O caso da Universidade Federal do ABC – ABC Paulista

Introdução

Foi a partir do confronto com situações pontuais, por meio da superação de medos e barreiras e da união de membros da comunidade acadêmica, que a Universidade Federal do ABC (UFABC) começou a caminhar no sentindo de se tornar uma universidade para todos. O ingresso de Josias, estudante com deficiência visual, impulsionou ações individuais, demonstrando que situações podem alterar modos de pensar e agir. Abertos às transformações, gestores, técnicos e professores constataram que a experiência pode ser um ótimo método de aprendizagem. De um pequeno grupo que se dispôs a adotar ações imediatas para assegurar a permanência daquele estudante, surgiram garantias institucionais que permitiriam o ingresso e a conclusão de curso de diversos outros. São ações como a reserva de vagas, a bolsa-auxílio acessibilidade, a monitoria inclusiva, entre outras. Também foi fundada uma seção dedicada à garantia da acessibilidade na universidade, apresentando a todos da comunidade acadêmica a possibilidade de superação do sistema tradicional de ensino e colocando o desafio do trabalho individual e conjunto de promover uma universidade para todos. Em relação ao futuro, foram citadas a institucionalização das ações voltadas à inclusão e a ampliação das matrículas de pessoas com deficiência como importantes questões.

Caminhando com o tempo

Josias Adão tinha 65 anos e era aluno do curso de filosofia da UFABC. Nascido em Cubatão, ainda menino mudou-se para São Bernardo do Campo. Na adolescência, ingressou na escola de aprendiz de marinheiro. Permaneceu na Marinha durante alguns anos. Ao voltar para a vida civil, foi trabalhar como motorista. Nessa época, atuou como dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário do ABC.

Querendo mais para sua vida profissional, Josias estudou e foi transferido para a área de informática na mesma empresa. No entanto, ele teve glaucoma em meados de 1992, e sua visão começou a decair, levando-o a se aposentar. Em seguida, ele decidiu fazer um curso de terapia holística e passou a prestar atendimento na área. Foi quando se deu uma nova oportunidade, conforme seu depoimento:

É até uma questão bastante curiosa, porque, no momento em que eu prestei o Exame nacional do ensino médio (ENEM), eu não tinha decidido voltar a estudar. Daí meus filhos fizeram a prova e reclamaram que era muito difícil, e eu ouvia o pessoal falar que era muito difícil. Então, decidi prestar esse exame para ver se eu recordava o que eu tinha estudado. Prestei, fui aprovado e resolvi que iria voltar a estudar.

Tomada a decisão, Josias foi fazer sua matrícula na UFABC e recordou:

O dia que eu fui fazer a matrícula na universidade, eu me apresentei com a documentação exigida, e foi uma surpresa. Hoje há uma resolução de cotas para pessoas com deficiência, mas na época não tinha¹. Como eu estava com a documentação exigida e tinha passado na prova, eles não podiam me impedir. Então, eu fiz a matrícula e, na sequência, eles me levaram para conhecer a universidade. Foi quando eu conheci uma funcionária da biblioteca de Santo André, a Roberta, a primeira ponte que a gente encontrou aqui no que diz respeito à acessibilidade. Ela falou que ia conversar com o pessoal, dizendo que a universidade ia ter que correr para se preparar para atender a pessoas com o meu tipo de deficiência.

Daquele primeiro encontro com Roberta e dos contatos que ela fez com Maria do Carmo Cardoso Kersnowisky, coordenadora do sistema de bibliotecas da UFABC, com Rita Aparecida Ponchio, da Pró-reitoria de graduação (Prograd), com Fernanda Figaro, da Pró-reitoria de assuntos comunitários e políticas afirmativas (Proap) e com algumas professoras interessadas no tema da inclusão surgiu um primeiro movimento dedicado às questões de acessibilidade na universidade. A princípio, esse grupo tinha como objetivo contribuir para a permanência e o sucesso de Josias na UFABC. Conforme disse Josias:

Esse grupo desempenhou um papel fundamental. Mas, como eu digo, foi muito mais iniciativa de alguns funcionários que se preocuparam com isso.

