Em sua aproximação inicial, a inclusão escolar foi entendida sumariamente como a inserção dos estudantes com deficiência que frequentavam classes e escolas especiais nas turmas das escolas comuns. Conquanto ainda muitos a concebam assim, estamos chegando pouco a pouco à compreensão de seu mote: garantir o direito à diferença na igualdade de direitos à educação.
A educação brasileira, na Constituição de 1988, tem como princípio a observância do direito incondicional e indisponível de todos os alunos à educação. A Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, assimilada ao nosso ordenamento corrobora esse direito. A garantia do acesso e permanência de todos à escola comum é absolutamente necessária, mas insuficiente para que a educação inclusiva se efetive em nossas redes de ensino. O direito à diferença é determinante para que sejam cumpridas as exigências dessa educação, propiciando a participação dos alunos no processo escolar geral, na medida das capacidades de cada um.
Quando nos referimos à igualdade, estamos falando de direitos iguais e não de educandos igualados e reduzidos a uma identidade que lhes é atribuída e definida de fora, formando conjuntos arbitrariamente compostos: bons e maus, repetentes e bem sucedidos, normais e especiais etc. Quando nos referimos ao direito à diferença, estamos tratando da diferença entre os estudantes que, mesmo passíveis de serem agrupados por uma semelhança qualquer, continuam diferentes entre si, dado que a diferença tem seu sentido adiado infinitamente.
Diferença e identidades na escola
As práticas da inclusão giram em torno de uma questão de fundo: a produção da identidade e da diferença. Coloca em xeque a estabilidade da identidade, usualmente compreendida como algo fixado, imutável; questiona a diferença, como uma referência pela qual alguns grupos discutem seus traços a partir de concepções de “comunidade”, enfatizando as necessidades comuns desses grupos.
Os sentidos da identidade e da diferença nos fazem cair em muitas armadilhas, obrigando-nos a caminhar com cuidado para evitar as insidiosas ciladas. A inclusão implica pedagogicamente na consideração da diferença dos alunos, em processos educacionais iguais para todos. A ambivalência dessa situação assemelha-se ao andar no fio da navalha. Exige um equilíbrio dinâmico dos que atuam nas escolas para que possam atender plenamente o que a inclusão prescreve como prática pedagógica, ou melhor, para não cair em diferenciações que excluem e nem pender para a igualdade, que descaracteriza o que é peculiar a cada educando.
A igualdade gera identidades naturalizadas, estáveis, fixadas nas pessoas ou em grupos e elas têm sido úteis para que a escola defina aparatos pedagógicos e estabeleça em sua organização critérios e perfis educacionais idealizados. A diferença não cabe nesses perfis engessados, nas classificações e identificações que encerram os estudantes mais adiantados, por exemplo, em uma dada turma, os mais atrasados, em outra. Os alunos são sujeitos únicos, singulares, heterogêneos, que não se encaixam plenamente nelas.
A diferença e as identidades são tão instáveis quanto o processo de significação do qual dependem. Elas têm sentidos incompletos e, sendo cara e coroa da mesma moeda, ambas estão sujeitas a relações de poder, entre as quais as exercidas na escola.
Diferenciar para incluir ou para excluir?
Na lida com os professores e pais de alunos com deficiência é comum chegarem até mim casos em que uma criança ou jovem é barrado no acesso à escola, em razão de sua diferença. Tal motivo tem sido usado para justificar o despreparo dos professores, das edificações, mobiliários e ambiente físico das escolas, concebidos para os que se enquadram em um padrão, os que não exigem mudanças no que está estabelecido e aceito para alguns e não para todos. O fato é que as pessoas não se reduzem a modelos identitários estabelecidos arbitrariamente e produzidos pela dificuldade de lidarmos com o caráter emergente, imanente e inacabado do sujeito em todas as fases de sua existência. As diferenças definidas por agrupamentos constituídos pela semelhança de um ou mais atributos tendem a se tornarem permanentes, reificadas descartando o caráter mutante da diferença e sua capacidade de escapar a toda convenção possível.
