Mudanças no Fundeb ampliarão os recursos para a educação especial?

Especialistas celebram ampliação do fator de ponderação da modalidade, mas ressaltam que bom uso do dinheiro passa por decisão política sobre o que é ou não prioritário

Este ano, o valor pago pelas matrículas dos estudantes público-alvo da educação especial no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) aumentou: pela primeira vez desde 2007, quando o fundo foi implementado (portanto 17 anos), o fator de ponderação para esses alunos passou de 1,20 para 1,40.  

Isso significa que, para cada matrícula de estudante da educação especial, as redes de ensino recebem 40% a mais do que o valor pago por matrícula nos anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano) em escolas urbanas, que é adotado como coeficiente de referência pelo Fundeb. 

Mas a mudança do fator de ponderação para a educação especial vai impactar positivamente a oferta da modalidade? Haverá mais dinheiro para atender os estudantes, melhorar a qualidade do ensino e fortalecer a inclusão? A resposta é: depende. E para entender o porquê, é preciso compreender como o Fundeb funciona. 

O que é o Fundeb 

O fundo é a principal fonte de recursos para a educação básica no país e funciona por meio da redistribuição do dinheiro arrecadado pelos estados e municípios de acordo com o número de matrículas. Os valores pagos mudam todos os anos e variam de acordo com a etapa e a modalidade de ensino, conforme definido em portaria pelo governo federal, com base nas estimativas de arrecadação.  

O Fundeb também estabelece um valor mínimo por aluno, a fim de garantir um patamar básico de financiamento em todo o país. Neste ano, ele foi fixado em R$ 5.356,57. Nos estados onde a arrecadação não é suficiente para atingir esse mínimo, a União paga uma complementação para assegurar o piso. Por isso, dependendo da arrecadação e da necessidade ou não de complementação, os valores pagos pelo Fundeb aos estados e municípios são diferentes. 

Por exemplo: em 2024, no estado de São Paulo, cada matrícula de ensino fundamental em escola pública urbana vale R$ 5.891,64. Na educação especial, o valor pago no estado é de R$ 8.248,30. Em contrapartida, no Amapá, os valores são, respectivamente, R$ 7.838,00 e R$ 10.973,21. 

Além do fator de ponderação de 1,40, o Fundeb prevê o financiamento da dupla matrícula para os estudantes público-alvo da educação especial que frequentam o atendimento educacional especializado (AEE). Quer dizer, o repasse anual é o resultado da soma do valor da matrícula principal e do AEE. Em São Paulo, por exemplo, o valor anual nos anos iniciais na zona urbana é de R$ 5.891,94, que deve ser somado ao valor de R$ 8.248,30 pela matrícula no AEE, chegando a R$ 14.140,24. No Amapá, com a soma, o montante fica em R$ 18.811,21.  

Redistribuição de recursos

Um primeiro aspecto a se considerar é que o aumento do fator de ponderação para uma modalidade (educação especial ou outra) não significa injeção de recursos adicionais no Fundeb, além do montante total calculado para o ano.  

Neste ano, as receitas do Fundeb estão estimadas em R$ 289,2 bilhões. Desse total, cerca de R$ 243 bilhões vêm da contribuição de estados, Distrito Federal e municípios ao fundo. Do restante, R$ 18,2 bilhões correspondem à complementação da União aos estados onde o valor mínimo por aluno não é atingido, e R$ 3,64 bilhões referem-se à complementação para os estados e municípios que melhoraram os indicadores de atendimento e aprendizagem, com redução de desigualdades.  

“A definição dos fatores de ponderação representa a redistribuição dos recursos disponíveis de forma diferente. É como se fosse um lençol curto que você puxa para um lado e para o outro. Você cobre a cabeça e descobre os pés. É um pouco essa, a lógica”, esclarece o presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alessio Costa Lima. 

O professor José Marcelino de Rezende Pinto, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP), aprofunda a explicação: “Se um município ampliou a quantidade de matrículas da educação especial, significa que ele vai receber um pouquinho mais em relação aos outros”, detalha o pesquisador.  “Mas, para um município receber mais, outras cidades ou a rede estadual vão receber menos.” 

