O papel do acolhimento na Educação Infantil
Conhecer os pequenos, compreender seus hábitos e observá-los desde os primeiros dias é essencial para construir um ambiente agradável e que possibilite a aprendizagem
Os primeiros dias na creche e na pré-escola são aqueles em que as crianças conhecem os colegas e educadores, notam uma nova rotina, sentem com a separação das famílias e estranham os novos espaços. É aos poucos que elas reconhecem o ambiente como delas. Nesse momento inicial, o acolhimento que a escola faz à turma e a cada uma das crianças é essencial. “Nas primeiras semanas, é muito comum ser uma choradeira só, mas não precisa ser assim”, diz Luciana Messias Santana, educadora da rede municipal de Suzano, na grande São Paulo. Ela atuou durante 20 anos como professora regular de turmas de creche e pré-escola e, depois de muito estudo sobre educação inclusiva, agora faz parte da equipe do Atendimento Educacional Especializado (AEE) da rede.
Pela sua experiência, o início do ano é o momento propício para a construção de vínculos: é preciso conhecer cada uma das crianças da turma e estudar seu histórico dos anos anteriores (lendo relatórios ou conversando com outros educadores que já tiveram contato com os pequenos) para fazer uma transição adequada entre o ambiente familiar e a escola (leia reportagem sobre acolhimento no ensino fundamental).
Com as crianças chegando nos centros de educação infantil pela primeira vez, o ideal é também dialogar com os responsáveis em reuniões promovidas pela escola, quando os adultos têm a oportunidade de conhecer a proposta pedagógica da instituição de ensino e tirar dúvidas a respeito das rotinas, além de se aproximar da professora que irá acompanhar os pequenos durante todo o ano.
O encontro pode incluir também uma apresentação mais detalhada dos espaços da escola. Esses momentos de atenção às famílias, que devem envolver a escuta de expectativas e anseios, são importantes para deixá-las mais tranquilas em relação ao trabalho da instituição e marcar o início da construção de uma parceria que precisa ser fortalecida ao longo do ano.
Flávia Vivaldi, doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral/Unesp e Unicamp (Gepem) e do Instituto de Estudos Avançados/Unicamp (IdEA), diz que esse contato pode começar na matrícula, por meio de uma entrevista ou conversa que vá além das exigências de documentação. Assim, antes mesmo do início das atividades, a escola reúne o maior número de informações das crianças para que os docentes possam fazer uma abordagem mais qualificada. “Os dados são muito úteis, não para colocar rótulos ou estigmatizar as crianças, porque todos trazem marcas, mas sim para dar atenção a detalhes que são importantes de serem levados em conta”, diz Flávia.
Luciana segue essa estratégia de entrevistar as famílias e recolher informações para ajudar na aproximação com as crianças que são alvo da educação especial. E aqui não estamos falando de olhar apenas para o laudo, mas de tentar entender quais são as particularidades de todas as crianças de cada turma. Para a professora, é muito valioso conhecer os hábitos e preferências de cada uma, como, por exemplo, de que forma gostam de se alimentar ou qual ajuda esperam. “Levo esses dados em conta para planejar momentos agradáveis e de aprendizagem na escola. Também procuro saber de que maneira as famílias lidam com determinadas situações, como dificuldade de locomoção, restrição nas interações ou baixa visão, para fazer um trabalho integrado com esses outros adultos com quem as crianças convivem.”
Planejamento das primeiras semanas: tempo, espaço, materiais e propostas
Se não for possível conseguir muitas informações com as famílias antes do início das atividades, dá para aproveitar os primeiros dias e semanas para isso. Mesmo quem conseguiu pode complementar o que já foi levantado.
