O papel da defensoria pública no acesso à justiça

Em entrevista, a defensora Renata Tibyriçá explica quem tem direito à assistência jurídica gratuita e dá exemplos de como o órgão paulista atua para promover a inclusão escolar

Foto do rosto da defensora pública Renata Tibyriçá. Ela é uma mulher branca, com cabelos longos na cor castanho. Ao fundo, é possível ver um monitor com a imagem do brasão do estado de São Paulo e o texto “Defensoria Pública do Estado de São Paulo”. Fim da descrição.
“A defensoria tem como missão primordial atuar na defesa das pessoas mais vulneráveis, que não têm condições de pagar por esse serviço jurídico. Essa é a nossa atribuição”, afirma a defensora. Crédito: Acervo Pessoal/Renata Tibyriçá

O contato com centenas de mulheres, especialmente mães que buscam serviços públicos para seus filhos com transtorno do espectro do autismo (TEA), mobilizou a defensora pública Renata Flores Tibyriçá a construir uma sólida formação nos campos da educação e da defesa do direito à educação das pessoas com deficiência.  

Especialista em direitos humanos, com mestrado e doutorado em distúrbios do desenvolvimento e pós-doutorado em educação especial, Renata é uma liderança na luta pela inclusão no Brasil. Ela teve papel relevante para a aprovação da Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012), que trata da Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com TEA. 

Ao resgatar sua trajetória, ela lembra que a diversidade se fez presente no convívio com amigos e familiares desde cedo, assim como o interesse por temas sociais. Na adolescência, foi voluntária em um projeto de alfabetização em uma comunidade na zona sul de São Paulo. Já adulta, descobriu uma doença rara, e o diagnóstico lhe permitiu identificar a origem das dores crônicas que sente desde os 12 anos de idade.   

O desejo de atuar como defensora pública já estava presente quando Renata optou pelo curso de Direito no vestibular. No início da carreira, teve uma rápida passagem pelo Tribunal Regional Federal (TRF). Depois, em 2004, ingressou na Procuradoria Geral do Estado (PGE), onde trabalhou na assistência judiciária a pessoas de baixa renda.  

Em 2006, dos 351 procuradores da PGE, apenas 87 optaram por trabalhar na recém-criada Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Renata estava nesse pequeno grupo. Há 18 anos atuando no órgão, ela é coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado dos Direitos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência. Também lidera a Comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência e integra a Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (Anadep).  

A seguir, em entrevista ao DIVERSA, Renata explica quem tem direito de solicitar assistência jurídica gratuita à defensoria, traz exemplos de como os defensores de São Paulo têm atuado para garantir os recursos necessários à inclusão escolar, defende a importância do planejamento e da avaliação pedagógica feita pela própria escola e avalia o marco legal brasileiro. 

O que fazer quando os direitos das pessoas com deficiência não são efetivados?  

Em primeiro lugar, as pessoas precisam acreditar que elas têm poder para fazer algo por si mesmas. Quando temos uma sociedade civil organizada e de fato mobilizada, que sabe exatamente o que está buscando, conseguimos mudar a realidade.  

Agora, em um caso individual, em que o problema está dentro da escola, eu peço que a família procure a diretora ou o diretor, a autoridade máxima daquele local. Mas, se a gestão escolar não resolver, o passo seguinte é falar com a diretoria de ensino ou, em cidades menores, a própria secretaria municipal de Educação.  

Se a causa é coletiva, oriento as mães a constituírem um grupo de pessoas que tenham as mesmas demandas e acionar o poder público, agendar uma reunião na secretaria e conversar. Normalmente, quando faltam apoios, não se trata de um caso isolado. É um problema ligado à própria política local ou à sua implementação.  

Mas, se ainda assim isso não resolver, é necessário buscar o apoio da defensoria ou do ministério público. A defensoria tem como missão primordial atuar na defesa das pessoas mais vulneráveis, que não têm condições de pagar por esse serviço jurídico. Essa é a nossa atribuição. 

O que diferencia as atuações da defensoria e do ministério público? Em quais casos cada órgão pode ser acionado? 

O ministério público defende os interesses da sociedade, de maneira geral em ações coletivas. No entanto, há momentos em que as atribuições do ministério público e da defensoria se sobrepõem. É o caso da educação, em que há convergências. Isso porque o primeiro atua para todos, para a coletividade. E nós lidamos com a parcela da população mais vulnerável, que está contida dentro desse todo. Por isso, muitas vezes trabalhamos em conjunto para garantir o acesso a todas as pessoas. 

Uma diferença importante é que, na defensoria, agimos tanto em causas individuais quanto coletivas para um grupo específico: pessoas em situação de vulnerabilidade. Por isso, usamos o recorte de renda. No estado de São Paulo, a assistência jurídica gratuita é realizada para pessoas com deficiência com renda familiar de até quatro salários mínimos. Para a população em geral, o corte é de até três salários [cada estado tem autonomia para estabelecer seus critérios de renda].  