Dessa iniciativa particular de alguns funcionários da universidade, começaram a surgir ações pontuais que visavam solucionar problemas específicos de um aluno. Essas ações despertaram na comunidade acadêmica o anseio de construir um modelo de ensino superior que permitisse o acesso e a permanência de todos, recuperando, assim, o projeto de constituição da universidade.

Superando o sistema tradicional de ensino

Com o objetivo de superar o sistema tradicional de ensino superior e de atender a demanda da região, composta pelos municípios de São Bernardo do Campo, Santo André e São Caetano do Sul, foi criada em 2005 a Universidade Federal do ABC (UFABC).

Gustavo Galati, que desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre a UFABC² e em 2014 coordenava a Pró-reitoria de ações comunitárias e políticas afirmativas (Proap), constatou que a UFABC:

É fruto de uma luta bastante longa de setores da região que buscavam conseguir uma universidade pública e de qualidade para o ABC Paulista. Os primeiros registros são dos anos 60 e, ainda na década de 90, o estado de São Paulo era o que tinha maior deficiência proporcional de vagas federais.

Foi apenas a partir de 2003 que começou a surgir a possibilidade de concretização da criação de uma universidade federal no ABC, pois casou-se a proposta da sociedade local com um projeto da Academia Brasileira de Ciências, que recomendava um plano pedagógico com foco na interdisciplinaridade e voltado à ciência e tecnologia, porém com forte cunho humanista. Assim, em setembro de 2006, já com 500 alunos inscritos, iniciaram-se as aulas na UFABC.

Marcelo Pires, coordenador de políticas afirmativas e chefe da seção de acessibilidade, disse que, devido à UFABC ser na época uma das poucas universidades que concediam 50% de cotas, tanto socioeconômicas e raciais como para alunos oriundos de escolas públicas³, e também devido ao Programa nacional de assistência estudantil (Pnaes), houve um anseio da comunidade acadêmica em criar uma pró-reitoria de assistência estudantil. Assim, foi criada, em 2010, pelo reitor Helio Waldman, a Pró-reitoria de assuntos comunitários e políticas afirmativas (Proap). Seu objetivo seria dar conta da gestão das diversas bolsas e cotas, bem como desenvolver novos projetos para contribuir com o rendimento dos estudantes e da comunidade acadêmica como um todo. Assim, passou a oferecer atendimento psicossocial, abriu uma seção de esportes e lazer, contribuindo para a promoção da saúde da comunidade, entre diversas outras ações.

Conforme afirmou o vice-reitor, Dácio Roberto Matheus:

O que é uma pró-reitoria senão o braço da reitoria para aquela ação? Nós temos só 7 pró-reitorias, ou seja, tudo o que nós temos que fazer, nós organizamos em sete assuntos, e um dos sete assuntos da universidade é a política afirmativa. Eu acho que isso é muito significativo e ressalta a importância desse tema para a instituição.

A política afirmativa, por estar entre os temas caros à universidade, implicou um olhar atento dos gestores, permitindo a identificação e planejamento para a superação de barreiras.

Não basta abrir as portas

Por ter sido construída quando a lei de acessibilidade em edifícios públicos e de uso coletivo já estava vigente4, a UFABC tinha a acessibilidade infraestrutural que era exigida legalmente, como banheiros acessíveis, elevadores, algumas sinalizações táteis, rampas, cadeiras de rodas, mesas adaptadas e largura mínima das portas. Já atendia, também, a exigência legal do tempo extra para que estudantes com deficiência realizassem suas provas5.

No entanto, essas exigências legais, que pareceriam muito no ponto de vista de alguns, poderiam estar ainda longe do ideal para outros. Josias Adão, por exemplo, tinha necessidades que só foram apreendidas a partir da experiência.

