Introdução
A Escola Municipal Amorim Lima tem um projeto diferenciado de gestão que prioriza a autonomia e o respeito aos estudantes. A entrada de Cleiton, educando sem um diagnóstico definido, colocou a escola em estado de ansiedade diante de seu comportamento desafiador, em relação tanto a seu processo de aprendizagem quanto a sua forma de estabelecer relações. Foi preciso fortalecer um dos princípios que o projeto político pedagógico estabelecia: aceitar incondicionalmente que toda criança aprende e que seu lugar é, portanto, na escola.
EMEF Amorim Lima: virando o rumo
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, ao fazer 40 anos de existência em 1996, recebeu Ana Elisa de Siqueira como diretora. Na ocasião, a comunidade já se fazia presente na escola, pressionando-a por um melhor atendimento às crianças, especialmente com relação à falta de professores e ao cancelamento frequente de aulas. Por outro lado, os educadores se preocupavam com a alta taxa de evasão no ensino público e buscavam soluções para manter os estudantes dentro da escola. A diretora Ana Elisa fez uma opção radical: além de buscar mais professores para evitar os cancelamentos, resolveu apostar que a evasão diminuiria se a escola fosse um espaço mais participativo. Simbolicamente, a EMEF Amorim Lima retirou as grades que separavam internamente seus espaços. Atividades extracurriculares aumentaram a participação dos educandos e da comunidade na escola, que passou a acreditar numa construção coletiva da gestão escolar.
A consolidação desses movimentos levou, em 2002, à constituição de uma comissão de pesquisa, formada por educadores e pais, que buscou levantar dados e analisar os níveis de aprendizado e parâmetros de convivência na escola. O trabalho dessa comissão constatou que havia uma dissonância entre o Projeto Político Pedagógico (PPP) formulado pelos educadores e seu cotidiano. Num esforço de diminuir as distâncias entre o projeto registrado no PPP e o que realmente acontecia, os gestores da escola buscaram parcerias de educadores, pedagogos e psicólogos, que culminaram na aproximação da EMEF Amorim Lima com a Escola da Ponte, uma instituição de ensino portuguesa com um projeto e uma proposta pedagógica diferenciados.
A partir daí, a Amorim Lima viveu uma reviravolta em seu rumo. Novos valores foram incorporados , levando a práticas inovadoras nas salas de aula.
Novos valores e novas práticas
Um novo projeto político pedagógico foi definido, tendo como principais valores a autonomia moral e intelectual de todos os envolvidos (estudantes, educadores, comunidade), o respeito entre as pessoas e a solidariedade, apoiados em uma elaboração cultural e na construção e dedicação ao conhecimento. A atuação privilegiada é a grupal, buscando um compromisso coletivo de engajamento que propicie a democraticidade e seja fundamentado na responsabilidade individual e na concepção de espaço público. “Todos são responsáveis por todos”, afirma a diretora. Para tanto, fez-se necessário investir numa formação conjunta dos educadores, obtida através de práticas compartilhadas de planejamento e gestão educacional e de sala de aula.
O novo projeto visa uma gestão democrática da escola, por meio de diversas comissões, tendo como pilar central o Conselho Pedagógico. Na prática, pode-se observar modificações profundas na forma como são conduzidas a escola e as aulas.
A aula expositiva perdeu espaço, sendo utilizada apenas em momentos restritos. A novo formato de aula privilegiou os grupos de pesquisa. Além das grades da escola, foram derrubadas as paredes das salas de aula, formando amplos salões de estudo e pesquisa. Os educandos ficaram, a partir de então, em grupos de cinco, ao invés de em fileiras e passaram a ser vistos como pesquisadores.
O conteúdo das séries foi transformado em um roteiro de pesquisa, concebido como um instrumento de autonomia e focado na pesquisa. Quando a criança entra, já sabe o compromisso de aprendizagem que terá naquele ano. O roteiro é elaborado a partir das diretrizes curriculares nacionais, em consonância com a Lei das Diretrizes Básicas (LDB) da Educação Brasileira, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e outros documentos de referência para a educação.
