Tensões entre o mundo da caridade individual e aquele almejado pela lógica dos direitos humanos têm provocado reações e controvérsias em todo o mundo ocidental
O ano de 2018 é especial para o mundo por se celebrar os 70 anos de promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esse documento tornou-se um marco na história civilizatória de nosso planeta principalmente porque trouxe para o centro da política internacional um pacto em torno dos direitos de cada um e de todos os seres humanos.
Depois de duas décadas de ditadura militar, o ano de 2018 é especialmente emblemático para a sociedade brasileira, também, por se celebrar os 30 anos da promulgação da constituição brasileira, que ficou conhecida como a “constituição cidadã” por ter incorporado no sistema jurídico-social brasileiro os princípios da DUDH.
De forma surpreendente para muitos (eu, inclusive), a celebração dupla das conquistas internacional e nacional de garantia de direitos básicos e de luta por uma vida digna para todos os seres humanos, que pareciam consolidadas em nossa sociedade, foi confrontada de maneira direta por discursos de ódio, preconceito e discriminação durante a campanha política nas eleições deste ano no Brasil. O discurso político adotado, que foi vencedor em nível nacional e também nos Estados onde vive a maioria da população brasileira, preconizou e legitimou a discriminação por razões ideológicas, de gênero, de sexualidade, de cor de pele, de origem geográfica, e muito mais, evocando até mesmo a supressão dessas diferenças do convívio social e o uso da violência contra minorias.
Paradoxo do bom cristão
Um dos paradoxos vividos e que provavelmente terá reflexos profundos no futuro próximo é que a principal justificativa para os discursos discriminatórios assentou-se em princípios religiosos do cristianismo, ou na “palavra” de Deus presente nas escrituras sagradas de milênios atrás. Para quem se assustou com a situação paradoxal de um Deus intolerante, discriminatório e violento, contraditório com as máximas de igualdade e de amor ao próximo do cristianismo, em geral recebia de familiares e amigos que aderiram a tais discursos e campanhas políticas respostas desencontradas, hesitantes, quando não silenciosas. Parecia desvelar algo velado no inconsciente das pessoas, difícil de explicar racionalmente.
Como entender esse paradoxo do bom cristão que aceita e legitima a discriminação, o preconceito e até mesmo a violência, se necessária, para proteger a sociedade? E proteger de quem? A justificativa formal apontava um pretenso ataque perpetrado nos últimos 30 anos por forças políticas organizadas, de esquerda, com o intuito de destruir os valores da família conservadora e tradicional. O propalado ataque envolvia temas caros ao pensamento conservador, como: sexualidade, gênero, machismo, neutralidade educacional, cor de pele, nível socioeconômico, normalização de desigualdades, e outros mais.
Na busca por entender essa situação paradoxal fui estudar algumas das bases do pensamento cristão conservador que vêm se aglutinando no mundo ocidental nos últimos anos, como que unidos em uma nova cruzada.
Caridade
Para início de conversa, precisamos falar da caridade, uma das virtudes basais do cristianismo. Etimologicamente a palavra vem do latim caritas, e é definida como uma ação altruísta, individual, de ajuda a alguém sem a espera de qualquer recompensa. A caridade é o principal indicador de elevação moral do cristianismo, muito bem valorada socialmente e, normalmente, está associada a sentimentos como o perdão e a culpa.
O sentimento de culpa, aliás, como bem mostrou a antropóloga Ruth Benedict em 1946 na obra “The chrysantemum and the sword”, é o sentimento moral por excelência das culturas judaico-cristãs como a nossa. A moralidade cristã, por exemplo, é construída em torno da culpa, responsável por regular psicologicamente as pessoas dessa tradição cultural (para a autora, a vergonha é o sentimento moral por excelência das culturas orientais).
Explicando: nas culturas cristãs, aprendemos que sentimos culpa quando pensamos ou agimos contra valores que nos são caros, ou melhor, quando agimos de forma “errada”. Nessas situações, nos desequilibramos psicologicamente. Aprendemos, então, a realizar ações que anulem ou diminuam o sentimento de culpa, como fazer caridade, perdoar, pagar o dízimo, como forma de reencontrar o equilíbrio psicológico e aplacar esse sentimento atroz.
A caridade, portanto, é a ação moral por excelência das culturas cristãs e tem uma perspectiva individual. É o bom sujeito que faz caridade: distribui sopa e cestas básicas; dá esmolas; ajuda creches; etc. Assim, essas pessoas vivem em paz com a sua consciência pessoal e social. Isso parece ser suficiente para caracterizar o bom cristão e o bom cidadão, ao mesmo tempo que lhes dá poder social e moral para incorporar críticas aos que não são bons cristãos, e até mesmo, defender punições para estes.
A lógica moral dos direitos humanos
A noção de direitos humanos consolidada na DUDH, no entanto, remete as sociedades contemporâneas a uma outra lógica ou excelência moral, pautada na justiça, nos princípios de liberdade, fraternidade, igualdade consagrados culturalmente no mundo ocidental pela revolução francesa e, principalmente, na lógica de que a vida digna é um direito de todos e de cada um dos seres humanos. Essa perspectiva dá à lógica moral uma dimensão pública e política, que deve ser executada e garantida pelo Estado e não necessariamente pelos indivíduos.