Um caso interessante vivenciado pelo estudante foi o processo de aprendizagem pelo qual muitos de seus professores passaram até entenderem a necessidade de modificar seus métodos didáticos. No início da sua graduação na UFABC, Josias não conseguiu compreender todo o conteúdo das aulas, pois alguns professores escreviam e desenhavam exemplos na lousa e apenas solicitavam que os estudantes olhassem para o quadro, não descrevendo o conteúdo ali exposto. A situação mudou quando uma das amigas de Josias passou a ler em voz alta tudo o que os professores escreviam durante as aulas, até que um dia, conforme disse Josias:

Os professores se tocaram e começaram a falar em voz alta o que escreviam na lousa e a descrever os desenhos que faziam.

Foi assim que o método de audiodescrição foi aprendido por alguns professores de Josias, possibilitando ao estudante o acesso integral ao conteúdo transmitido.

Para Maria do Carmo, responsável pela biblioteca e membro do grupo de acessibilidade desde o início, um dos maiores obstáculos que chegaram com a vinda de Josias foi a adaptação do material didático. Como o aluno não lia em braile, o material tinha que ser transcrito e passado para o formato de texto eletrônico (extensão TXT) para que o programa de leitura de áudio do estudante conseguisse ler o conteúdo.

Segundo a bibliotecária, no começo, esse trabalho era feito pelos funcionários da biblioteca em parceria com o próprio estudante, que era quem ficava responsável por levar até lá o texto para ser adaptado. Porém esse processo não possibilitava que o aluno tivesse o material em tempo para a aula.

Durante as reuniões do grupo de acessibilidade, esse obstáculo foi discutido e levado ao pró-reitor da Prograd, que disponibilizou os monitores acadêmicos para o auxílio na adaptação do material de Josias. Os monitores acadêmicos já faziam parte do programa de bolsas da universidade. Estudantes regulares se inscreviam para monitorar em uma disciplina e, durante esse período, tornavam-se responsáveis por auxiliar o docente e os alunos daquela, recebendo bolsa para o exercício dessa função. O monitor acadêmico concedido para auxiliar Josias passava pelo mesmo processo. No entanto, era selecionado pelo diretor do Centro de Ciências Naturais e Humanas e tinha como responsabilidade auxiliar na adaptação de seus materiais.

Esse auxílio favoreceu o aproveitamento de Josias Adão no curso, na medida em que o estudante conseguia ter acesso aos textos em um tempo muito mais curto.

Outra iniciativa da Prograd que contribuiu para Josias foi o Programa de ensino e aprendizagem tutorial (Peat), o qual oferecia a qualquer aluno de graduação um professor tutor, que tinha como função orientar, incentivar, promover a autonomia e propiciar reflexão e conhecimento do estudante sobre o ambiente acadêmico. De acordo com o que relatou com Anastasia, à época professora e tutora de Josias:

No Peat, eu trabalho muito de perto com o Josias, então é fluido o tipo de trabalho que faço, depende das demandas que ele tem a cada momento.

O trabalho de Anastasia como tutora ia desde intermediar o contato do estudante com as diferentes divisões acadêmicas até providenciar a alocação dos monitores, auxiliando também no aprendizado de Josias, como os estudos que fez em conjunto com o aluno para disciplinas de matemática e probabilidade e estatística. Seu intuito era tornar aquele conteúdo acessível para ele, pois considerou que esse trabalho era muito especializado para ser executado por um monitor. Conforme explanou a tutora:

Esse trabalho é também uma interlocução entre o Josias e a universidade para que sejam satisfeitas as demandas do estudante, de maneira a resolver essas questões, não só para esse aluno, mas para institucionalizar os processos de adaptação do material didático, de tornar as aulas acessíveis, e tudo o que a gente precisa, não só para o Josias mas para os outros estudantes com deficiência que estão por vir.

Aprendendo com o desafio

Conforme afirmou Anastasia Itokazu, professora da UFABC:

Quando Josias começou a frequentar as minhas aulas, eu percebi primeiro que eu sou uma pessoa muito visual e que eu me esforçava muito para colocar figuras bonitas para os estudantes durante a aula, tanto figuras do céu, como textos antigos e manuscritos. Essas coisas atraem e estimulam os alunos. Então, com Josias, eu tenho procurado transmitir esse estímulo.