De forma bem simplificada, podemos dizer que uma mãe, ao ver o direito do seu filho negado, pode acionar a defensoria pública. Uma rede de mães, de um determinado território e que percebe uma série de violações, deve procurar o ministério público ou a defensoria. 

Vejamos outro exemplo: um coletivo de mães pode acionar o ministério público para cobrar a efetivação de direitos em uma escola privada. Mas dificilmente elas serão público-alvo da defensoria [devido ao poder aquisitivo dessas famílias]. Agora, nós [defensores] podemos atender uma rede de mães de uma escola pública e até atuar conjuntamente com o ministério público. 

Quando a judicialização é um caminho para buscar a inclusão escolar? 

Precisamos lutar para que a escola mude. Na defensoria, a primeira coisa que fazemos é buscar entender o que está acontecendo. Temos orientado não só as famílias, mas também outros defensores a solicitar que a escola envie — via ofício — a avaliação pedagógica inicial, o estudo de caso, o plano de atendimento educacional especializado (AEE), o plano educacional individualizado (PEI), o plano de desenvolvimento individual (PDI) ou qualquer outra documentação similar para analisar o que de fato está faltando. Porque, às vezes, a solicitação foi feita [pela escola], mas aquele apoio não chegou.  

A defensoria vai atuar quando houver a confirmação de que existe uma omissão por parte do poder público em cumprir com alguma de suas atribuições.  

Qual é a importância dos planos de planejamento educativos? 

É impossível identificar os apoios necessários [para os estudantes] sem os planos educativos — seja qual for o nome que se dê a eles: plano do AEE, PEI, PDI. É preciso planejamento. Caso contrário, seria a mesma coisa que comprar materiais de construção antes de planejar a reforma de uma casa.  

Por que vou pedir um profissional de apoio escolar se eu nem avaliei, nem sei se o aluno realmente precisa? Será que faltam materiais, tecnologia assistiva ou outro tipo de abordagem na sala de aula? Será que ele enfrenta uma barreira atitudinal? Precisamos entender o que está impactando o aprendizado. 

Quando solicitamos o plano [via ofício], a escola se mobiliza e chama a família para conversar, planejar e ver o que é possível fazer. E isso já traz um impacto positivo. Muitas vezes, a questão é resolvida sem a nossa intervenção. 

Agora, se a escola fez a solicitação e a rede de ensino não tem aquele profissional ou não mandou o material; se o pedido foi feito, já se passaram meses e ele não foi atendido, então esse é um caso para judicializar, pois existe uma omissão por parte do poder público. 

+ Leia mais: Plano de AEE, PEI ou PDI? Veja a diferença entre eles  

Quais demandas as mães trazem em relação à inclusão escolar de seus filhos? 

Chegam até nós questões individuais e específicas: ‘Meu filho precisa de uma determinada adaptação, de uma tecnologia assistiva, de um profissional de apoio escolar…’. Nosso desafio é sair da lógica de que basta ter esse profissional e de que esse é o único ou o mais importante suporte para a inclusão.  

Temos de pensar que há outros tantos apoios que podem ser necessários, que não estão sendo oferecidos e que, muitas vezes, as mães não conseguem identificar exatamente o que está faltando. Elas percebem, sim, que seu filho não está acompanhando a turma ou que há questões de comportamento dentro da escola. Elas relatam isso. 

Quem define de qual apoio cada estudante precisa na escola? 

Buscamos fugir da ideia de que cabe ao médico, que está fora [da escola], dizer o que é necessário. Temos procurado não basear nossa solicitação apenas no laudo e considerar outros documentos, principalmente pedagógicos, elaborados pelos educadores. Porém, é preciso reconhecer situações em que a própria escola talvez não tenha pensado sobre um determinado ponto. Envolve diálogo.  

É bastante comum uma mãe solicitar um profissional de apoio escolar porque “ouviu dizer” que seu filho precisa ou que ele tem direito porque o filho de outra pessoa também tem. Às vezes, é difícil para elas identificarem qual apoio está faltando e compreenderem que a decisão é [tomada] caso a caso.  

Por isso, a importância da avaliação do que aquela criança precisa. Há situações em que o profissional de apoio escolar não é o mais indicado. Há outras em que, de fato, as mães compartilham uma situação bem clara: ‘Olha, meu filho tem dificuldade de locomoção, comunicação, higiene ou alimentação’, ou ‘Ele não consegue se organizar dentro da sala de aula’. Às vezes, a própria escola nos informa que a solicitação foi feita [para a diretoria de ensino ou à secretaria], mas não chegou. Então, a defensoria faz o pedido. 

E também acontece de a família achar que precisa [de um determinado apoio] e a escola considerar que não. Essas são situações um pouco mais complexas…  

Na sua avaliação, quando o assunto é inclusão escolar, as defensorias no país têm pautado sua atuação baseada no modelo social da deficiência?   

