Eu tenho pressa

De tempos em tempos, um novo quadro clínico surge e, com ele, uma série de normas de comportamento e manuais de tratamento — um fenômeno que exige de todos cautela e calma

Ai os meus bigodes… É tarde, é tarde até que arde… Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, tarde é tarde. Não, não, não, eu tenho pressa, pressa… Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde!

Coelho Branco da Alice

Dentro do contexto clínico com crianças e suas famílias, os fenômenos que se observam hoje nos diversos lugares em que uma criança está são atravessados pela concepção de tempo e espaço que se possui e como diagnósticos de Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e “distúrbios da atenção” podem se relacionar com esses conceitos.

Ainda nos tempos atuais se faz necessário um esforço para compreensão da lógica infantil que, claro, não é a mesma do sujeito adulto, mesmo este trazendo em sua bagagem existencial um “resto” infantil. Essa lógica da criança não contempla o tempo da mesma maneira que o adulto, com sua pressa habitual, seja pelo motivo que for: demandas externas ou internas. Com essa consideração, convido você a uma tentativa de compreender o que chamamos de sintomas na dinâmica de um sujeito, criança ou adulto.

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Na clínica da infância, conforme aponta a obra “Clínica com crianças – Enlaces e Desenlaces”, nota-se que “uma criança pode ser trazida para análise quando padece das mais diversas formas de alterações das funções corporais, de comportamento ou de expressão simbólica que, por excesso ou falta, produzem um incômodo”. Esse “incômodo” é justamente onde está a demanda e, portanto, poderá ser o conteúdo a ser trabalhado. E ele pode pertencer à própria criança, aos pais, à escola ou a todos.

É muito importante no trabalho de identificação dos fenômenos que uma criança apresenta poder justamente selecionar de quem é essa demanda. Nem sempre quem necessita de acompanhamento é ela apenas, pois muitas vezes o sintoma é a manifestação, o sinal de que algo não vai bem. Sendo assim, os focos podem ser outros além dela.

Sinais na escola

Costumeiramente, os primeiros sinais que surgem quando há algo que não vai tão bem assim com uma criança aparecem na escola. Não à toa, afinal lá é o lugar onde uma criança permanece a maior parte de seu tempo. É lá que ela vivencia suas experiências coletivas fora da família (quando pode, pois há muitas situações em que irmãos estudam na mesma escola e no mesmo período), então é natural que seja o lugar em que apareçam tanto as facilidades como as dificuldades, tanto de ordem social quanto de ordem afetiva e de aprendizagem.

Penso que, por vezes, cometemos um equívoco ao pensar que as dificuldades de aprendizagem, e aqui já incluo a questão atencional, se relacionam com aspectos intelectuais apenas. Mesmo as crianças que são diagnosticadas com esse quadro mostram suas habilidades transformadas diante de um processo de investimento.

Situar o contexto clínico na área da infância tem sido um dos desafios que nós, profissionais da saúde mental, muitas vezes em parceria com os colegas da educação, nos deparamos cotidianamente, já que a cada pequeno período surge um novo diagnóstico, que vem atribuído de normas de comportamento e de seus respectivos remédios e manuais de “tratamento”. Há muitos questionamentos sobre os aspectos econômicos que circundam a produção de diagnósticos e todo o complexo sistema que os envolve. Seara de Babel, o campo dos diagnósticos mentais na infância exige de todos um tanto de cautela, cuidado e calma.

O lugar do tempo e do espaço

O melhor exemplo clínico é a própria clínica. Então vou utilizar aqui um fragmento que serviu de base para as reflexões apresentadas.

A partir da indicação de outro profissional de saúde, conheci Branca, mãe de Alice. Mãe solo, com histórico de violência psicológica do ex-companheiro e pai de Alice, pouco percebia que havia sido vítima. Narrava sua trajetória como quem conta uma ida à feira. Rápida, já no contato telefônico, avisa que “o tempo lhe era caro, portanto tentaria que achar ‘um tempo’ pra nos encontrarmos e falarmos de Alice”. Esse fragmento basta pra que possamos identificar o que nesse texto nos interessa: o lugar do tempo e do espaço ocupado na dinâmica dessa dupla. Uma ressalva, (em tempo!) a dupla mãe/criança é de suma importância, dado que muitas vezes ela serve de matriz para a forma como uma criança — desde bebê — vai se relacionar com o mundo e com as pessoas que habitam esse mundo.

Alice era inquieta, muito inteligente, impaciente, impulsiva, hipersensível à crítica, atenta apenas ao que lhe interessava e apressada. Nos primeiros encontros com ela, após vários com a mãe, ao menos umas oito ou nove brincadeiras eram iniciadas e incessantemente ela me pedia mais coisas: objetos, materiais, livros. Enfim, a pressa associada à sua incompletude. Um buraco que não podia aparecer. Com o decorrer das sessões, pode dizer, mais calma, após vários dias em que tentamos acolher e barrar a pressa, de sua necessidade de “ter mais tempo com a mamãe”. Alice e Branca, ambas na mesma pressa para não olhar para algo que marcava uma falta, um buraco de acolhimento.

Tempo para a descoberta

Na escola Alice teve uma boa melhora nos momentos em que estava com outros colegas, em aceitar que há coisas que não sabia (única maneira de aprender) e em esperar. Um diagnóstico feito em meia hora, no máximo uma, onde está envolvido todo um sistema de condutas terapêuticas e medicamentosas, sem o tempo para a descoberta de aspectos constitutivos e subjetivos implícitos na relação que uma criança estabelece com seu estar no mundo, me parece precipitado e, por que não dizer, apressado.

Então, diante de questões sobre como lidar com crianças que apresentam sinais de que algo não vai bem, lembrar que cada criança traz em si uma história, uma possibilidade de vínculo e uma existência singular pode ajudar na tentativa de realizar uma maior aproximação e compreensão do significado de seus sintomas. Buscar parceria com profissionais que tenham capacidade de escutar e trocar impressões sobre as complexidades do crescimento de uma criança também. Adotar uma postura de parceria e compreensão com a família pode produzir um traço de confiança e expandir as possibilidades de aprendizagem para muito além de um (ou mais) diagnóstico.


Patrícia de Brito é psicóloga e mediadora do DIVERSA presencial, formação oferecida pelo Instituto Rodrigo Mendes para profissionais envolvidos com o processo de escolarização de estudantes público-alvo da educação especial em escolas comuns.

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