Anastasia tinha resolvido levar os estudantes para uma aula no planetário de Santo André. Ficou bastante preocupada, pois se lembrou que aquela era a turma de Josias Adão. Pensou que ele ficaria perdido, em razão de o conteúdo ser muito visual, e acreditou que o estudante não aproveitaria o passeio como os demais. Ela contou:

Mas a Yuri (funcionária do núcleo de acessibilidade da UFABC) sentou ao lado do Josias no planetário e descreveu para ele tudo o que estava ali, cada detalhe. De uma maneira simples, ela foi explicando para ele tudo o que aparecia ali: ‘agora o Kalil (diretor do planetário) está mostrando o planeta Marte, está mostrando a estrela Antares do lado de Marte e, como os dois são do mesmo tamanho e da mesma cor, por isso Antares é o antiáries, que era o nome de Marte em grego…’ E ela foi explicando para o Josias tudo o que o diretor do planetário estava expondo para nós. O Josias saiu muito feliz daquela visita, e eu percebi que toda a minha preocupação tinha sido infundada.

Foi assim que a professora Anastasia aprendeu, com a tradutora e intérprete de Libras, Yuri, a técnica da audiodescrição. Ela simplesmente passou a imitar Yuri, começando a descrever tudo em detalhes que tornavam aquelas figuras que ela projetava na lousa únicas e diferentes das figuras contemporâneas. Ela concluiu:

A gente se preocupava em tornar as aulas atrativas para os alunos que não têm deficiência, mas os alunos que têm alguma deficiência ultrapassam uma barreira maior para conseguirem aprender. A gente quer apenas que eles tenham um mínimo de acesso ao conhecimento? Eu acho que não, acho que a gente tem que buscar mais, temos que buscar que aquele conhecimento seja acessível e atrativo.

Com esse intuito, a professora Anastasia achou conveniente fazer coisas lúdicas e mobilizar o olfato do estudante:

Eu usei um limão espetado em um palito de churrasco para representar a esfera celeste. E, para desenhar as linhas relevantes da esfera celeste, eu fui cortando o limão, então o Josias foi sentindo o cheiro do limão, o que eu acho que deixou a aula mais interessante e menos enfadonha para ele.

A professora acreditava que o desafio de ter um estudante cego funcionava como um estímulo para que aquele conteúdo fosse pensado de outras maneiras e, com isso, a própria turma se beneficiava da oportunidade de ver a teoria por uma outra ótica. Ela refletiu:

Depois que eu comecei a dar aulas para o Josias, eu percebi que a gente projeta aquela figura da esfera armilar — que é a esfera que representa os círculos mais importantes da esfera celeste — como um desenho bidimensional, que, na verdade, é tridimensional. Então os alunos que têm visão normal também têm dificuldades de entender essa figura, que é tridimensional e que está representada como bidimensional. E quando eu faço aquele limão para o Josias, eu estou ajudando toda a turma, pois os estudantes pedem para olhar e demonstram maior compreensão. E, nesse sentido, eu acho que a gente cria uma dinâmica boa em aula.

Outro método de adaptação muito utilizado pela professora eram os desenhos usando EVA6. Anastasia procurava sempre antes das aulas reproduzir em relevo os desenhos que faria na lousa durante a aula. Para isso, ela usava uma folha sobre um pedaço de EVA, contornando com um lápis de ponta grossa as figuras que iria utilizar para tornar o desenho apreensível de forma tátil para Josias. Às vezes essa atividade era realizada durante a aula, pois, sempre que considerava necessário, Anastasia utilizava esse recurso, assim como improvisava com pulseiras de aço, para representar círculos, e até mesmo com objetos decorativos que encontrava em sua casa.

Além dessa adaptação, Anastasia modificou o seu modo de avaliação, pois, em um primeiro momento, considerou que o seminário seria a melhor forma de avaliar Josias. No entanto, ao questionar o estudante sobre qual método de avaliação preferia, ele informou à professora que o seminário não seria o mais adequado, porque ele não teria referências, como anotações e slides, para auxiliá-lo. Juntos, eles decidiram optar por teste oral.