Há muita diferença nos modos como as demandas são analisadas e como elas resultam em judicialização. A forma como cada defensor atua é muito diversa, o que decorre especialmente da autonomia funcional. Mas esse não é um desafio apenas para as defensorias públicas, isso ocorre em outras instituições que defendem os direitos da população como um todo. 

Precisamos nos apropriar do modelo social da deficiência para ter encaminhamentos e decisões [judiciais] mais alinhadas com aquilo que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência determina. Ela vai completar 20 anos daqui a pouco… 

A legislação atual dificulta essa compreensão? 

Há muito desconhecimento sobre o direito à educação e todas as suas características. A nossa legislação é uma colcha de retalhos. Temos a Convenção, nosso principal marco legal, a Constituição e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Além desses, há a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI) que é um documento e as notas técnicas, que não têm força legal. Temos ainda as resoluções que são normas infralegais. E alguns decretos, como o nº 7.611/2011, que trata da oferta do atendimento educacional especializado (AEE).  

Portanto, muita coisa não está na lei, e isso traz uma fragilidade. Para os defensores públicos, que são operadores da área jurídica, é difícil encontrar essas normas. Não precisamos provar para o juiz o que está na lei, mas o que está em uma norma infralegal, sim. No caso de um documento, como o da PNEEPEI, dificilmente ele será mencionado em uma ação se o defensor não conhecer esse texto.  

Do meu ponto de vista, isso tem a ver com o fato de não termos essas informações em um único marco legal. Essa é uma importante diferença entre Brasil e Portugal. Na minha tese de doutorado, comparei as medidas de apoio voltadas às pessoas com autismo na legislação dos dois países. Em Portugal, há uma norma única na qual estão todas as informações. No Brasil, não.  

Mas há outros exemplos. Durante o doutorado, entrevistei gestores de diversos níveis: da escola, da diretoria de ensino e das redes estadual e municipal de ensino. Entre eles, também percebemos diferenças na compreensão das normas. Se é difícil para quem atua na educação, para quem é do direito é impossível.  

E há outro elemento: os defensores têm independência funcional, assim como os promotores de justiça. Então, por mais formações e orientações às quais eles tenham acesso, cabe a cada um avaliar, no caso concreto, a medida adequada a ser tomada. Não podemos dizer que só pode fazer determinada solicitação deste ou daquele modo.  

Se tivéssemos as informações sobre os apoios reunidas e detalhadas em uma única normativa, ou pelo menos em um número menor de normas, seria um pouco mais fácil a sua compreensão e aplicação. 

Como as famílias podem receber assistência jurídica gratuita se não houver defensoria pública no município onde moram? 

Temos uma emenda constitucional que determina a existência de defensorias em todas as comarcas. Mas isso ainda não é uma realidade no Brasil. Cada estado organiza seu atendimento e tem suas próprias características.  

Aqui em São Paulo temos unidades da defensoria nas maiores e mais vulneráveis cidades do estado. Para aquelas cidades onde não há unidade, temos um convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Esse serviço é realizado por advogados, de forma suplementar ao nosso trabalho. 

Em Atibaia (SP), por exemplo, não tem unidade da defensoria pública. Mas tem a casa do advogado da OAB, que oferece assistência jurídica gratuita. Esse atendimento é pago pela defensoria pública do estado e fiscalizado por uma comissão paritária entre defensoria e OAB. 

Há defensores em número suficiente no estado de São Paulo? 

Hoje nós temos mais de 800 defensores públicos no estado e quase dois mil promotores. O ideal seria ter um defensor em cada local onde há um promotor. Por quê? Precisamos ter essa paridade, não só por conta dos processos criminais nos quais o ministério público atua na acusação e a defensoria na defesa, mas no cível também, para garantirmos o acesso à justiça da população necessitada.  

Temos ampliado o quadro aos poucos. De todo modo, mais que dobramos de tamanho em 18 anos. Quando a defensoria começou, em 2006, foram previstos 400 cargos. Ao longo da história, conseguimos ampliar. Mas ainda falta. Em algum momento estaremos em todas as comarcas, conforme determina a Emenda Constitucional 4/2014. Não sei quando exatamente isso vai acontecer, mas o prazo previsto na Constituição já passou. Em maio, o governo federal lançou o Plano Nacional Defensoria em Todos os Cantos, que é um programa do Ministério da Justiça para ampliar o acesso à justiça em todo o Brasil.  

Qual é a importância da defensoria pública para a sociedade? 

É justamente o acesso à justiça que não é sinônimo de acesso ao Judiciário. Eu posso encaminhar um ofício e, com isso, promover a solução de um problema sem necessariamente entrar com uma ação judicial, sem envolver o Judiciário na história. 

Recentemente, três mães reclamaram que seus filhos estavam fora da escola por não terem nenhum tipo de apoio. Mandamos um ofício; em menos de um mês foi resolvido, e eles voltaram à escola. Não precisou de uma ação judicial, o que é excelente. Em outras situações, quando não há a possibilidade de solução extrajudicial, ingressamos com ação judicial. 

+ Leia mais: Saiba o que é e como acessar o BPC  

Deixe um comentário