Escuta, diálogo e multiplicidade de vozes: premissas de uma gestão democrática
Quando a escola incentiva uma ampla participação, as responsabilidades são partilhadas, as soluções são construídas coletivamente e todos se sentem pertencentes
Promover a participação de todos os segmentos que compõem a comunidade escolar — estudantes, professores, funcionários e familiares — para o desenvolvimento de uma proposta educacional alinhada às demandas de cada comunidade visando o desenvolvimento de práticas pedagógicas adequadas às necessidades dos alunos e à construção de uma cidadania ativa e participante. Essa pode ser considerada a síntese da visão de uma gestão democrática nas escolas, cujo início do debate remonta à pressão da sociedade civil pela redemocratização do país, no final dos anos 1970, e que aparece expressa em documentos como a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Segundo dados do Censo Escolar de 2022, 73,5% das escolas de ensino fundamental do país possuem conselhos escolares. Já as associações de pais e mestres estão presentes em 32% dos estabelecimentos dedicados a este segmento. E somente 14,5% das unidades escolares contam com grêmios estudantis. Os números do ensino médio são um pouco melhores: nessa etapa, 85% das unidades escolares contam com conselho, 41% com associações pais e mestres e 53% com grêmios estudantis.
Embora a simples presença de órgãos colegiados de representação não signifique uma gestão democrática efetiva, sem eles a prática torna-se praticamente inviável. Para Maura Barbosa, coordenadora pedagógica da Roda Educativa (antiga Comunidade Educativa Cedac), somente a prática da escuta e da discussão periódica das questões presentes no cotidiano escolar permitem a instauração de uma gestão democrática. “Esses são espaços de vivência da cidadania. Sem eles, não é possível falar de uma escola democrática.”
Vitor Paro, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar (Gepae), destaca que, para uma vivência democrática, a equipe gestora precisa abrir mão de uma postura de “dona” da escola para assumir outra, na qual as decisões sejam realizadas coletivamente. “Estamos acostumados com o senso comum nos dizendo que alguém administra alguém, que todos precisam ter um chefe. Esse pensamento tem um viés político autoritário”, diz. “Eu costumo definir a administração escolar como mediação.”
Em um modelo de participação ativa, a convivência precisa ser construída de maneira a incentivar o respeito às diferenças, uma vez que é necessário ouvir, compreender e negociar as demandas de todos. Esse tipo de ambiente é a base para a efetivação de uma educação inclusiva, na qual todos tenham direito à educação, independentemente de suas diversidades étnicas, sociais, culturais, intelectuais, físicas, sensoriais e de gênero.
Sendo assim, os estudantes com deficiência também devem ser estimulados a ter uma presença ativa em todas as instâncias e espaços de participação criados dentro das escolas. Retirá-los desse processo é uma forma de capacitismo (leia reportagem que explica o que é este conceito e sugere estratégias para combatê-lo). “Falar de democratização é falar de direito e de equidade. A escola não pode parar na matrícula das pessoas com deficiência. É necessário ir além do acesso [à educação] e pensar em qual trabalho deve ser feito para que todos se sintam pertencentes e tenham voz”, afirma Maura.
“Todos e cada um têm o direito de se expressar e de ser ouvido. Esses são princípios básicos para uma escola democrática e inclusiva”, completa Deigles Amaro, especialista em gestão educacional do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). “Para que isso ocorra, gestores e professores precisam eliminar barreiras para oferecer a crianças, jovens e adultos com deficiência acesso a maneiras diversas de expressão.”
Decisões coletivas para gerar corresponsabilização
Em 2012, quando assumiu a coordenação pedagógica da Escola Municipal de Educação Básica (EMEB) Adolfina J.M. Diefenthäler, em Novo Hamburgo (RS), Joice Lamb e os demais educadores da equipe gestora recém-empossada encontraram um cenário pouco animador. O número de alunos com histórico de reprovação era alto, eram comuns episódios de violência entre estudantes e o planejamento pedagógico carecia de intencionalidade. Somado, isso tudo trazia como resultado estudantes dos anos finais do ensino fundamental ainda não alfabetizados e um aproveitamento abaixo da média no Índice de Desenvolvimento da Escola Básica (Ideb). Diante de tantos desafios, a solução encontrada foi criar estratégias para atuar em duas frentes emergenciais: alfabetizar os alunos mais velhos e construir uma gestão democrática para engajar famílias, estudantes e funcionários na resolução dos problemas encontrados.
“A primeira assembleia foi com os professores”, lembra Joice, que ficou na coordenação pedagógica da Adolfina até o início deste ano, quando se aposentou. A ideia era sensibilizar os educadores para que, por meio da própria vivência, eles percebessem a importância de buscar lidar com os desafios de forma coletiva. “Eles começaram a perceber que as discussões colocadas na assembleia eram levadas adiante. Assim, muitos passaram a achar a gestão democrática importante, e não só mais uma tarefa que eles precisavam fazer.”