A professora resumiu sua aprendizagem assim:

Dar aulas para o Josias foi um desafio, mas não um desafio tão grande quanto eu temia. Nós, professores, temos esse desafio diante de nós o tempo todo. Então, dar aulas para o Josias foi um pouco difícil, a gente tem que se aperfeiçoar, mas a tarefa do professor é essa. Nós queremos desafios intelectuais, temos que gostar desse tipo de desafio intelectual. Se a gente teme esse tipo de desafio, se a gente acha que para essa tarefa nós teríamos que primeiro ser capacitados, ter toda uma formação para lidar com o estudante com deficiência, a gente não está agindo de uma forma digna de um professor que pretende ser um produtor de conhecimento. Pode parecer um pouco assustador, porque é muito novo, mas eu acho que a gente tem que encarar esse desafio como um desafio que não é essencialmente diferente dos colocados por cada um dos outros alunos.

A institucionalização das ações

Apesar da boa vontade de membros da comunidade acadêmica, a entrada de Josias na UFABC lançou um novo desafio de gestão, no sentido de que as ações de cunho particular veiculadas pelo grupo de acessibilidade eram insuficientes e, ao mesmo tempo, deveriam ser institucionalizadas. Conforme o estudante afirmava:

O professor Joel, que, na época, era pró-reitor da Proap, me chamou para uma reunião. Ele disse que se propunha a fazer um projeto para acessibilidade na universidade. E fez um projeto de extensão que foi aprovado. Foi a partir daí que iniciou, em termos mais oficiais, essa questão da acessibilidade, que hoje está sob responsabilidade da Proap.

O antigo pró-reitor da Proap, Joel Felipe, aproveitando-se do espírito de inclusão da UFABC e notando que as pessoas com deficiência estavam sendo marginalizadas — posto que não estavam entrando na universidade na proporção que existiam na sociedade — constatou que estava na hora de abrir cotas para esse segmento populacional.

Conforme Fernanda Figaro, assistente administrativa da seção de acessibilidade, Joel solicitou que fosse feito um levantamento das instituições federais de ensino superior que tinham cotas para pessoas com deficiência. O objetivo da pesquisa era verificar como era feito o ingresso e qual porcentagem era reservada para, a partir dessas informações, construir um projeto para a UFABC.

Fernanda constatou que havia sete universidades e 14 institutos federais que tinham reserva de vagas para pessoas com deficiência, e que as reservas variavam desde a oferta de uma vaga por curso até outras que ofereciam 5% das vagas ou algumas que acrescentavam 6% à nota do ENEM do estudante com deficiência.

Após a composição do projeto, foi preciso apresentá-lo à comunidade acadêmica. Gustavo Galati ressaltou:

Joel Felipe desenvolveu uma campanha dentro da UFABC, de esclarecimento. Tivemos seminários, bastante discussão, inclusive para entender o que são pessoas com deficiência, que tipos de deficiências. Será que uma pessoa com deficiência intelectual pode entrar na universidade? Havia muita gente que dizia que não.

Por acreditar que não bastava o ingresso, mas que seria de fundamental importância pensar nas reais possibilidades de conclusão de curso pelos estudantes com deficiência, o professor Marcelo foi um dos que expressaram opinião contrária às cotas quando começaram as discussões:

Não havia garantia nenhuma que esses alunos poderiam ingressar e concluir seus cursos. Além disso, havia a questão da infraestrutura que, na época, era bastante precária. Seria, de certa forma, até irresponsável trazer os estudantes, e eles encontrarem barreiras muito grandes na universidade.

Entretanto, o processo de reflexão promovido pela reitoria teve impacto em Marcelo. Ele relatou:

Hoje eu mudei. Porque de fato se faz acessibilidade com as pessoas com deficiência presentes. É muito difícil, eu diria quase impossível, fazer acessibilidade em um órgão público sem as pessoas com deficiência. E o pensamento que eu tinha, de que o aluno com deficiência não conseguiria concluir o curso, percebi que essa opinião era preconceituosa, já que qualquer outro aluno também pode enfrentar dificuldades.