Quando se abstrai a diferença, para se chegar a um sujeito universal, a inclusão perde seu sentido. Conceber e tratar as pessoas igualmente esconde suas especificidades. Porém, enfatizar suas diferenças, pode excluí-las do mesmo modo. Como, então, encarar o processo ardiloso de (des)equilibração impostos pela inclusão? Como ir em frente, sem cair nas suas armadilhas?
Distinguir diferença de diversidade é um primeiro passo. Não se trata de um jogo de palavras, mas de se reconhecer a natureza de ambas. A diferença tem natureza multiplicativa e não se reduz à identidade – a diferença vai diferindo e se reproduzindo. A diversidade tem a ver com o idêntico e, portanto, com o existente, o imutável. Identidade e diferença não se compõem. Ademais, estamos habituados às formas de representação da diferença, que são resultantes de comparações e de contrastes externos. As peculiaridades definem a pessoa e estão sujeitas a diferenciações contínuas, tanto interna, como externamente. Para Burbules, estudioso do tema, a forma usual de se pensar a diferença é estabelecendo diferenças “entre”, que resultam de oposições binárias e nos remetem ao idêntico, ao existente, à ideia de diversidade.
Os modos de subjetivação nos aprisionam na representação pela qual o outro nos define. Uma identidade enunciada resulta do poder de assujeitamento de quem nos nomeia. Segundo Guattari, a produção subjetiva, ou melhor, a fixação em uma identidade atribuída de fora torna a pessoa tributária de verdades universais, que a fazem perder a sua singularidade e submeter-se à exclusão. Por se apoiarem no sentido da diferença “entre” e em discursos científicos que instituem a identidade pela definição de desvios e da normalidade, grande parte de nossas políticas públicas confirmam o projeto igualitarista e universalista da modernidade. Embora já tenhamos avançado muito, desconstruir o sentido de diferença “entre” e desconsiderar a identidade idealizada e fixa do indivíduo modelar em nossos cenários sociais é ainda uma gigantesca tarefa.
A diferença “entre” está subjacente a todos os entraves às mudanças propostas pela inclusão. Velada ou explicitamente, ao fazermos comparações, fixamos padrões desejáveis, definimos classes e subclasses com base em atributos que não dão conta das pessoas por completo, excluindo-as por fugirem à média ou à norma estabelecida. O poder que subjaz a essas enunciações estabelece, pela via da comparação, os processos de diferenciação para excluir, que limitam o direito de participação social e o gozo do direito de decidir e de opinar de determinadas pessoas e populações. Essa tendência se opõe à inclusão e ainda é a mais frequente.
A diferenciação para incluir como saída para se enfrentar as ciladas da inclusão está se impondo aos poucos e cada vez mais se destacando e promovendo a inclusão total. Tal processo de diferenciação implica a quebra de barreiras físicas, atitudinais, comunicacionais, que impedem algumas pessoas em certas situações e circunstâncias de conviverem, cooperarem, estarem com todos, participando, compartilhando com os demais da vida social, escolar, familiar, laboral, como sujeitos de direito e de deveres comuns a todos.
Ao diferenciarmos para incluir, estamos reconhecendo o sentido multiplicativo e incomensurável da diferença, que vaza e não permite contenções, porque está se diferenciando sempre, interna e externamente, em cada sujeito. Essa forma de diferenciação, na concepção de Burbules e de outros autores voltados para o estudo da diferença, é fluída e bem-vinda, porque não celebra, aceita, nivela, mas questiona a diferença. Em uma palavra, enfrentar as ciladas da inclusão é reagir contra os valores da sociedade dominante e rejeitar o pluralismo, entendido como uma incorporação da diferença pela mera aceitação do outro, sem conflitos, sem confronto. A inclusão desestabiliza a diferença tolerada e coloca em xeque a sua produção social, como um valor negativo, discriminador e marginalizante.