Fernanda Ribas é supervisora e formadora de coordenadores pedagógicos na rede municipal de Suzano, a mesma na qual Luciana leciona. Com seus colegas do núcleo pedagógico de educação infantil da secretaria, ela planejou orientar as escolas para o retorno das atividades prevendo a escuta de educadores, crianças e suas famílias, e a observação dos pequenos. Os educadores precisam saber mais de cada uma: como a criança dorme? Como se alimenta? Quais são seus objetos de apego? E os hábitos de casa? O que gostam de fazer? Têm costume de ouvir histórias e contato com livros? E de cantar cantigas? Conversar com as crianças sobre onde nasceram, quem escolheu seus nomes ou quem mora em suas casas vai dar elementos para que todos se conheçam e construam relações de confiança. Como podem perceber, são perguntas que valem para todas as crianças, e não apenas para aquelas da educação especial.
“O acolhimento precisa ser planejado. Não é uma lista de coisas que serão feitas e nem uma preocupação extrema com a decoração dos ambientes, mas sim considerar que é o momento de conhecer e observar a criança. Isso inclui organizar materiais e tempos, e pensar nos espaços adequados, tendo a criança na centralidade do processo”, explica Fernanda. “As ações dos educadores devem ter intencionalidade e afetividade, e as reações e sensações das crianças precisam ser notadas e registradas”, completa. Com as crianças com deficiência, o propósito deve ser o mesmo: verificar quais necessidades apresentam e de que maneira será possível atendê-las, para o desenvolvimento pleno de cada sujeito.
“Por exemplo, alimentar uma criança com uma colher grande ou empurrar a comida para dentro da boca não é bom em nenhuma situação, e é ainda pior para quem têm dificuldade de engolir. Ao trocar a fralda ou mudar de ambiente, uma comunicação cuidadosa deve ser feita com todos, inclusive com aquelas que não escutam. Se alguma delas demonstra a necessidade de dormir, precisa encontrar um momento para isso. Se o ambiente está tumultuado e barulhento, é importante deixá-lo mais confortável. A ideia geral é: respeitar as individualidades, independentemente das idades e demais características”, diz Fernanda. O diálogo entre a professora de turma e a do AEE precisa ser constante para que verifiquem práticas e intervenções mais adequadas, e troquem ideias e informações sobre o desenvolvimento da turma.
Nas primeiras semanas das crianças na escola é possível organizar a permanência de cada uma durante poucas horas por dia ou revezar para que metade da turma permaneça em determinados períodos, de modo que se adaptem ao novo contexto de brincadeiras, cuidados, leituras, alimentação e sono, e não sintam rupturas abruptas. “Passado esse período inicial, educadores e famílias conversam sobre a adaptação da criança para que os professores entendam se essas famílias estão tranquilas. Então a rotina começa a ser seguida para o restante do ano. Ninguém pode estar em sofrimento, nem as crianças nem os seus responsáveis”, afirma Fernanda.
Pescaria foi uma das atividades preparadas pela professora Luciana: simples, mas que permitiu observar a coordenação motora e as noções de números e quantidades. Crédito: Acervo pessoal/ Luciana Santana
Olhar a turma e cada um
Silvia Adrião atua como diretora na Escola AB Sabin e como coordenadora pedagógica no Colégio Albert Sabin, ambos em São Paulo, para as turmas de educação infantil. Ela ressalta que o planejamento para as semanas iniciais de volta às atividades deve prever propostas instigantes, ambientes convidativos, clima afetuoso e tempos diversificados. Essas práticas não são triviais de se seguir, mas conseguem abranger crianças em diferentes momentos de seu desenvolvimento.
Para a educadora, propostas instigantes e ambientes convidativos são aqueles em que “a turma encontre materiais não estruturados e que possibilitem criar e interferir nas brincadeiras como quiserem, dando margem a desdobramentos inesperados”. Já o clima afetuoso é aquele em que as crianças conseguem exprimir sua individualidade, em espaços pensados para acolhê-las e deixá-las à vontade. Para colocar em prática os tempos diversificados de permanência na escola, explica Silvia, é preciso notar se as crianças estão felizes e tranquilas em ficar, progressivamente, mais horas na escola a cada dia ou não.