Conforme afirmou Gustavo Galati:

Houve todo um amadurecimento através das discussões para que, em uma reunião do conselho, a matéria passasse com bastante tranquilidade. Não teve um voto contra, teve apenas duas abstenções em um conselho de 43 pessoas. Se tivéssemos soltado a proposta sem um esclarecimento de que dificuldades nos traria, a gente não teria tido esse êxito.

No dia 30 de setembro de 2013, foi aprovado o regulamento de cotas para pessoas com deficiência na UFABC, o qual passou a vigorar em 2014 ofertando 1% das vagas para esse público e tendo como meta chegar a 5% no ano de 2018. Explicou Fernanda Figaro:

Para a reserva de vagas na UFABC, o aluno presta o ENEM normalmente, assim como os outros estudantes da ampla concorrência, das cotas raciais e socioeconômicas. Quando ele vai fazer o cadastro no SISU para a escolha da instituição, tem a opção de marcar que é cotista por deficiência.

Ainda como gestor da Proap, o passo seguinte dado por Joel Felipe foi estruturar um projeto que contemplasse uma seção de acessibilidade, oferecesse uma Bolsa-Acessibilidade e contasse com estudantes da universidade para atuarem como monitores inclusivos.

Com a saída de Joel Felipe da UFABC, quem assumiu o cargo de pró-reitor da Proap foi o seu vice, Gustavo Galati, que ficou responsável por dar continuidade ao projeto iniciado por seu antecessor. Gustavo afirmou:

Não basta abrir as portas da universidade. Tanto para as pessoas com deficiência quanto para os outros cotistas, nós desenvolvemos um trabalho intenso e imenso para que os alunos tenham êxito e concluam seu curso, façam pós-graduação e realmente tenham iguais oportunidades. E essa é uma tarefa que nos está colocada.

Gustavo lembrou que uma professora da UFABC oferecia um cursinho para pessoas com deficiência auditiva da região e supôs que, devido ao incentivo da professora e às cotas oferecidas pela universidade, muitos desses estudantes ingressariam na UFABC em 2014. Ele contou:

Pelo nosso concurso, devido a questões administrativas, nós só teríamos tradutores e intérpretes de libras em abril. Então o que faríamos até abril se em janeiro entrasse uma quantidade grande de surdos? Nós corremos para contratar uma empresa de tradutores e intérpretes de libras e contratamos uma quantidade razoável. Mas não entrou nenhum aluno surdo.

O pró-reitor da Proap ressaltou tal fato, pois, para ele, era importante aprender com a realidade. Era preciso se preparar com antecedência, buscar o que pudesse de informação, se precaver para situações que seriam enfrentadas, porém era necessário considerar que:

A situação real de cada um é o que realmente dá o tom. Encarar a realidade da situação é o mais educativo que pode existir. Mesmo que você saiba que não há uma pessoa igual à outra, que as necessidades de um vão ser diferentes das necessidades do outro, é insuperável o contato com a situação real.

Apesar de nenhuma pessoa surda ter ingressado na UFABC pela reserva de vagas em 2014, 16 estudantes com deficiências estavam matriculados na universidade em 2014, isso sem contar com os 14 estudantes que ingressaram pelo processo de ampla concorrência.

Estudantes que ingressaram por cotas:

Estudantes que ingressaram por ampla concorrência:

  • 5 com deficiência física;
  • 9 com deficiência visual.

Com o impacto e o aprendizado da situação real, foi necessário criar um setor que ficasse responsável por aglutinar e desenvolver as políticas de acessibilidade dentro da universidade federal do ABC.