A partir da assembleia dos professores, uma série de ações foi implementada até a transformação completa da administração da escola. Atualmente, a Adolfina conta com assembleias mensais específicas para estudantes, famílias, professores e funcionários. As discussões em cada um desses encontros são registradas em ata e levadas para o conhecimento da gestão da escola, que dá andamento às providências necessárias para cada caso. “Depois tem uma devolutiva com os representantes sobre como cada questão foi encaminhada. E, na assembleia seguinte, todos podem avaliar se as providências tomadas estão adequadas”, conta Joice.
Ao final de cada ano é organizada a Conferência da Escola, um colegiado que conta com a participação de todos para a definição do uso da verba da escola no ano seguinte. Para isso, são realizadas assembleias preparatórias em que cada grupo — de estudantes, famílias, professores e funcionários — define as pautas que serão levadas para o encontro. “Neste momento não existe uma hierarquia de voto. As crianças a partir de quatro anos participam e todos os votos contam igualmente”, afirma Joice. Esse sistema gera uma corresponsabilização de todos em relação ao que ocorre na instituição.
Como reconhecimento do trabalho realizado à frente da Adolfina, Joice conquistou o Prêmio Educador do Ano de 2019, criado pela Fundação Victor Civita (FVC). Em 2022, a escola foi eleita uma das três melhores do mundo no Prêmio Melhores Escolas do Mundo, realizado pela plataforma internacional T4 Educação, no qual concorrem instituições de mais de cem países, nas categorias colaboração comunitária, ação ambiental, inovação, superando a adversidade e apoiando vidas saudáveis.
Democracia e inclusão
Também foi pela via da gestão democrática que o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) de Campo Limpo, na zona sul da capital paulista, encontrou seu caminho de transformação. Criada em 1998 como uma unidade do chamado ensino supletivo, a escola estava perto de fechar as portas por conta de uma reorganização. Só se manteve aberta por conta da articulação da direção e da coordenação da época junto à comunidade.
Depois da campanha vitoriosa contra o encerramento das atividades, a escola encampou ainda mais a participação de todos, fazendo das assembleias um instrumento permanente para a tomada de decisões. Com o tempo e o reconhecimento por parte da comunidade, a instituição começou a atrair um novo perfil de aluno. “No início dos anos 2000, começamos a receber muitos estudantes com deficiência. Desde então, passamos a desenvolver uma metodologia para atender a esse público”, explica Diego Elias Santana Duarte, coordenador geral da escola.
Para isso, além das já tradicionais assembleias e do conselho escolar, criou-se o Café do Cieja. Uma vez por mês, um grupo formado por pais e responsáveis, alunos, professores e demais representantes da comunidade se reúne para discutir demandas e desafios para o atendimento aos estudantes com deficiência e propor ações para serem discutidas com toda a escola. O gestor cita como exemplo o caso de Mônica. Como muitos alunos do Cieja, Mônica chegou à escola depois de passar por outras instituições nas quais não havia tido boas experiências. “Recebemos muitos estudantes mais velhos com deficiência. Então, no Café a gente debate: como a pessoa com deficiência envelhece? Como ela vai para o mercado de trabalho? Como ela prossegue os estudos?”, explica Diego.
No caso específico de Mônica, o caminho encontrado foi incentivá-la a se aprofundar na prática do Taekwondo, esporte com o qual ela tomou contato durante oficinas oferecidas na unidade. “Ela foi se graduando durante as oficinas e hoje é uma das professoras aqui da escola e a primeira mulher com síndrome de Down faixa preta na modalidade”, afirma. “Assim, conseguimos, conforme nossas possibilidades, atender a cada estudante de acordo com sua especificidade”, conta Diego.
A proposta democrática e inclusiva do Cieja Campo Limpo foi reconhecida e é contada em detalhes no livro “Volta ao mundo em 13 escolas“, dos autores André Gravatá, Camila Piza, Carla Mayumi e Eduardo Shimahara. De acordo com o relato, o Café do Cieja é um importante momento de troca, acolhimento e aprendizagem para as famílias dos estudantes com deficiência: “em geral, são entre 30 e 60 participantes. O professor costuma desenvolver um tema inspiracional na primeira parte do encontro. A segunda metade é dedicada à conversa dos pais entre si e também para os filhos presentes trocarem ideias, enquanto comem alguns quitutes que trouxeram. ‘Foi no Café Terapêutico que aprendi a falar para os outros sobre as dificuldades da minha filha’, conta uma mãe”.
Outro ponto destacado no livro é a atuação dos profissionais do Cieja para favorecer a autonomia dos estudantes com deficiência: “se esforçam ao máximo para incentivá-los a desenvolver tarefas sozinhos — como comer e ir ao banheiro. Eles cobram de si mesmos uma relação com esses alunos que não se paute no apego, para que eles não sofram caso não encontrem mais o funcionário preferido no outro dia. Esses aprendizados são frutos do dia a dia de trabalho, a partir de acertos e erros, depois de inúmeras conversas com pais e colegas”.