Tais roteiros são concebidos para respeitar o ritmo e a autonomia dos educandos. Não há uma sequência padrão a ser seguida. Os professores mediam sua utilização, mas os alunos têm autonomia para decidir a ordem que melhor os aprazer. Os educadores atuam como colaboradores na construção do saber (e não como seus detentores exclusivos). Dois professores acompanham as turmas em suas tarefas de estudo e pesquisa, solucionando dúvidas e estimulando a reflexão sobre os temas propostos no roteiro.
Um sistema de tutoria, onde cada estudante da escola tem um tutor designado, complementa o modelo. O tutor é responsável por acompanhar o educando de perto, auxiliando seu processo de aprendizagem, implementando processos de auto-avaliação e, se necessário, orientando o desenvolvimento do aluno. Dessa forma, o aluno tem uma atenção individualizada, que pode se focar em sua trajetória única, com ênfase em suas capacidades e dificuldades pessoais.
Por fim, a formação intelectual e cognitiva é complementada por um aprimoramento artístico, físico e estético, voltado para as mais diversas formas de manifestações humanas, pois tanto o corpo quanto a afetividade são percebidos como componentes essenciais do conhecimento e, dessa forma, seu desenvolvimento é dever, também, da escola.
Acima de tudo, o novo projeto político pedagógico preza uma atitude de respeito para com as diferenças culturais, raciais, de credo e quaisquer outras, de todos e para com todos; a convicção de que cada aluno é único, pode e deve permanentemente construir e exercer sua identidade no seio de um coletivo que não a mitigue ou aplaque. A convicção de que toda a criança é capaz de aprender e desenvolver-se, em ritmo e forma próprios, sendo-lhe dadas as condições para que o faça.
“Entender o outro nas suas dificuldades e nas suas habilidades. Então tem crianças que conseguem fazer coisas muito melhor que outras e, ao mesmo tempo, aquelas que não se saíram tão bem em outros momentos podem fazer melhor. Num momento é um, noutro momento é outro. Isso dá aos educadores a percepção de que todos podem aprender”, afirma Ana Elisa.
Tais características tornam a Amorim Lima uma escola que trabalha na perspectiva da educação inclusiva, que visa, acima de tudo, a ideia de respeito ao ritmo de cada um e, com isso, reafirma a necessidade de um atendimento não massificado, com um olhar para o sujeito que está no papel de educando. E, ainda assim, a entrada de alunos com deficiência ou transtornos globais de desenvolvimento na escola trouxe desafios imensos.
A Educação Inclusiva na EMEF Amorim Lima
Em 2004, quando começou a modificação no projeto da escola, houve a matrícula da primeira criança com deficiência. No entanto, a diretora considera o marco inicial dos esforços de inclusão a entrada de uma criança com autismo severo, em 2006. Naquele momento, todos ainda estavam aprendendo a lidar com o novo projeto, o que por si só já era bastante desafiador. A entrada dessa aluna colocou mais lenha na fogueira. Diz Ana Elisa: “Foi quando a gente começa a se desesperar. A escola ficou em desespero completo. Os professores ficaram muito angustiados, porque a criança trazia questões pra gente pensar: qual o sentido de escola para essa criança?”
O recurso ao qual a escola recorreu foi o estabelecimento de parcerias. Um grupo de profissionais de psicologia ofereceu duas psicólogas a acompanhar a criança. Mas essa intervenção extrapolou em muito o suporte àquela aluna e as profissionais começaram a auxiliar toda a escola: os professores, funcionários, outros estudantes etc. para ajudá-los a entender que o lugar daquela criança era na escola. Gradualmente, a visão das pessoas se modificou. A diretora constatou, inclusive, que as crianças têm muito mais facilidade de aceitar as diferenças: elas criavam estratégias de relacionamento novos, capazes de contemplar a todos.
A mudança não foi rápida, nem indolor, mas, de acordo com a diretora, “hoje a gente já tem clareza de que essas crianças fazem parte da escola. Que elas têm o direito de estar na escola, e cabe a nós, educadores, pensar como elas vão estar.”