Com o público da educação especial, a equipe de educadores realiza encontros para conhecer as crianças, apresentar os espaços e pensar, em parceria com as famílias, as melhores formas de atuar para o desenvolvimento nos primeiros dias e ao longo do ano. “Crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), por exemplo, muitas vezes precisam de mais tempo para se adaptar ao novo ambiente, aos colegas e às educadoras. Se a criança já estava na escola no ano anterior, a presença da professora com quem tinha mais contato também faz a diferença para a transição com a nova turma. Mas todos na turma são singulares e precisam de um olhar específico”, completa a diretora.
O que muda entre a creche e a pré-escola
Flávia lembra que até os cinco anos de idade a aprendizagem e as explorações das crianças são feitas pelas percepções e sensações vividas, e que elas veem o mundo de forma festiva. “Nessa etapa do desenvolvimento, é preciso o toque e o corpo em movimento, então a escola deve ter isso em mente para pensar na rotina e nas estratégias de intervenção e planejamento”, afirma.
Mas o que muda entre a adaptação da creche e a da pré-escola? Silvia, das escolas de São Paulo, conta que as crianças menores, de maneira geral, precisam mais da presença dos pais ou responsáveis na escola nos primeiros dias, enquanto as que frequentam a pré-escola estão mais dispostas à exploração diversificada.
Pensar sobre o uso dos ambientes externos e organizar cantos de aprendizagem que possibilitem diferentes experiências é uma estratégia interessante para fazer da escola um lugar atraente para os diferentes públicos, incluindo aqueles com deficiência. Por exemplo, para este início de atividades, Silvia e sua equipe usaram bolas e outros elementos circulares, lanternas, tintas, borrifadores e outros materiais, procurando deixar os locais interessantes para as brincadeiras. “É preciso estar atento às pistas que as crianças nos dão: mesmo aquelas que não falam, porque são muito pequenas ou têm alguma deficiência, se comunicam de outras maneiras. Para entender cada uma, precisamos ter atenção e escuta sensível.”
Acolhimento e acompanhamento constantes
Nas primeiras semanas de escola, as crianças estão fazendo uma passagem entre o universo familiar e o núcleo escolar. Mas, passado o período de adaptação, é o momento de dar outro passo: tendo como foco o que as crianças precisam aprender e quem são, é possível planejar e prever, tendo mais elementos sobre as turmas, de que forma isso será desenvolvido ao longo dos meses.
O acolhimento, portanto, deve ser constante, com planejamento de materiais, propostas e desafios que possibilitem a aprendizagem dos pequenos. “Já tive uma criança de quatro anos com muita restrição de movimento e controle de apenas uma mão. Ela conseguia escrever seu nome usando letras móveis, mas precisava de mais tempo para alcançar as peças porque se movia lentamente. Eu precisei notar essa peculiaridade, reconhecer esse aprendizado da escrita, que foi inclusive mais precoce do que o de outros colegas de mesma idade, e respeitar seu tempo”, relembra Luciana.
A observação sobre as experiências das crianças, de avanços e pontos de atenção, possibilita registros mais certeiros e uma avaliação contínua. Tirar fotos, fazer filmagens, anotar reações dos pequenos e ideias de intervenções docentes também faz parte da estratégia de Luciana. Quando lecionou como professora do AEE, costumava enviar mensagens de texto, fotos e vídeos para a educadora regente da turma e para os responsáveis das crianças. Com isso, estreitou a parceria com os responsáveis e ampliou a trocas de informação sobre as crianças. Organizou também pastas virtuais e compartilhou com eles, para guardar os registros de cada um e acompanhá-los ao longo do ano.
Saiba mais
+ Empatia na educação inclusiva: conviver e ensinar na diferença
+ Registros: a importância de professores regentes e de AEE compartilharem informações
Comentário
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Tão importante esse acolhimento inicial. É a primeira porta que se abre para uma criança quando ela passa a explorar o mundo além da família.