica e pintar as paredes. Depois desse trabalho inicial, foi possível improvisar a sala dos professores, a secretaria, o refeitório e quatro salas de aula um grande esforço para retomar a rotina escolar dos 830 estudantes da educação infantil, ensino fundamental e ensino de jovens e adultos (EJA).  

Aulas em esquema de revezamento  

Com apenas quatro das salas em condições de uso, a EMEF La Hire Guerra precisou adotar um sistema de revezamento entre as turmas do ensino fundamental: uma vez por semana, o grupo de estudantes se reúne para aulas presenciais na escola e leva atividades para fazer em casa nos outros dias. Somente os alunos de EJA, no turno da noite, voltaram a frequentar o colégio todos os dias e conseguiram concluir o semestre.  

As atividades presenciais para as crianças da educação infantil ainda não foram retomadas. A previsão é de que isso ocorra em agosto, quando mais salas devem estar disponíveis. “Nosso foco agora é o acolhimento dos estudantes. Temos de escutá-los, principalmente na primeira semana. Depois, aos poucos, vamos retomando o conteúdo das aulas”, explica a diretora Luciene. 

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Carmem Lúcia Almeida, professora do primeiro ano do ensino fundamental, observa que os alunos têm muita necessidade de contar o que aconteceu, como foi o resgate e onde ficaram enquanto não podiam voltar para casa. “É diferente da pandemia, por exemplo, quando eu sabia que eles estavam em casa e tinham roupa e comida. Agora eles estão em um lugar no qual ainda não têm aquela sensação de lar e de conforto. É tudo improvisado”, afirma.  

A professora conta que a Secretaria Municipal de Educação (SME) e o Conselho Municipal de Educação estão assessorando a escola para recuperar o calendário e dar seguimento ao ano letivo. Para dar conta dos 200 dias letivos e 800 horas de aula do ano [como determina a legislação brasileira], o município decidiu não ter o recesso escolar de julho e vai seguir com as aulas até 23 de dezembro. Os estudantes também terão aulas aos sábados, intercalando entre o modelo presencial e tarefas para fazer em casa. “Nós temos de elencar as bases de conhecimento que cada ano precisa ter para avançar e trabalhar nessas prioridades”, explica Carmem.  

Na rede municipal de Eldorado do Sul, das 14 escolas atingidas, somente uma ainda não reabriu as portas. Esses alunos estão estudando, provisoriamente, em outra instituição de ensino. O município possui seis escolas estaduais, abrangendo 1.570 estudantes de ensino fundamental e médio. Quatro voltaram às aulas presenciais e duas estão revezando as turmas. A previsão da Secretaria de Educação do Estado é de que todas as instituições estejam com aulas presenciais até 5 de agosto, quando começa o segundo semestre letivo. 

O desafio de retomar o AEE  

Quando a água sobe 1,3 metro, como foi o caso na EMEF La Hire Guerra, a perda de livros, materiais didáticos, equipamentos eletrônicos e mobiliário é uma realidade difícil de encarar. Ainda mais quando se trata de itens especiais, muitas vezes adquiridos com dificuldade ou desenvolvidos para uma necessidade específica, caso dos recursos que compõem a SRM. Na La Hire Guerra, esse foi um dos espaços mais atingidos pela enchente. Entre os equipamentos que a equipe conseguiu salvar, estão duas máquinas de escrever Braille, que, após passarem por limpeza e lubrificação, voltaram a funcionar, mas não tão bem quanto antes.  

Jacqueline Nogueira Wuerdig, professora do atendimento educacional especializado (AEE), conta que, por enquanto, está realizando as atividades de maneira improvisada em um contêiner vazio, instalado no pátio da escola. Há momentos, porém, em que nem mesmo esse espaço improvisado pode ser utilizado, porque a rede elétrica ainda não está funcionando e o contêiner fica escuro nos dias nublados. Nessas ocasiões, ela precisa trabalhar com os estudantes nas salas comuns, durante as aulas regulares, conforme a necessidade do aluno. 

Antes, 46 pessoas com deficiência frequentavam a escola em turmas da educação infantil ao 9º ano do ensino fundamental. Atualmente, esse número é de 30. “A maioria retornou, mas estamos realizando uma busca ativa para orientar os que continuam fora. Uma parte desse público pediu transferência para escolas de outros municípios”, explica Jacqueline. 

É o caso dos gêmeos Emily e Christian, de quatro anos, filhos de Neci Nunes. A família teve de se mudar para a cidade de Guaíba, e uma das preocupações é com a adaptação na nova escola. Os irmãos haviam ingressado na EMEF La Hire Guerra no início do ano e estavam com uma rotina estabelecida. A apreensão de Neci é principalmente com Emily, uma menina com transtorno do espectro do autismo (TEA) que frequentava o AEE no antigo colégio. “Em pouco tempo eu vi a evolução. Ela aprendeu a dar tchau e está mais carinhosa. Sempre tinha uma monitora com ela”, conta a mãe. 

Frente a tantas mudanças, com estudantes saindo e outros chegando, Jacqueline tem buscado conhecer a realidade atual e as necessidades dos estudantes, além de avaliar como está o aprendizado de cada um nesse retorno. Ela conta que os alunos têm demonstrado curiosidade sobre como ficou a escola, querem compartilhar o que viveram e sentem saudades da “sala da profe Jacque”, a sala de recursos multifuncionais. “Era o porto seguro deles dentro da escola”, afirma. 