No entanto, a história de Cleiton trouxe um componente novo que voltou a mexer com o cerne da instituição. A escola, concebida por seus funcionários como um templo do conhecimento, teria agora que lidar com o desconhecido.
Cleiton e a angústia da escola frente ao desconhecido
Cleiton nasceu no interior da Bahia. Seu desenvolvimento foi mais lento do que o esperado. Sua mãe, Míriam, lembra-se de tê-lo comparado com o sobrinho, da mesma idade, e se dar conta que parecia haver algo errado. Quando começou a engatinhar, seus pais perceberam que ele se apoiava nas pontas dos pés. Começou, então, uma bateria de consultas, médicos, exames e tratamentos. Ele chegou a ter um diagnóstico de surdez, o que era inconcebível para os pais, que percebiam que ele se orientava facilmente por sons (dirigindo o olhar para um objeto que fazia barulho ao cair, por exemplo). Aproveitando uma oportunidade de emprego, o pai, Hilário, seguiu para São Paulo. A mãe, imaginando que teria melhores condições de tratamento para o filho em São Paulo, mudou-se também.
A bateria de exames e consultas prosseguiu. Diagnosticou-se adenoide no ouvido e um encurtamento de tendões nos pés, problemas que foram corrigidos cirurgicamente. Ele não conseguia se comunicar direito, o que o levou a um tratamento fonoaudiológico.
Mas nunca se conseguiu determinar com precisão o que afetava o desenvolvimento cognitivo de Cleiton. Seria uma anomalia genética? Ninguém conseguia afirmar com certeza.
O garoto começou estudando num instituto que, historicamente, trabalhava com crianças soropositivas para HIV. Em 2006, a instituição o encaminhou para a EMEF Amorim Lima.
Ao matricular um filho, os pais não são obrigados a informar sobre uma deficiência. Assim, a escola recebe o Cleiton sem nenhuma informação de sua história. Muitos professores e funcionários, ao saber que ele vinha daquela instituição, deduziam que ele era HIV positivo.
Mas seu comportamento começou a se destacar. Ele era agitado, nervoso, batia nas outras crianças, puxava cabelos, tinha pouca paciência. Levantava-se com freqüência, no meio da aula e saía da sala. Tinha acessos de agressividade e gritava palavrões pelos corredores.
Sua primeira professora, Anna Cecília, uma experiente educadora e dedicada defensora dos novos valores da escola, foi pega de surpresa por seus comportamentos, já que não havia nenhuma informação sobre Cleiton para auxiliá-la. Ela conseguiu acolhê-lo e, junto com as outras crianças, passou a criar estratégias de convivência. Mas os educadores entraram em um estado de angústia e, numa tentativa de controlar este sentimento, a direção começou a chamar repetidamente os pais na escola. Os educadores queriam saber o diagnóstico dele para “pisar em terreno seguro”, mas a família não tinha informações para dar. Começou um atrito entre pais e escola: os pais se recusavam a acreditar nos problemas relatados pela escola, pois Cleiton não agia da mesma forma junto a eles. Eles se sentiam magoados com o tratamento que a escola dava ao filho, colocando problemas o tempo todo. A escola se sentia perturbada com a presença do menino. A diretora reconhece: “É duro de admitir, mas chegou um momento em que era tão caótico que era melhor que o Cleiton não viesse…”.
O clima tornou-se mais tenso entre escola e família quando os educadores decidiram que Cleiton deve repetir o primeiro ano. Quando ele voltou das férias, a agressividade continuava e a nova professora não sabia como lidar com isso, aumentando a ansiedade do Cleiton e dificultando sua socialização. As estratégias desenvolvidas com os colegas do ano anterior foram quebradas, pois eles foram para o segundo ano. A nova professora entrava frequentemente em desespero. Chegava a chorar por causa dele.
Cleiton, por sua vez, não entendia porque não acompanhou os colegas. Perdeu o convívio que já havia conquistado. Via a nova professora como uma intrusa. Precisava se sentir dentro do grupo.
Tem-se, aqui, o auge do problema. Cleiton, sua família e seus educadores estão perdidos. A convivência entre eles torna-se terrível. Com tudo isso, o estudante avançava pouco em termos de aquisição do conhecimento.