Apesar disso, o aumento do fator de ponderação para uma modalidade, como aconteceu com a educação especial neste ano, tem um efeito simbólico relevante, analisa Binho Marques, consultor educacional e ex-secretário de Articulação com os Sistemas de Ensino do Ministério da Educação (MEC), entre 2012 e 2016.  

“Quando o prefeito vê que entra mais recursos com o aluno da educação especial, ele vai se preocupar em ampliar a quantidade de matrículas desses estudantes”, afirma Marques. Por isso, ele acredita que o aumento do fator de ponderação em 2024 poderá contribuir para estimular as matrículas de crianças e jovens com deficiência, transtorno do espectro do autismo (TEA) e superdotação/altas habilidades.  

Nalú Farenzena, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-presidenta da  Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), tem uma visão semelhante. “A matrícula é o fator que determina o coeficiente de recebimento de recursos de um ente da Federação. Quanto mais matrículas, mais recursos, e, por isso, ponderação maior ou dupla contagem são fatores que podem incentivar o atendimento de uma etapa, modalidade, turno parcial ou integral etc.”, explica.

Para ela, a educação especial tem relativa prioridade no Fundeb, seja pelos fatores de ponderação de matrícula, seja pelo financiamento da matrícula dupla quando ocorre o AEE.  

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Recursos “não carimbados”

Há outro aspecto a ser levado em conta: pelas regras do Fundeb, o montante calculado com base nas matrículas dos estudantes público-alvo da educação especial, considerando o fator de ponderação e a dupla matrícula (turma comum e AEE), não precisa obrigatoriamente ser usado apenas na educação especial.  

O gestor pode destinar os recursos às ações que considerar mais prioritárias, desde que respeite a determinação legal de destinar 70% do valor recebido para a folha de pagamento dos profissionais da educação.  

“No Fundeb, não existem recursos carimbados, com aplicação obrigatória nesta ou naquela etapa ou modalidade. Cada secretaria usa conforme o atendimento existente, as prioridades nacionais e locais da educação, as demandas, os apontamentos dos sistemas de controle e a política fiscal”, detalha Nalú. A única exceção, continua a professora da UFRGS, é que 50% da complementação paga pela União aos estados que não atingem o valor mínimo por aluno deve ser destinada à educação infantil e por decorrência aos estudantes da educação especial que estão nessa etapa de ensino. 

Essa liberdade é vista com bons olhos pelo presidente da Undime, que também é secretário de Educação de Ibaretama (CE). “O gestor precisa de autonomia para definir o que é mais urgente e prioritário, porque geralmente os investimentos são feitos em um ano e os recursos do Fundeb só chegam no ano seguinte”, explica Alessio, referindo-se à metodologia de cálculo do Fundeb, que usa como referência as matrículas do ano anterior. 

“Se em um município há um aumento grande das matrículas na educação especial, o gestor precisa criar condições para receber esses estudantes, como contratar professores. Mas os recursos referentes a essas matrículas só chegam no ano seguinte. O município e o estado precisam de autonomia para fazer essa gestão”, reforça ele. 

No entanto, este não é um ponto consensual entre especialistas em educação especial. Há pesquisadores, como Marcia Maurilio Souza, da Faculdade de Educação da USP, que defendem mais transparência na prestação de contas do dinheiro investido na educação especial (leia entrevista com a especialista). 

Atendimento x custo

O presidente da Undime também destaca que o aumento da ponderação é um reconhecimento da importância da modalidade, de suas características e necessidades. Alessio usa o exemplo da educação de jovens e adultos (EJA), que também teve aumento do fator de ponderação neste ano, para explicar o argumento. “O aluno de EJA sempre teve uma ponderação menor: era 0,8, ou seja, 20% menor do que o investimento no estudante dos anos iniciais do ensino fundamental. Era como se fosse uma subeducação”, explica ele. Neste ano, o fator de ponderação da EJA passou a ser 1,20. 

Porém, ao lado do efeito simbólico, existe o aspecto do custo efetivo para as redes oferecerem uma modalidade. “O custo para manter um aluno de EJA não é 20% menor do que para manter um estudante de turma do ensino regular. Pelo contrário, pode se tornar até mais caro, porque às vezes são turmas menores”, detalha Alessio. 