Essa mudança de perspectiva é paradigmática e nos últimos 70 anos têm levado a humanidade a patamares de conquistas sociais e políticas disruptivas. Uma das mudanças mais profundas que provoca é na lógica moral da justiça, por reconhecer que apesar de nossas diferenças, somos todos iguais em direitos. Como decorrência dessa dimensão social e política, incorporada na maioria das constituições modernas, o Estado passa a ser obrigado a garantir às pessoas os seus direitos, como à educação, moradia, um ambiente saudável etc.
Nesse sentido, por exemplo, o Estado deve garantir às pessoas com paralisia cerebral o direito de estudar em uma escola regular, junto com todos os demais seres humanos de sua idade. E o mesmo princípio de garantia de direitos de igualdade e de vida digna se aplica à comunidade LGBT, aos negros, aos imigrantes, aos menores de idade, aos idosos, e assim por diante.
Nessa lógica ética e moral calcada nos direitos humanos, é papel do Estado regular os interesses coletivos e individuais. Assim, da mesma forma que o Estado tem a obrigação de regulamentar o trânsito e a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança para preservar os interesses coletivos, por exemplo, multando os indivíduos que não cumprirem a lei, é sua obrigação oferecer aos jovens a educação sexual que leve-os a uma consciência do corpo, dos afetos e das responsabilidades. Da mesma maneira, por serem metas almejadas em sociedades justas e democráticas, é papel do Estado propiciar uma educação crítica e de qualidade que auxilie na construção de valores que se contraponham a todo e qualquer preconceito e discriminação.
Pontos de tensão
A partir do que foi discutido até aqui, pode-se identificar alguns pontos de tensão decorrentes do paradoxo político e cultural apontado, que opõe o mundo da caridade individual dos chamados “bons cristãos” e aquele almejado pela lógica dos direitos humanos. Essas tensões vêm provocando reações e controvérsias em todo o mundo ocidental neste momento, sem ser exclusividade da sociedade brasileira.
Um primeiro ponto de tensão nesse paradoxo, que merece reflexão, está na crítica generalizada que os movimentos cristãos conservadores fazem à lógica moral dos direitos humanos, atribuindo tais valores às esquerdas políticas. Sabe-se, no entanto, que a revolução francesa e a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos são resultantes de visões liberais de sociedade, que não tem relação direta com as visões políticas de esquerda. Assim, existe um discurso disfuncional nesse sentido que merece mais atenção de todos.
O segundo ponto de tensão, e talvez o mais evidente, está na reação das correntes conservadoras cristãs à lógica moral dos direitos humanos que atribui ao Estado a responsabilidade de gerir as normas e os costumes, muitas vezes colocando os interesses coletivos da sociedade acima dos valores individuais e familiares. A tensão fica exposta quando se acusa a lógica dos direitos humanos de ter ido longe demais ao contrariar alguns textos bíblicos antigos que interditam, por exemplo, o tema da sexualidade, que recriminam a homossexualidade, ou que ressaltam de forma negativa algumas diferenças entre as pessoas. Como o mundo é visto de forma dual por essas pessoas (afinal existe o bem e o mal, o céu e o inferno, a família e a sociedade), legitima-se o discurso de certo e errado, do bom cristão contra os não-cristãos e, daí, naturaliza-se a perspectiva de que algumas diferenças, como as da comunidade LGBT, dos negros, pobres, nordestinos, pessoas com deficiência, quem não estudou etc., possam ser valoradas negativamente.
A caridade, por fim, é a outra ponta solta nessas tensões. Quando o Estado assume constitucionalmente o papel de garantidor dos direitos das pessoas e responsável por diminuir as desigualdades sociais, ele acaba esvaziando a moral cristã e sendo alvo de críticas do conservadorismo cristão. Por exemplo, quando concede auxílios a determinados grupos vulneráveis (como a Bolsa família e bolsas para jovens carentes estudarem). Afinal, o papel de auxiliar os grupos vulneráveis é dos indivíduos, famílias e igrejas, e não do Estado, que não deveria exercer tal função.
Novas Cruzadas
O que pode ser observado como ponto de reflexão é que estamos vivendo no Brasil e no mundo uma reação conservadora cristã contra o avanço da lógica moral dos direitos humanos, que leva adiante seus princípios fundantes radicais baseados na justiça e no papel do Estado como garantidor dos direitos sociais e da dignidade da vida de todos os seres humanos.
Entendo que mais do que nunca é hora daqueles que dedicaram sua vida e sua trajetória político-social em prol da justiça social compreenderem os paradoxos das tensões que estamos vivendo e seguir lutando para que as conquistas da sociedade e do Estado brasileiro nas últimas décadas não sejam suplantados por leituras parciais e conservadoras de mundo, que priorizam virtudes individuais em vez das virtudes públicas contidas nos princípios dos direitos humanos.
Mais do que nunca, é hora de trazer os septuagenários princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos para o centro do debate social e educacional, em prol da construção de uma sociedade democrática que seja, realmente justa e solidária.
Ulisses F. Araújo é professor titular da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), onde coordena o Núcleo de Pesquisas em Novas Arquiteturas Pedagógicas (NAP) e o Núcleo de Apoio Cultural, Social e Educacional (NASCE). Desde 2012, é membro do Editorial Board do Journal of Moral Education, e desde 2013, membro do Executive Board da Association for Moral Education. Foi consultor do Ministério da Educação (MEC) para o “Programa Ética e Cidadania: construindo valores na escola e na sociedade”. É autor de livros sobre cidadania, construção de valores, educação moral e mudanças na educação.
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