No entanto, a família dispôs-se a fazer uma parceria com a escola: diminuíram o período que Cleiton passava na escola, iam com freqüência à escola, acompanhavam-no nos passeios. Nesse momento, a escola percebeu que não sabia o que fazer. Eles precisavam de apoio.
A aceitação e a mudança
Aos poucos, os pais entenderam a necessidade da escola e deram um primeiro passo para a solução dos problemas: aceitando a sugestão dos educadores, encaminharam Cleiton para terapia. No entanto, a escola não se eximiu do processo e pediu o apoio da terapeuta para si, também. A modificação se deu, em primeiro lugar, no campo afetivo: ao mesmo tempo em que trabalhava com o estudante, a terapeuta foi bem sucedida em mostrar para a escola que Cleiton valoriza aquele espaço, em geral, e sua professora, em particular. A percepção que levou à mudança da postura da escola é, portanto, de caráter afetivo e atitudinal: vinculava-se à noção da valorização. Aos poucos, isso acalmou a professora e deu condições ao Cleiton de permanecer na escola.
A escola começou a mudar, também, sua postura frente aos pais e começou a contar-lhes, nas reuniões, como o Cleiton estava progredindo. À medida que se sentia mais integrado e aceito pela professora, suas relações ficavam mais tranquilas e ele aprendia mais.
Cleiton foi, então, para o segundo ano do ensino fundamental. A nova professora, que também era sua tutora, construiu um intenso laço com ele. Um processo mútuo de aceitação começou a se fortalecer. Não foi apenas Cleiton que passou a aceitar seu papel como educando. Mais do que isso, foi a escola que percebeu que seu lugar era ali. A diretora confirma, em seu depoimento, a modificação da escola:
Todos têm que abrir mão de muitas coisas. Nós, educadores, temos que abrir mão de entender que a escola é só um lugar de aprender português, matemática, geografia, história… E para os educadores isso é muito duro. Mas temos que entender que a escola é muito mais do que isso, principalmente no ensino fundamental. A gente tem que querer que as crianças estejam na escola, por maior a dificuldade que isso traga. Temos que entender que as crianças com deficiência fazem parte da sociedade e, fazendo parte dessa sociedade, elas têm que estar onde se vive a vida social, que é a escola.
O trabalho reconhecendo a heterogeneidade dos alunos começou a ser percebido como um facilitador, pois permitia ao Cleiton se sobressair em algumas atividades e, com isso, não ficar marcado como incapaz. Uma das facilidades que tinha, por exemplo, era a de reconhecer as letras de seu próprio nome. Enquanto muitas crianças ainda não tinham o conceito de letra, Cleiton as podia distinguir facilmente e, por vezes, ajudar os colegas a reconhecer as letras de seu nome. Ele passou, com isso, a ser visto como competente pela classe.
Ele criou, assim, um novo repertório, mediado pelo conhecimento, com o qual se mostrou capaz e útil frente às diferenças entre os educandos, o que teve impacto nos seus relacionamentos e pôde ajudá-lo a se entender melhor.
Um princípio proposto no projeto da escola se torna evidente para os educadores da Amorim Lima: toda criança aprende. Pode ser de forma diferenciada e exigir que se busquem novas formas de ensino, mas é necessário, em primeiro lugar, acreditar na capacidade de aprendizagem de qualquer um: investir no como ensinar, pois o direito à educação precisa ser garantido. A partir desse valor, é preciso “construir conhecimentos sobre como acessar os sujeitos nas suas diferenças”, afirma a professora Anna Cecília. Criar procedimentos pedagógicos e didáticos, viabilizar tecnologias e parcerias.