Na educação especial, o raciocínio é o mesmo. “As redes que, por iniciativa própria ou por demanda local mais acentuada, ampliam o atendimento de educação especial terão um custo a mais na manutenção.” Ampliar o atendimento significa contratar mais professores e profissionais de apoio quando necessário e investir em equipamentos e infraestrutura, entre outros pontos. “Se a rede de ensino adotar turmas do AEE no contraturno, isso implica na contratação de professores especializados para esses estudantes. Portanto, as redes que ampliam a matrícula do AEE terão inevitavelmente um aumento das despesas”, diz Alessio.   

O professor José Marcelino agrega outro ponto para efetivar uma educação inclusiva. “Na verdade, seria necessário fazer um conjunto de mudanças na escola. Uma delas é a redução do número de estudantes por turma para que a inclusão de fato aconteça. Outra seria a existência de uma equipe multiprofissional, com a presença de mais professores especializados na escola”, pontua o docente da USP.  

Se a infraestrutura das escolas já fosse pensada para atender todos os estudantes, seguindo conceitos de acessibilidade, também não seriam necessários investimentos extras para adaptá-la depois.  

Qual o custo real? 

Será que o valor pago por matrícula é suficiente para arcar com o custo de implementação da modalidade? 

Entre os especialistas e gestor ouvidos, o consenso é que o fator de ponderação de 1,40 não é suficiente, embora ele represente um avanço importante. “Estamos melhorando muito com o tempo. Os fatores de ponderação são importantes porque não é possível tratar todas as etapas e modalidades de maneira igual, então ele tenta compensar aquelas que são mais caras. Mas ainda assim ele não cobre os custos da educação especial”, analisa Binho Marques. 

Definir o custo de um estudante público-alvo da educação especial não é uma tarefa simples porque, como explica José Marcelino, muitas vezes o custo com a educação especial mistura-se a outros tipos de despesa.  

Por exemplo, em uma classe comum inclusiva, parte do gasto com o professor regente deveria ser computado como educação especial. Outro exemplo: o custo com professor do AEE fica “escondido” no orçamento, já que ele é incluído na folha de pagamento como professor concursado ou contratado, independentemente de sua função. “Os gastos são pouco discriminados, e não é fácil fazer isso, porque também é preciso considerar esse professor e analisar como se dá a inclusão, levando em conta a quantidade de estudantes que frequentam o AEE, os que só estão na sala comum etc.”, detalha José Marcelino.   

Uma iniciativa em andamento, de acordo com Nalú Farenzena, são estudos realizados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Fineduca e a Rede de Pesquisadoras/es sobre Financiamento da Educação Especial (Rede Fineesp). “Estamos buscando dar um passo a mais, propondo ponderações de matrículas tomando como referência o Custo Aluno Qualidade (CAQ)”, afirma Nalú. 

Outro caminho, sinalizado por Binho Marques, é calcular estimativas da diferença do percentual de custo adicional das diversas situações envolvidas na educação especial na perspectiva inclusiva, em vez de se pautar por uma lista de itens para a oferta de uma educação de qualidade. 

Marcia Maurilio Souza, por sua vez, traz outra perspectiva. Ela pondera que o financiamento não deve ser uma barreira para o acesso à educação, que é um direito de todas as pessoas. “Não se trata de um estudante mais caro, porque, se as redes de ensino investirem em formação continuada para que os profissionais desenvolvam estratégias de ensino-aprendizagem inclusivas, todos os estudantes se beneficiam, e esse ‘custo’ maior, que na verdade é para alguns, fica diluído nas despesas gerais da área. 

De qualquer maneira, Binho sinaliza para a importância de as secretarias de Educação buscarem meios de financiamento dentro dos próprios municípios ou estado. “Muitas vezes o secretário fica focado no Fundeb, mas existem outros recursos para a educação além do fundo, principalmente em municípios de grande porte, que recolhem um volume grande de ISS [Imposto sobre Serviços]”, alerta o consultor. 

O presidente da Undime concorda com essa colocação, mas chama a atenção para o fato de que esses municípios representam uma minoria no país. “O Fundeb é a principal fonte de recursos para a educação em mais de 80% dos municípios brasileiros. Para cidades com menos de 50 mil habitantes, o Fundeb pode chegar a quase 90% do recurso disponível para a educação, porque são municípios pequenos, com baixa arrecadação”, detalha Alessio Lima. 

 

 

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