Pessoas que atuam para defesa da educação inclusiva no país veem o decreto que define a nova política como segregador e inconstitucional
Foi em 2008 que o número de estudantes público-alvo da educação especial matriculados em ambientes inclusivos nas escolas comuns superou o de ambientes segregados em instituições especializadas, conforme Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC). Em 2020, o estudo mostrou que as matrículas deste público na escola comum superaram 90%.
Esse recente avanço da educação inclusiva no Brasil voltou a ser tema de discussão com o Decreto 10.502/20, aprovado pelo Presidente da República em 30 de setembro do ano passado, que institui uma nova Política Nacional de Educação Especial. Porém, desde sua elaboração, diversas organizações da sociedade civil, educadores e especialistas em educação manifestaram-se contra a nova política, por entenderem que a decisão retorna ao paradigma da segregação, ao prever o incentivo a escolas e classes especializadas para esse grupo.
Entendo pela inconstitucionalidade do Decreto e urgência da decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a eficácia do documento em decisão provisória. Devido à importância do tema, o Tribunal convocou uma audiência pública, que ocorrerá nos dias 23 e 24 de agosto, para debater a nova Política Nacional de Educação Especial. A Audiência Pública tem a função de levar informações e opiniões de especialistas sobre o tema aos juízes para pautar a decisão futura dos Ministros acerca da constitucionalidade ou não do decreto.
“A regra é clara”
Laís de Figueirêdo Lopes, advogada, mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e coordenadora da frente jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, explica que a segregação é algo do passado e vai contra os direitos adquiridos pelas pessoas com deficiência.
“Já houve um tempo em que segregar era legalmente permitido, acreditando-se que separar crianças e adolescentes com deficiência daqueles sem deficiência seria uma solução benéfica para a sociedade. Mas contra esta discriminação se lutou e hoje a segregação é vedada pelo sistema jurídico brasileiro, pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e pelas previsões da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.”
Para a advogada, que será uma das especialistas ouvidas na audiência pública, o país é um exemplo para o mundo em termos de práticas, legislação e políticas públicas de inclusão, não podendo admitir que a referência se inverta. Para isso, é necessário construir novos caminhos onde seja possível conciliar os desafios existentes e permitir que se continue avançando, ouvindo e dialogando com a sociedade.
“Políticas segregadoras e normas que imponham modelos separatistas no campo educacional não encontram amparo em nosso sistema jurídico. A regra é clara: educação só pode ser inclusiva.”
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Convívio com as diferenças
Para João Vitor, professor de educação física com síndrome de down que também será ouvido na audiência, a educação inclusiva é muito importante para as crianças com e sem deficiência, pois elas conseguem interagir, aprendendo assim a conviver com as diferenças no ambiente escolar, de trabalho e qualquer outro.
“Na escola comum, onde estudei todo o ensino básico, aprendi com as diferenças e pude contribuir para uma sociedade mais inclusiva. Minha formação universitária, por exemplo, se deve ao fato de ter sido realmente inserido na comunidade escolar.”
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O profissional de educação física acredita em impactos negativos caso haja uma decisão favorável para a validação do Decreto 10.502/20.
“A criança com deficiência ter que estudar em escola especial é algo negativo, pois será privada de oportunidades e do direito de conviver em sociedade, além de aumentar a possibilidade de ser discriminada pela população.”
Inclusão de fato
Na mesma linha de raciocínio, o especialista em acessibilidade e presidente da Associação Brasileira dos Surdos Oralizados (ABRASSO), Joaquim Barbosa, entende que a Política Nacional de Educação Especial não favorece as pessoas com deficiência.
“É um pesadelo e um retrocesso. Todo o trabalho e luta da pessoa com deficiência para ser membro ativo e participante da sociedade é devolvido para setorizações e entidades que nos afastam uns dos outros, e ainda tentam disfarçar-se de educação realmente inclusiva.”
Ele acrescenta que tirar a responsabilidade do Estado no cuidado da educação de todos, repassar para terceiros e segregar ainda mais a pessoa com deficiência em sua relação com os demais são ações que vão manter preconceitos, diferenças de tratamentos, aumentos de subemprego e desemprego para as pessoas com deficiência.
“A escola comum tem que ser para todos e não para pessoas “normais”. Essa normatização dos corpos só aumenta a desigualdade social, a exclusão e a criação de grupos que não se comunicam. Uma inclusão, de fato, destrói preconceitos, estigmas, paradigmas e ignorâncias.”
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Investimentos para educação de qualidade
Segundo Laís de Figueirêdo Lopes, um ensino inclusivo nas salas de aula só é possível caso haja investimento em educação.
“Para que o convívio com a diferença e a inclusão de fato aconteça em sala de aula na escola regular é preciso investimentos na educação de qualidade com os apoios necessários. Ir simplesmente contra esta conquista com alicerces tão duramente construídos ao longo dos últimos 30 anos é uma perda sem tamanho para milhões de pessoas com deficiência.”
Da mesma forma, Joaquim Barbosa argumenta que as escolas devem receber recursos, capacitação e estímulos para poder atender a toda a diversidade. Para ele, uma inclusão real depende das quebras de barreiras, algo que não pode ser colocado como responsabilidade do estudante público-alvo da educação especial, mas sim da comunidade escolar e de toda a sociedade.
“Não se deve dizer que pessoas com deficiência “atrapalham” as pessoas sem deficiência. São as barreiras estruturais, comunicacionais, pedagógicas e atitudinais que inviabilizam a inclusão escolar.”
Educação bilíngue de surdos
Outro ponto de grande discussão que está previsto na nova Política Nacional de Educação Especial é a educação bilíngue para surdos e a criação de escolas e classes especializadas para esse público. Apesar do decreto estar suspenso, o tema é um do mais debatidos, pois o Congresso Nacional aprovou uma alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, por meio da Lei Federal 14.191, sancionada em 2021, incluindo a educação bilíngue de surdos como uma modalidade de ensino apartada da educação especial.
Especialistas na área entendem que a nova lei incentiva ainda mais a segregação de pessoas surdas, surdocegas, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com múltiplas deficiências, por priorizar um modelo educativo em que pessoas estudem em instituições especializadas.
Joaquim Barbosa, surdo de nascença implantado bilateral bilíngue, afirma que o ensino bilíngue para surdos tem êxito somente na escola comum.
“A educação bilíngue para funcionar deveria ser inserida na educação inclusiva, onde todos, surdos e ouvintes aprendem Libras, estudam em Libras e português.”
Segundo ele, não há profissionais qualificados suficientes para realizar uma educação bilíngue de fato em todo o país, mas, se as professoras e professores do ensino regular tivessem acesso a uma formação continuada em Libras, isso seria mais rápido de acontecer.
“Surdos e ouvintes se relacionarão mais podendo conhecer e saber da cultura de um e do outro. Sendo assim, o surdo não dependerá de intérprete para se comunicar, pois os ouvintes já estarão imersos nessa comunicação.”
O tema deve ser bastante abordado na audiência pública no STF, uma vez que a decisão sobre o decreto pode se tornar precedente para uma eventual futura decisão do Supremo sobre a nova lei aprovada pelo Congresso.
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