Os que se envolvem na defesa dos preceitos inclusivos precisam estar atentos ao sentido da diferença como padrão produzido pelos que procuram se diferenciar cada vez mais para manter a estabilidade de sua identificação ou diferença. Aí mora o perigo. Há muitas formas de se contribuir para que se confirme o sentido desestabilizante da diferença, no qual a inclusão se fundamenta, para que continuemos a progredir na direção de uma sociedade verdadeiramente democrática.
Deslizes que possam ocorrer no entendimento do direito à diferença, com base no que esta significa, e durante os processos de diferenciação criam problemas e caminhos equivocados para os que buscam construir uma pedagogia alinhada aos preceitos inclusivos. Os processos de diferenciação precisam ser cuidadosamente observados, para que, na intenção de acertar, as escolas acabem se perdendo e caindo em armadilhas difíceis de escapar.
Diferenciar para incluir é possível, quando a aluno ou beneficiário de uma ação afirmativa qualquer estiver no gozo do direito de escolha ou não dessa diferenciação. Um exemplo desse direito é o aluno que pode optar pelo lugar que ocupará em uma sala de aula, quando usa cadeira de rodas. Ele não é obrigado a se sujeitar à imposição de sentar-se sempre à frente de todos, em um lugar especial, definido por especialistas, se sua turma de colegas está localizada mais ao fundo.
Um aluno cego ou com baixa visão, que é o único a usar um computador na sala de aula não está sendo diferenciado e excluído dos seus colegas, se o computador o faz participar das aulas com autonomia e independência, por meio de um leitor de tela, por exemplo. Ele também tem o direito de estudar os conteúdos escolares em braille, ampliados na fonte e essas diferenciações são aceitáveis, porque não são recursos que o discriminarão em sala de aula.
Nos exemplos de diferenciações citados, que envolvem inclusão nos processos educativos, estão resguardados os direitos à igualdade – de estudar e compartilhar conhecimentos com os colegas de turma – e à diferença, que assegura ao aluno equipamentos, apoio da tecnologia na sala de aula e outros suportes e que lhe faculta a liberdade de escolhê-los, de modo que se sinta melhor assistido para participar das aulas e aprender.
Há alunos que são diferenciados por participarem de programas de reforço escolar e outros cujos estudos são realizados de acordo com atividades conteúdos adaptados e limitados, que professores e especialistas lhes prescrevem na ilusão de serem capazes de definir e controlar o aprendizado. Há mesmo intervenções que são realizadas por professores de educação especial, que acontecem na sala de aula, durante as atividades diárias e que também diferenciam alunos, excluindo-os da turma, mesmo temporariamente.
Muitos poderão entender que essas diferenciações são para incluir, pois do contrário os alunos seriam relegados pela escola, por falta de atenção a suas necessidades. Ocorre que tais programas, por restringirem conteúdos e atividades escolares, são considerados discriminatórios e excludentes e atentam para a liberdade de estudante aceitá-las ou não, no período de aula. Na boa vontade de “customizar” o processo educativo, de modo que se ajuste ao feitio de cada um, a exclusão se manifesta, embora estejamos pretendendo o contrário.
A escola tem poderes para diferenciar e para identificar os alunos, submetendo-os a mecanismos de inclusão e de exclusão educacional.
Uma pedagogia da diferença
A tendência de diferenciar o ensino escolar comum para certos grupos ou mesmo para um único aluno é uma prática que não corresponde a uma educação verdadeiramente inclusiva. Os aparatos pedagógicos que visam tornar menor ou maior o grau de dificuldade do ensino nas salas de aula, associar exclusivamente algumas atividades e níveis de dificuldade a certos alunos, realizar a escolarização de alguns, seguindo uma programação à parte, mesmo que estejam gozando igual direito de estar com todos nas salas de aulas do ensino comum, eles continuam sendo excludentes e, portanto, descumprindo o direito à diferença.
