Diversidade e autonomia: ideias inseparáveis na educação

Estivemos, em 2012, na Escola Helena Zanfelici, em São Bernardo do Campo (SP). Sua diretora, Maria do Carmo, nos contou que a prefeitura da cidade colocava à disposição dos estudantes com comprometimento motor um auxiliar (o “cuidador”) para ajudar nas tarefas e na higiene desses estudantes. A gestão da escola rapidamente percebeu que era necessário um olhar atento a esses cuidadores, pois havia riscos de as crianças se tornarem dependentes deles. Para a equipe da escola, promover a autonomia dos estudantes faz parte do projeto pedagógico.

Este vídeo conta com legendas em português, inglês e espanhol (ativadas na barra do player) e está disponível em versões com audiodescrição e Libras.
Esse não é um fato isolado. Muitas escolas que visitamos perceberam que autonomia e diversidade andam juntas: não é possível valorizar uma sem respeitar a outra (e vice-versa!). Promover a autonomia, em poucas palavras, se relaciona com valorizar o uso das capacidades e possibilidades pessoais na solução de problemas. Mas cada pessoa desenvolve técnicas próprias para utilizar suas capacidades e superar barreiras, o que significa que respeitar as capacidades individuais é respeitar a forma com que cada estudante desenvolve suas soluções.

O professor que, em sala de aula, quer trabalhar com a autonomia e a diversidade precisa abrir mão do desejo de controlar a sala de aula, nos padrões tradicionais. Apesar de compreender que é mais fácil dizer do que fazer, assistimos a diversos casos onde as professoras, com ajuda da classe, conseguiram respeitar as necessidades específicas de determinados educandos.

A professora Adriangela Bonetti, por exemplo, na época em que era professora regente da Escola Alexandre Bacchi, em Guaporé (RS), propôs uma mudança radical em sua turma: em virtude de um estudante autista que necessitava de levantar-se durante a aula e movimentar-se pela sala, ela abriu mão da obrigação de os estudantes assistirem à aula sentados.

Realmente, o aluno nunca sentava. Mas isso é um problema? Não, é uma característica do aluno. Então está bem relacionado com o jeito de ver o aluno e respeitá-lo, pois lá no projeto pedagógico a gente sempre escreve: respeitar as individualidades do aluno. Mas o que é respeitar as individualidades do aluno? Se o aluno tem isso como característica até orgânica dele – ficar em pé – por que eu, como professora, tenho de constantemente querer que ele fique sentado? Ele não me atrapalha, nem atrapalha os colegas. “Ah, mas se os outros virem ele em pé vão querer ficar em pé também…” Pois que fiquem! Não tem problema, se eles estiverem produzindo, aprendendo, se comunicando…

Na fala da professora, fica clara a relação entre autonomia – poder guiar-me por meus próprios parâmetros – e o respeito à diversidade. Caso a professora tivesse ficado apegada aos valores tradicionais da educação, que pregam que os estudantes devem ficar sentados e atentos apenas ao professor – esse educando poderia se tornar um problema de disciplina e não se sentiria aceito na escola.

Autonomia para as escolas

A autonomia, no entanto, não pode se restringir aos educandos. É necessário lembrar que cada escola está inserida em um determinado contexto. Mesmo escolas muito próximas, no mesmo bairro, podem viver realidades muito diferentes. Isso porque cada grupo humano vai desenvolver seus próprios valores e comportamentos, resultantes das interações singulares que se dão entre as pessoas. Esses valores são influenciados pela cultura da comunidade onde a escola está inserida, certamente, mas serão únicos daquele grupo. Ou seja, cada escola tem sua própria cultura e esta será tão diversificada quanto o são os seres humanos.

O fato é que, para uma secretaria de educação, é difícil compreender a realidade de cada escola e, mesmo estando atenta à situação de cada uma, nunca conhecerá a cultura da escola tão bem quanto o quadro de educadores e gestores dela.

Algumas secretarias de educação têm investido na tentativa de homogeneizar a qualidade da educação em suas cidades e, nesse intuito, tentado aumentar o controle sobre as escolas por meio, por exemplo, de processos de avaliação do ensino. Se, por um lado, a busca por oportunidades iguais para os estudantes, independentemente da escola em que estudam, é válida, por outro, é necessário cuidado para que o desejo de controle não suplante a diversidade cultural das escolas.

Como é mais simples para as secretarias lidar com estatísticas, elas muitas vezes podem promover uma “quantificação” do ensino e, com isso, deixar de respeitar as diferenças das situações de cada escola. Uma escola que tem uma grande quantidade de crianças em condições de risco social precisa ter uma avaliação que considere esse fato. Por isso, as avaliações que utilizam séries temporais (que compara a melhoria do desempenho da escola ao longo do tempo) ao invés de parâmetros rígidos pontuais (que define qualidade por meio de uma avaliação estanque) sempre são mais adequadas.

Um outro exemplo de como a secretaria pode atropelar a heterogeneidade das escolas é a acessibilidade arquitetônica: as escolas têm demandas diferentes e prioridades diferentes na adequação de suas estruturas. Uma secretaria que decide que todas as escolas terão rampas está bem intencionada, mas pode deixar de atender demandas específicas de certas escolas que precisem urgentemente de banheiros adaptados ou portas mais largas. O Instituto Rodrigo Mendes (IRM) tem defendido que, para definir quais são as adaptações prioritárias de acessibilidade, é preciso que a escola conheça a sua comunidade, para entender quais são suas demandas, e que as secretarias de educação disponibilizem recursos para a escola a partir de seus projetos.