Novos procedimentos pedagógicos na sala de aula
A partir da evidenciação desse valor, as professoras de Cleiton começaram a modificar suas práticas em sala de aula não só para estimular a integração, mas para que ele aprendesse com mais facilidade. Ana Elídia, sua segunda professora, depõe: “Não é uma tarefa simples, porém não é impossível. É preciso ter simplicidade para buscar adaptar o seu dia-a-dia, tirar suas dúvidas e buscar parcerias … Sozinha eu não teria conseguido … Parcerias das famílias e dos alunos, que precisam ser sujeitos participantes desse processo, participar das decisões. Não só eu, como educadora, tentar tomar a decisão sozinha, que é o grande erro que a gente comete, não só com alunos que precisam de um olhar especial, mas com todos.”
A professora reorganizou sua rotina, de forma a atender Cleiton sem deixar de atender os outros estudantes. A escola foi aprendendo, aos poucos, que ele precisava de espaços diferenciados. Para lidar com isso, as educadoras utilizaram as rodas de conversa, onde os alunos puderam expressar suas opiniões, para construir uma percepção adequada da “diferença de tratamento” e o Cleiton passou a poder sair da aula, quando sentisse necessidade.
Para garantir sua alfabetização, a escola adaptou o material didático, usando letras móveis e jogos didáticos, em especial as palavras cruzadas. Com letras móveis, que os educandos podiam manipular livremente, tornou-se mais fácil montar palavras, de forma mais concreta. As letras, de material durável, podem ser trocadas de lugar de forma mais dinâmica do que as escritas no quadro.
As parcerias que a escola e a família estabeleceram, nesse período auxiliaram a formar uma relação mais positiva entre o estudante, a família e a escola. Cleiton ficou mais confiante e passou a gostar mais de vir à sala de aula.
Gladys, a professora do 2º ano de Cleiton, ao formar um forte laço afetivo com ele, também teve papel fundamental em seu desenvolvimento. Para ela, foi necessário modificar o olhar sobre o outro e estar atento a cada um, mais do que às técnicas ou ao conteúdo. Afirma que é pela parte afetiva que se consegue fixar a atenção do estudante, possibilitando a aprendizagem.
Exercendo sua função de tutora, ela criou um roteiro específico para ele. Para construir esse roteiro, utilizou jogos, como palavras cruzadas, e muitas cores, pois percebia que atividades concebidas dessa forma mantinham a atenção de Cleiton por mais tempo. Uniu, assim, um conteúdo que ele considerava lúdico ao conteúdo pedagógico.
Por outro lado, a confiança na professora e o vínculo emocional com ela diminuíram a agressividade de Cleiton, tornando menos frequentes os comportamentos inadequados que tinha em sala de aula. Para isso, a professora modificou, inclusive, seu tom de voz em sala, pois se deu conta de que o tom que usava parecia “bravo” e isso incomodava os educandos.
Como a especialidade de Gladys é a matemática, Cleiton passou a se interessar mais por essa disciplina. O preço e o troco do chiclete que compra eram usados para desenvolver noções das operações básicas, assim como a passagem dos dias: quantos dias faltam para seu aniversário etc.
Roda de conversa
Um dos dispositivos mais importantes que possibilitaram a participação de Cleiton na comunidade escolar, no entanto, não está diretamente ligado à aprendizagem do conteúdo curricular. Tal dispositivo havia sido criado dentro da mudança do projeto pedagógico, com o intuito de valorizar a coletividade e desenvolver a reflexão em grupo, facilitando, assim, a resolução de problemas de convivência. São as rodas de conversa, onde, no final do turno, os estudantes elegem temas para serem discutidos por toda a classe. Cleiton, que frequentemente se tornava um dos tópicos de discussão, sempre participou da roda, como qualquer educando. Nesse espaço, os alunos podiam discutir livremente as dificuldades de relacionamento, não só com Cleiton, mas em geral. Era possível a todos perceber, então, que as relações estão sujeitas a percalços que precisam ser discutidos para serem superados. Ao ter a chance de se expressar e ao se colocar, também num lugar de ouvinte do outro, os estudantes podiam refletir sobre seus comportamentos e seus preconceitos.
As rodas de conversa se mostraram ferramentas de inclusão bastante eficazes ao permitir uma reflexão de todos sobre todos, sem excluir ninguém do direito à palavra ou da responsabilidade pela manutenção das relações.