Aglutinando e desenvolvendo políticas de acessibilidade na UFABC

Andrey Gonçalves, tradutor e intérprete de Libras na UFABC, afirmou:

A seção de acessibilidade é nova na universidade, não só como seção mas também como articulação política. Ter uma pessoa e um computador não faz uma seção. Ter alguém que comece a discutir essas questões, foi isso que fez com que a seção surgisse e fosse convidada para outros debates e discussões. Ela vem de uma necessidade de que haja acessibilidade nos espaços públicos e dentro das salas de aula. A seção de acessibilidade na UFABC veio da necessidade do professor e do aluno.

A seção de acessibilidade, um órgão da Proap instituído no começo do ano de 2014, tinha como objetivo, conforme o chefe da seção, Marcelo Pires:

Aglutinar e desenvolver políticas de acessibilidade na UFABC. Até agora nós temos as cotas para pessoas com deficiência. Além disso, nós temos a Bolsa-Acessibilidade e os monitores inclusivos.

A bolsa-acessibilidade foi oferecida aos estudantes com deficiência da universidade, cotistas ou não. Explicou Fernanda:

O auxilio-acessibilidade é um subsídio que dá condições para os alunos com deficiência adquirirem tecnologia assistiva e permanecerem na universidade.

Em 2014, primeiro ano de implementação da oferta do subsídio, 16 estudantes receberam a bolsa de 400,00 reais mensais. Ela teria periodicidade anual, podendo ser renovada até a conclusão do curso. De acordo com Wesley Guilherme Alves, educando do curso de bacharelado em Ciência e Tecnologia e pessoa com deficiência física:

É bem amplo o que você pode fazer com a bolsa. Pelo edital, se algum dia a Proap quiser saber, eu tenho que levar lá o que eu adquiri com o dinheiro da bolsa.

Aquele procedimento de adaptação do material de Josias, iniciado pela biblioteca e que recebeu auxílio da Prograd por meio dos monitores acadêmicos, passou a contar com mais colaboradores após implantação da monitoria inclusiva, um projeto da Proap sob reponsabilidade da seção de acessibilidade. De acordo com Andrey:

A ideia não era que o monitor fosse um segundo professor, mas sim alguém que oferece acessibilidade. Isso no mercado já existe, a gente conhece ledores, audiodescritores, intérpretes de libra, entre outros. Isso é o trabalho de um profissional, e a gente acha que o profissional não deve ser substituído. Então, pensamos numa monitoria inclusiva, que são alunos que também estudam na universidade e que vão ajudar os alunos com deficiência a realizar algumas atividades.

Joyce Ribeiro, aluna do bacharelado em Ciência e Tecnologia, ficou sabendo da abertura do edital. Ela já tinha interesse sobre o tema, pois em outro momento de sua vida havia feito um estágio de pedagogia em uma escola de ensino fundamental. Lá teve a oportunidade de conviver com uma aluna com deficiência e percebeu que, apesar dos mínimos recursos oferecidos na escola, poderia haver uma relação de troca de aprendizado. Por isso, inscreveu-se para tornar-se monitora inclusiva. Selecionada, participou do curso de capacitação oferecido pela equipe da Proap. Ela lembrou:

Em uma das partes do curso, eles deram quatro estudos de caso para serem analisados. E uma das perguntas que me fizeram foi ‘como eu explicaria para uma pessoa com deficiência visual como é uma fita de DNA?’ Eu respondi que, se a pessoa tivesse memória visual, eu diria que é mais ou menos parecido com uma trilha de trem torcida, mas no caso de ele não ter essa memória, seria necessário um objeto tátil.

Fernanda Figaro explicou como atuariam esses monitores:

Nós temos três grandes áreas de atuação dos monitores inclusivos: a primeira é a adaptação do material acadêmico; a segunda é o mapeamento do campus na questão da acessibilidade arquitetônica, verificando quais são as barreiras, e o que pode ser feito para superá-las; e a terceira é o acompanhamento dos alunos em sala de aula.