Para que uma pedagogia da inclusão seja exercida nas escolas, ela deverá acolher a diferença de todos os alunos como próprias da natureza multiplicativa da diferença, que se reproduzem, não se repetem, se ampliam e não se reduzem ao idêntico e existente. Esse acolhimento impede que o ensino e aprendizagem escolares de alguns alunos sejam restritas a currículos adaptados, objetivos educacionais reduzidos, critérios de avaliação abrandados, terminalidade específica para certificação escolar, facilitação de atividades, sempre levando em conta o que o nosso poder de decidir sobre o que nossos alunos têm ou não capacidade de aprender.
Tais procedimentos diferenciam para excluir e são próprios de um ensino diferenciado que chega ao nível de sua individualização, ou seja, a ser proposto sob medida para cada um.
A pedagogia a que queremos chegar não seria jamais concebida como uma pedagogia que congela identidades e que em função dessa estabilidade construída, estabelece um campo específico, uma fórmula padrão para atuar com cada uma delas. São típicas desse congelamento as pedagogias para alunos com deficiência intelectual, com surdez, com problemas de linguagem, em que a “customização” do ensino considera o cliente como um sujeito abstrato, desencarnado para os quais se destinam procedimentos universalizados, generalizados. A esta maneira de fazer educação escolar comum e especial podermos chamar de “pedagogia da diversidade”, em que a diferença é redutível à identidade, a um dado cultural, à natureza.
Na linha da diversidade, estão as pedagogias das etnias, religiões, gênero, minorias, que têm um caráter estático e que celebram identidades estáveis, prontas, que se impõem como representativas de grupos que buscam entre outros objetivos, a afirmação social.
Essas pedagogias diferem da pedagogia da diferença, construída no entendimento pleno da inclusão, destinada a alunos que não se repetem e para os quais é impensável sugerir qualquer “customização” educativa. No âmbito dessa pedagogia, que é inclusiva por natureza, é o aluno que introduz a cunha da diferença ao ensino e à aprendizagem, trazendo para a sala de aula mudanças substanciais, que atingem o papel do professor, sugerindo moderação na sua função explicativa e na de sancionar acertos e erros e deixando espaço para que a criatividade e as descobertas se manifestem a partir das experiências e buscas do aluno.
A expressão livre de ideias, sentimentos, posicionamentos desloca o poder que identifica e reduz as diferenças a níveis de compreensão, desempenho e acompanhamento do ensino, segundo normas que permitem distinguir a verdade no que parece ser um erro. O exercício propiciado pelo ensino em que a autonomia intelectual revela a capacidade de tomada de decisão do aluno, escolhendo por si só suas tarefas e o modo de desenvolvê-las, de acordo com suas capacidades e interesses, corresponde ao que almejamos atingir em uma pedagogia alinhada à inclusão.
O trabalho colaborativo, próprio da pedagogia da diferença, organiza-se em redes, onde o saber circula horizontalmente, sem hierarquia. Todos têm o que ensinar e aprender em um ambiente escolar caracterizado pela diferença de capacidades, as quais circulam e diluem a autoria do conhecimento conferida a um único aluno.
Os conteúdos escolares disponibilizados para todos, a partir de atividades diversificadas e de livre escolha, as quais não foram predefinidas para um grupo ou para um aluno em especial, oferecem aos professores indícios sobre as capacidades dos alunos e sobre o que desejam conhecer, tornando-os sujeitos ativos do conhecimento. Em resposta ao que seria uma pedagogia que não cai nas armadilhas da diferença, propomos que a incumbência de “customizar” seja do aluno e não do professor. Ao colocar em ação suas capacidades, diante de um conteúdo que pode explorar, sem o controle externo da verdade, o aluno compreenderá o novo nas suas medidas e confortavelmente transitará pelos caminhos que traçou para aprender.
Uma sociedade inclusiva é possível e está a caminho. Os avanços nessa direção são evidentes e resultantes de conquistas que os tornam irreversíveis. Nosso compromisso como educadores do século XXI reveste-se da responsabilidade de concretizar uma pedagogia que responda aos anseios e necessidades desse novo tempo.
Maria Teresa Eglér Mantoan é doutora em educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferenças (LEPED).
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