O desenvolvimento de Cleiton
As mudanças que a escola promoveu no sentido de incluir Cleiton, em conjunto com as parcerias e a relação com a família, tiveram um efeito positivo no desenvolvimento de sua autonomia. No momento da escrita do caso, ele gostava de novidades, de conhecer novas pessoas e de sua autonomia. Sua concentração melhorou. Ele se sentia parte do coletivo e participa das atividades, em seu próprio ritmo, mas de forma integrada, tanto nos grupos de pesquisa, quanto nas atividades e nas rodas de conversa.
A principal alteração que a professora fz em seu aprendizado foi de ritmo, e não de conteúdo. Ele gosta de ser independente, mas pede ajuda quando sente necessidade e precisa de um acompanhamento mais próximo. As professoras relatam, por exemplo, que muitas repetições o auxiliam a se apropriar dos conceitos.
Em termos de alfabetização, ele ainda tem dificuldades em compreender um texto, mas, em quatro anos, saiu do simples reconhecimento das letras do nome para a leitura e escrita de palavras. Entende agora que a linguagem escrita é uma forma de comunicação. No início, tinha o hábito de comer as folhas de caderno; hoje, entende e estrutura o espaço para a escrita.
Agora desenha, pinta, recorta. Aumentou o seu senso de responsabilidade e respeita o combinado com professores e colegas. Usa a força (que antes era utilizada para agredir) para ajudar os outros, mostrando assim seu potencial.
Os pais, incluídos agora também no processo de desenvolvimento do filho, percebem as conquistas do filho, ao mesmo tempo em que se conscientizam de seu ritmo: “Ele tem dificuldades? Tem. Tem dia que está hiperativo… Mas estamos dando continuidade. Hoje ele já sabe diferenciar algumas coisas. Antes ele não conseguia se explicar… Agora já faz umas continhas básicas, já aprendeu a escrever o nome. Uma vitória que é aos poucos, mas vamos conseguir. Como dizem as professoras: é com o tempo que ele vai aprender.”
Pontos de discussão
A importância da escola regular é que ele estará preparado para a sociedade, amanhã. Preparar para o trabalho, preparação profissional. Numa escola regular tem todas as oportunidades para ele aprender e ir bem além. O mercado de trabalho está aí, tem espaço para todos, sem limitações. Dá para uma pessoa trabalhar, tendo deficiência ou não. É só prepará-lo que eu acredito no futuro dele.
(Depoimento de Miriam, mãe de Cleiton).
A gente vai lutar até o fim para que ele conquiste os objetivos dele. Não diferenciá-lo de outras pessoas. Todos nós, seres humanos. Infelizmente ainda existe aquele lado do tal preconceito. Mas nós temos que preparar a sociedade para saber lidar melhor com esse tipo de problema, porque não é fácil. Só quem cuida é quem sabe.
(Depoimento de Hilário, pai de Cleiton).
O presente caso apresenta diversas estratégias que a EMEF Amorim Lima utilizou, tanto em sala de aula quanto em sua gestão, para possibilitar o acesso do estudante Cleiton em suas atividades. Acima de tudo, as modificações são fruto de uma reflexão intensa realizada pela escola ao questionar seu papel. Retomando a principal questão colocada pela diretora, é preciso pensar: qual é o papel da escola para os alunos público-alvo da educação especial?
Sobre o autor
Augusto Galery é doutor em psicologia social, pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Centro Universitário Fecap. Foi colaborador do Instituto Rodrigo Mendes até 2015.
Este caso foi escrito a partir da compilação de entrevistas com uma gestora, três professoras e duas funcionárias da escola e os pais do educando em questão. Agradecemos imensamente a disponibilidade de todos para contar suas histórias. Agradecemos ainda o apoio de Liliane Garcez, Conrado Hübner Mendes e Daniela Alonso na revisão do caso.
Este caso foi desenvolvido a partir de depoimentos dos envolvidos. Os casos do DIVERSA têm como finalidade ser utilizados por mediadores, em cursos de formação continuada, como base para discussões. Não servem, portanto, como endosso, fonte de dados primários ou de práticas pedagógicas efetivas ou inefetivas.
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