Os 20 monitores inclusivos, após o curso de capacitação, foram divididos nessas três áreas. Um grupo ficou responsável pela construção do acervo da biblioteca digital. Luis Rodrigo de Mesquita Tiago, bibliotecário chefe, ressaltou:

Para isso, temos 12 alunos, software e impressoras. Agora a gente recebe a bibliografia antecipada dos professores e digitaliza de acordo com a necessidade do Josias, mas o nosso plano é contratar uma empresa para digitalizar todo o acervo e tornar a bibliografia acessível para os futuros alunos.

Sem medo de errar

Gustavo Galati relembrou:

O primeiro ímpeto que a gente tem é ajudar. E como você não está preparado para ajudar, você vai no sentido mais assistencialista possível. E, na maioria das vezes, essa não é a pedagogia correta. Você tem que ajudar a pessoa a ser autônoma. É possível que a gente não tenha feito isso com o Josias no começo.

Ao enfrentar o primeiro caso de inclusão de um aluno cego na universidade e perceber que cometeu erros que beiravam o assistencialismo, a lição aprendida pelo gestor Gustavo Galati e por sua equipe foi a de que seria preciso trabalhar para contribuir com a autonomia dos estudantes com deficiência. Nesse sentido, atitudes concretas foram levadas adiante, institucionalizando o que haviam aprendido na prática. Eles reformularam suas ações, ouviram os educandos e contribuíram para garantia de sujeitos autônomos e independentes.

Em seu primeiro ano, a seção de acessibilidade conseguiu viabilizar dois projetos: a Bolsa-Auxílio Monitoria Inclusiva e a Bolsa-Auxílio Acessibilidade, ambos muito relevantes e que vinham contribuindo para o ingresso e a permanência dos estudantes com deficiência na UFABC. Em seu próximo ano, novas práticas deveriam ser executadas pela equipe, como o mutirão de leitura, que colaboraria para a construção da biblioteca digital, e o observatório, que iria avaliar e, caso necessário, propor mudanças arquitetônicas. A equipe pretendia, também, realizar novos cursos de formação e, dessa maneira, envolver todos da comunidade acadêmica na busca pela inclusão. Afinal, esse era o princípio da UFABC.

Faltando um ano para concluir a graduação em filosofia na UFABC, Josias reconhecia os avanços pelos quais a universidade passou e se considerava um sujeito autônomo e independente. E já havia começado a fazer aulas de francês com o intuito de se preparar para fazer o mestrado.

O caso de Josias serviu como uma grande aprendizagem para a gestão universitária, levando-a a refletir sobre muitos desafios da inclusão. Um dos mais importantes, que era seguidamente citado, dizia respeito à necessidade de institucionalização das ações. Soluções encontradas para resolver problemas específicos e individuais precisavam se tornar parte das políticas de inclusão da universidade. Muitas vezes, essas soluções deviam ser repensadas de forma a atender um número maior de pessoas. Mas como garantir essa institucionalização?

A ausência de matrículas de alunos surdos também indicava uma situação que precisava de intervenção: por que a universidade, mesmo tendo reserva de vagas, não era procurada pelas pessoas com deficiência? Como abrir o diálogo entre os diversos movimentos de pessoas com deficiência para que elas se sentissem convidadas a ingressar nos cursos?

Outras questões estavam direcionadas à forma com que os integrantes da instituição percebiam as pessoas com deficiência. Gustavo já indicava um grande desafio: será que a universidade já estaria pronta para receber uma pessoa com deficiência intelectual e garantir que ele pudesse concluir um curso de graduação?

Notas

¹ A resolução que reservava 5% das vagas da UFABC para pessoas com deficiência foi aprovada em setembro 2013 e passou a vigorar no primeiro trimestre de 2014.

² Leia a tese de dissertação de mestrado “Interdisciplinaridade e inclusão social no processo de implantação da Universidade do ABC: da proposta à prática“.

³ O artigo primeiro da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, regulamentou que “as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação (MEC) reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”.

4 Lei 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

5 Lei 4.317, de 9 de abril de 2009.

6 Etil Vinil Acetato, material de consistência emborrachada.

Sobre a autora

Tatiane Gonzalez tem mestrado em sociologia e é pesquisadora sobre cultura e comportamento social na Indague Pesquisa e Conteúdo.

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