À heterogeneidade das escolas se une a urgência da atuação. Nem sempre há como a escola prever suas necessidades, principalmente considerando as especificidades de estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades. É no próprio contato com o estudante e em seu desenvolvimento que as prioridades surgem. Por essa razão, as escolas precisam de certa autonomia de recursos e ações. Maria do Carmo, da EMEF Helena Zanfelici, explicita:

A escola precisa de autonomia, porque eu acho que, com o recurso aqui na escola, a gente agiliza algumas coisas. A gente quer uma redução boa da turma, um auxiliar – dependendo da criança – o período todo ou parte do período. Se a gente não tiver a redução de turma, o apoio, a gente deixa de oferecer uma escola com qualidade para as crianças.

Autonomia para os professores

Deixei a questão mais relevante para o final: e o professor? E acrescente-se: um computador é uma máquina de escrever com uma televisão em cima?

Ora, como todo ser humano, a comunidade dos educadores é extremamente diversificada: há aqueles que utilizam melhor os trabalhos em grupo e as discussões, há aqueles que são brilhantes ao dar uma aula expositiva. Há os que tem dificuldades em trabalhar com conversas na sala e aqueles que fazem da classe um exercício de teatro. Há infinitas possibilidades didáticas e ferramentas de educação e cada professor deveria poder escolher a forma de atuar com a qual mais tem afinidade.

Há muita pressão hoje sobre os professores. É sobre eles que recai, no frigir dos ovos, a responsabilidade direta pelo processo de ensino e aprendizagem. A educação inclusiva diz respeito a todos (governo, escola, família, estudante), mas é o professor o ponto de convergência de todas essas forças.

De um lado, os professores precisam aceitar todos os estudantes – esse é um fato que não voltará atrás – e auxiliá-los a aprender, independentemente de suas condições. De outro lado, ele ainda é cobrado por resultados padronizados, como o ENEM e os vestibulares. Espremidos entre essas exigências, muitos professores sentem-se desamparados. Ao ter de responder às pressões dos estudantes, pais, gestão e governo, eles perdem sua autonomia.

Mas há outro problema e, para falar sobre ele, gostaria de compartilhar uma lembrança: quando eu tinha por volta de 20 anos, meu pai, já com mais de 60, resolveu que queria aprender a usar o computador e me pediu para ajudá-lo. Eu busquei, então, “traduzir” o que era o computador para um paradigma que meu pai pudesse entender, então o defini como “uma máquina de escrever ligada a uma televisão”.

Depois de algumas semanas de muita dificuldade, meu pai virou-se para mim e disse: “Augusto, um computador não se parece em nada com uma máquina de escrever com uma televisão em cima! Ele tem comandos, ele abre caixas em diferentes áreas da tela e eu nunca via uma TV com mouse!”

Meu pai estava certo: seria difícil fazê-lo entender algo radicalmente novo, diferente de tudo o que ele já havia visto, reduzindo-o a um paradigma anterior.

Algo parecido acontece na educação, hoje, e é responsável pela angústia dos professores frente à inclusão escolar: a tentativa de adaptar essa mudança, radicalmente nova, ao paradigma anterior de educação.

A forma tradicional de educar é massificadora. Ela busca exterminar a diversidade, agrupar iguais e excluir diferentes, subjugar a autonomia. O educação inclusiva não consegue ser “traduzida” para o velho paradigma. É necessária uma construção nova. Para tanto, faz-se urgente respeitar a autonomia e incentivar a criatividade dos professores.

Ao educador, é necessário garantir o direito de testar novas metodologias e didáticas. A comunidade escolar precisa acolhê-lo e ampará-lo, nesse momento de transformação, pois um novo valor não é construído sem ansiedades, incertezas, medos e erros.

A boa notícia a esse respeito é que a educação inclusiva pode ser um grande motivador para se combater a síndrome de desistência ou Burnout¹ da classe, apontada já na década de 90 por uma pesquisa nacional realizada pelo Prof. Wanderley Codo, da Universidade de Brasília. Tal síndrome tinha como consequência a desmotivação do professor dada a falta de sentido que seu trabalho assumia, diante da inadequação do modelo educacional frente à universalização do acesso ao ensino. Quando a comunidade escolar percebe que o apoio ao educador é essencial para uma educação que respeite a diversidade e oferece as condições adequadas, ao invés de vê-lo como o inimigo ou alguém a ser controlado, o sentido do trabalho retorna, a criatividade retoma seu espaço e todos ganham.

Daniel Pink, um estudioso da motivação humana, ressalta que as pesquisa atuais apontam três ingredientes para que as pessoas se sintam motivadas: a autonomia; o desejo de vencer desafios e se superar; e a percepção de participar de algo importante e que contribua para um mundo melhor. Nos estudos de caso realizados até hoje pelo DIVERSA, foi possível ver professores altamente motivados e criativos, compartilhando esses valores: valorizando a autonomia, vencendo desafios e acreditando estar colaborando para construir um mundo melhor.

¹ Wanderley Codo publicou um livro sobre a síndrome de Burnout nos professores das redes estaduais de educação, chamado Educação: Carinho e Trabalho (Ed. Vozes).


Augusto Galery é psicólogo, mestre em administração, doutor em psicologia social e pesquisador em sociedade inclusiva. Foi coordenador do programa DIVERSA Pesquisa de 2011 a 2015.

Artigo originalmente publicado pela Revista Sentidos, edição 77 (jul-ago/2013).

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