Jacqueline faz parte de uma equipe que tem 11 agentes educacionais (oito que atuam como profissionais de apoio escolar e se alternam nos turnos da manhã e da tarde e três estagiários) que acompanham e auxiliam os estudantes com deficiência de acordo com a necessidade de cada um. Com a escola em reforma, esse acompanhamento se tornou ainda mais necessário para não colocar nenhum aluno em risco. A professora dá o exemplo de um estudante com deficiência visual, de 13 anos, que tinha autonomia para circular pela escola e ir ao banheiro, por exemplo, mas que agora demanda auxílio para a locomoção, uma vez que o espaço está em obras.  

Para o estudante, porém, a perda mais significativa foi do computador da SRM, cujos arquivos continham textos e histórias escritos por ele. Jacqueline explica que o aluno tinha aprendido a digitar no teclado adaptado para Braille e utilizava o sistema operacional DOSVOX para realizar tarefas. Tudo foi perdido com a água. O desafio, agora, é planejar atividades que possam ser feitas sem a necessidade de tecnologia para garantir a aprendizagem dos estudantes até que a escola consiga recompor todos os recursos. 

A escola pretende aproveitar a reforma forçada para melhorar a acessibilidade. As turmas que têm alunos com dificuldade de mobilidade vão mudar para salas no térreo. A nova SRM vai ficar mais próxima dos banheiros, em um prédio que já possui rampa. Também vão colocar uma porta mais acessível. 

A La Hire Guerra conta com o apoio da ONG Parceiros Voluntários para a reforma. A instituição ficou responsável pela pintura dos prédios e do muro, instalação elétrica e colocação de divisórias em algumas salas. A ONG também disponibilizou kits com material escolar para todos os alunos. A escola já recebeu os R$ 7,6 mil que o Ministério da Educação (MEC) transferiu diretamente para 6.067 escolas gaúchas, por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) Emergencial. Mas a expectativa está nos R$72 milhões que o governo federal repassou para o Fundo Nacional de Educação, por meio da Medida Provisória Nº 1.242. “Espero que até o final de julho chegue o recurso federal para que a gente possa reformar as escolas e atender os alunos na capacidade total”, afirma o secretário de Educação de Eldorado do Sul, João Gomes. Até o momento, João conta que o município já investiu cerca de R$ 500 mil em reparos de instituições de ensino após a enchente. Logo após a entrevista, Gelson Antunes reassumiu a pasta na cidade. 

Quem acolhe o professor? 

Fazia quatro meses que a professora Carmem tinha mudado para Eldorado do Sul quando as águas invadiram seu novo lar. Ela, o marido e os dois filhos adolescentes passaram 22 dias na casa de amigos em Guaíba, cidade vizinha que também fica na região metropolitana de Porto Alegre, até conseguir voltar para casa. Mas os transtornos não pararam por aí: as duas escolas nas quais Carmem trabalha alagaram. Uma é a EMEF La Hire Guerra. A outra é a Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Professora Aglae Kehl, em Guaíba, na qual é vice-diretora no turno da noite. Assim como Carmem, outros educadores tiveram de lidar com a perda, mesmo que provisória, não só da casa, mas também do trabalho.  

Luciane, a diretora da La Hire Guerra, ainda não conseguiu voltar para casa. No início de maio, ela, o marido e outras seis pessoas passaram seis dias dentro de um carro na BR-116, depois de saírem de casa por causa da enchente. Outras dezenas de moradores da região estavam na mesma estrada fugindo das inundações. Muitos faziam parte da comunidade escolar e passaram fome, frio e medo até serem socorridos.    

Quando a água baixou e puderam entrar na escola novamente, Carmem e Luciane se juntaram ao primeiro mutirão voluntário de professores e funcionários para limpar os espaços. Desde então, o foco da diretora é na recuperação da La Hire Guerra. Ela ainda está calculando os prejuízos da sua casa perdeu móveis, portas e janelas. Enquanto a casa não é reformada, ela e o marido estão em um apartamento alugado perto da escola.

Carmem dividiu os esforços entre limpar e reorganizar o seu lar e a La Hire Guerra. A outra escola na qual trabalha, Aglae Khel, não permitiu mutirões de voluntários. A recomendação da rede estadual era de que a limpeza fosse feita por uma empresa especializada para evitar contaminação por doenças. Enquanto as aulas não retornavam presencialmente na Aglae, a professora estava preocupada em preparar atividades remotamente para que os alunos do EJA pudessem concluir o semestre e se formar.  

“É um período difícil. Eu tenho de dar o suporte para os meus filhos, mas também tenho de acolher e auxiliar nas escolas”, conta Carmem. Quando perguntada sobre quem acolhe o professor, ela cita a rede de apoio criada entre os colegas: “O dia que tu está mais forte, ajuda o colega. Quando tu está mais triste, chorosa, ele te acolhe”, afirma. O apoio entre a equipe escolar acontece em forma de escuta, abraço, arrecadação de doações e, até mesmo pela oferta da própria casa como abrigo.

Acolhimento virou a palavra do momento nas escolas gaúchas, tamanha a necessidade de elaborar o que estudantes e professores viveram. A tragédia é coletiva. Entre tantas dúvidas e angústias, a única certeza é de que a recuperação das escolas vai ser um processo difícil, no qual profissionais da educação e poder público precisarão trabalhar juntos para assegurar a retomada das aulas e da aprendizagem para todas as crianças, adolescentes e adultos.  

 

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