Assembleias ajudam no retorno pós-pandemia
Há cerca de dez anos a EMEF Paulo Nogueira Filho, situada na zona norte de São Paulo, vem construindo instrumentos de gestão democrática na escola. Após o retorno às atividades presenciais, em 2022, depois da fase mais aguda da pandemia de Covid-19, a gestão escolar afirma que as assembleias se faziam ainda mais necessárias. “Mais do que nunca, a gente percebeu que precisava ter um lugar de escuta para os alunos”, conta o assistente de direção Mario José dos Santos, que destaca o papel fundamental dessas reuniões para o acolhimento emocional dos estudantes e para a reinserção deles em atividades coletivas depois do afastamento forçado.
Hoje, dois anos depois da volta dos estudantes à escola, ele conta que todos os fóruns de participação foram retomados, como as assembleias semanais de estudantes, o grêmio e o conselho escolar. “O nosso conselho de escola é muito participativo. Isso foi uma conquista. Há sete anos, nós tínhamos apenas dois pais. Não dá para falar que tinha representatividade. Hoje, são cerca de 15 familiares que participam com frequência”, comemora o gestor, que destaca ações como a comunicação com antecedência das datas e a escolha de horários dos encontros considerando a realidade das famílias; os lembretes constantes, enviados próximos ao dia do evento, e a criação de um canal de diálogo por WhatsApp, sempre disponível, como estratégias que ajudaram a alavancar a participação de todos.
Liberdade, frequência e constância
Além das ações relatadas até aqui, todos os educadores ouvidos nesta reportagem destacam a importância de garantir o acesso amplo e irrestrito à manifestação de opiniões. “É a garantia da participação como direito, com um espaço seguro para manifestação, sem represália ou perseguição”, afirma Joice Lamb, da Adolfina, em Novo Hamburgo (RS).
Maura Barbosa, da Roda Educativa, destaca a importância da regularidade e da constância para a efetividade dos instrumentos de representação. “Ter regularidade ajuda a fortalecer o grupo, acompanhar os resultados e mudar o rumo, se necessário. Quando a gente não tem regularidade, as coisas vão se perdendo no tempo e fica difícil que as discussões sejam encadeadas.”
Joice enxerga o medo de renunciar ao controle e perder a autoridade como um dos entraves para a ampliação da gestão democrática nas unidades de ensino. “A gente tem um poder autoritário e paternalista que é executado na escola. No modelo comum, todos os problemas devem ser resolvidos pelos gestores, que ficam sobrecarregados e tendem a ir para o autoritarismo”, diz. A educadora conta que, diante de uma situação como essa, é comum cada professor se fechar em sua prática e ninguém ter uma noção do todo.
“Penso que é muito mais fácil ser gestor em um processo democrático. Nele, todo mundo é seu aliado. As pessoas se comprometem, porque estavam lá e participaram da sugestão da solução. Se não der o resultado esperado, isso será levado para a assembleia seguinte”, completa a coordenadora. “Quanto mais se levar em conta o que é radicalmente educativo, mais se contribuirá para a inclusão de todos. Não se perde nada ao ser dialógico”, sintetiza o professor Vitor Paro, da USP.
Caminhos para fortalecer a democracia na escola
Conheça quatro instâncias de participação coletiva que podem coexistir dentro das instituições de ensino:
Assembleia
Pode ser exclusiva para estudantes, famílias, professores ou funcionários ou ter composição mista. O principal objetivo é discutir questões relevantes para encontrar soluções coletivas. Pode abordar temas como o planejamento pedagógico, o uso dos recursos da escola, a criação de projetos e outras atividades. A assembleia deve envolver todos os segmentos da escola na tomada de decisões e na construção de uma gestão democrática e participativa. “É importante que elas sejam deliberativas, não apenas consultivas”, recomenda Joice Lamb.
Conselho escolar
O ideal é que tenha representada em sua composição toda a comunidade escolar: pais e responsáveis, estudantes, professores, funcionários e gestores da escola. Pode assumir funções de ordem consultiva, deliberativa e fiscalizadora. Por ser um grupo menor que o das assembleias e que espelha todos os segmentos, é um bom instrumento para acompanhamento de iniciativas. “Nele, são analisadas as condições de ensino e as estratégias para garantir o direito de todos os alunos aprenderem”, explica Maura Barbosa, da Roda Educativa.
Grêmio estudantil
Como diz o próprio nome, é composto por estudantes eleitos por seus pares. Sua atuação deve ser no sentido de representar os alunos em atividades em que a participação direta de todos não é possível. Além disso, o grêmio também pode organizar atividades estudantis e estimular a participação dos alunos na vida escolar. “É um espaço de vivência da cidadania entre pares e negociação com as outras instâncias da escola. Muitas vezes, é a primeira experiência dos estudantes com a democracia participativa”, conta Maura.
Grêmio ou conselho mirim
Geralmente composto por estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental. Sua principal função é preparar os mais novos para a experiência de formar e interagir com o grêmio estudantil. Ao perceber que os alunos chegavam aos anos finais do ensino fundamental sem entender bem quais as funções do grêmio, a coordenação pedagógica da EMEF Paulo Nogueira Filho sugeriu a formação de um grêmio mirim para as turmas dos anos iniciais. “Fazemos reuniões semanais para escutá-los sobre as questões que repercutem na escola”, conta o assistente de direção Mario José dos Santos. É possível organizar um conselho mirim também na educação infantil.